A universidade que soube tirar proveito do declínio industrial
A mudança de paradigma transformou Coimbra numa cidade de serviços. A UC tornou-se pioneira da transformação tecnológica e digital no país, com dois organismos exclusivamente dedicados a projetos.
Existe uma ideia desfasada sobre o trabalho prático desenvolvido pelas universidades portuguesas. No caso da Universidade de Coimbra, a mais antiga de Portugal e uma das mais antigas da Europa, “as pessoas pensam que está presa ao passado, não veem trabalho palpável”, mas isso não quer dizer que ele não exista. Muito pelo contrário. “Dia sim, dia não recebemos solicitações de empresas para prestações de serviços, a procura de conhecimento está a acontecer a um ritmo muito intenso”, confidencia ao ECO Miguel Dias Gonçalves, da Divisão de Inovação e Transferências de Saber (DiTS) da UC.
Albergada no polo II da Universidade, é a partir de uma casa senhorial mesmo ao lado da residência mais moderna de estudantes de engenharia que a DiTS faz a ponte entre o meio académico e o tecido empresarial há 14 anos. “Trabalhamos na vertente de transferência de tecnologia, aquilo a que chamamos de technology pull, que no fundo passa por ir aos centros de investigação aqui da Universidade ver que projetos têm potencial comercial”, explica Gonçalves. Quando têm, “tentamos proteger esses ativos através de patentes e uma vez protegidos tentamos comercializá-los, quer licenciando as patentes para uma empresa de determinado setor já existente no mercado, quer ajudando os investigadores a criarem startups para desenvolverem esta ou aquela tecnologia.”
A par disso, a DiTS atua num outro domínio, o market pull — “quando as empresas que já existem enfrentam desafios internos e precisam de especialistas, procuram a nossa ajuda para desenvolver novos produtos e serviços ou para resolver questões tecnológicas ou técnicas com base na investigação da Universidade.” É assim que a UC, através deste hub com olho para o negócio, tem desenvolvido muitas parcerias com empresas nos últimos anos.
Acabamos por funcionar como consultores de inovação.
Junta-se a isso uma concentração de esforços para apoiar ou organizar iniciativas de estímulo ao empreendedorismo, à inovação, à sensibilização dos docentes, investigadores e estudantes para essa área e para a transferência da tecnologia e propriedade intelectual. “Queremos que, para além da teoria ou da investigação e da docência, a comunidade académica possa aproveitar e desenvolver oportunidades de negócio.” Nesse sentido, a DiTS organiza cursos de empreendedorismo, programas de aceleração, concursos de ideias de negócios e iniciativas de self-learning, que permitem aos investigadores mergulharem noutros mercados para verem como podem desenvolver as suas atividades.
Um exemplo: uma empresa constituída por pessoas de Letras que se associaram ao Departamento de Informática para criar a app Just In Time Tourist, destacada pela Organização Mundial do Turismo em 2015. “Permite que, nas cidades para onde desenvolveram a aplicação, eu possa dizer ‘estou neste sítio, tenho uma hora para visitar coisas, faz-me um percurso personalizado’ e a aplicação faz” — de forma gratuita.
Ao sabor dos avanços tecnológicos
É certo que é um fenómeno relativamente recente, este de o tecido empresarial português prestar atenção aos avanços tecnológicos e à importância do digital. Certo é também que, em Coimbra, isto já acontece há mais de dez anos e a existência do DiTS é só uma das provas disso mesmo — reflexo direto da transformação socioeconómica que a cidade sofreu antes do virar do século. “Era uma cidade muito baseada na indústria da cerâmica, que foi decaindo, e isso fez com que passássemos a ser uma cidade de serviços, fundamentalmente assente na tecnologia que saía da Universidade”, explica Gonçalves.
Veja-se o exemplo da CRITICAL Software, uma empresa virada para o digital que há dez anos já trabalhava para a NASA, a agência espacial norte-americana, e que foi fundada por docentes e investigadores da UC em 1998. Entre eles João Gabriel Silva — tido como “o pai do primeiro microcomputador português”, que é o reitor da Universidade desde fevereiro de 2011. Quem diz essa diz a Intelligent Sensing Anywhere, uma empresa altamente tecnológica fundada em 1990 que continua a dar cartas nas áreas de telemetria e telegestão a nível global, com escritórios em França, Espanha, Brasil, EUA e Egito, que apesar do crescimento registado mantém a sua sede em Coimbra. “Já havia pistas neste sentido há uma década aqui”, garante Gonçalves quando lhe perguntamos se tem havido uma maior consciencialização das empresas para a transformação digital. “O que tem acontecido nos últimos anos é um reforço dessa procura do conhecimento.”
Aí entra em cena a DiTS mas também o Instituto Pedro Nunes, que dista poucas ruas de distância da casa onde nos encontramos, cuja incubadora de empresas é dirigida por Paulo Santos desde junho de 2001. “É provavelmente a incubadora de base tecnológica e académica mais antiga do país”, confidencia ao ECO. Em funcionamento desde 1995, está vocacionada para fomentar empreendedores e startups nos primeiros anos das empresas, que dali são transferidas para a aceleradora IPN — quando já provaram que o seu modelo de negócio é viável e estão numa fase de crescimento em que precisam de aumentar a sua intensidade tecnológica mantendo-se próximas dos centros de investigação. “Costumo dizer, por graça, que a incubadora vai desde o berçário à primária e que a aceleradora vai do secundário à universidade”, brinca Paulo Santos. “Depois ainda temos a vida adulta, que continua no Coimbra iParque, uma infraestrutura da qual somos parceiros e acionistas.”
Atualmente, existem mais de 40 empresas a trabalhar fisicamente em cowork na incubadora e 23 no estágio seguinte, muitas delas da área informática e do digital, da eletrónica com aplicação na área da Saúde, “mas também alguns excelentes exemplos na química, farmácia, ambiente e turismo”. A par disso, existem os laboratórios de Investigação & Desenvolvimento Tecnológico (I&DT), com projetos centrados sobretudo nas áreas de informática e ciências de computação (software), automação, robótica e eletrónica (hardware), materiais, eletroanálise, geogenia e fitossanidade.
O progresso registado na última década no IPN é um exemplo por excelência da crescente importância da tecnologia e do digital para o tecido empresarial português e da busca desse conhecimento na região centro de Portugal. “Têm sido criadas cada vez mais empresas nesta área”, concede Santos, “algo natural por ser uma área em grande expansão a nível mundial, com imensas oportunidades e onde o investimento inicial não é, de forma alguma, tão elevado como noutras áreas, como por exemplo a biotecnologia, química ou matérias.”
Entre 1996 e 2016, o número de empresas incubadas no IPN ascendeu acima das 270, com uma taxa de sobrevivência de 75%, uma taxa de exportações a rondar os 50% e um volume agregado de negócios na ordem dos 150 milhões só no ano passado. Isto fez com que 2200 novos postos de trabalho altamente qualificados fossem criados na cidade de Coimbra e arredores. O grande desafio agora, como aponta Miguel Gonçalves, é fixar cada vez mais empresas na região.
“É algo difícil quando comparamos os vencimentos que são oferecidos cá com os que são oferecidos no estrangeiro”, aponta. “É um problema não só em Portugal mas em toda a Europa e cabe-nos também a nós fazer com que aqueles que desenvolvem produtos e serviços inovadores possam encontrar aqui, no ecossistema de Coimbra, um local para explorarem as suas ideias de negócio e para venderem os seus produtos e serviços a nível global sem terem de sair daqui.”
Trabalhar para o mundo inteiro com vista para o Mondego
Os dois especialistas dão como exemplo de sucesso neste ponto a Feedzai, uma empresa fundada por ex-alunos da Universidade de Coimbra em 2009 que opera na área de Big Data. “Inicialmente exploraram a possibilidade de aplicar a tecnologia desenvolvida à gestão de grandes quantidades de dados associados à prevenção de ataques cardíacos em 24 horas, portanto mais virada para a área da Saúde. Depois direcionaram a tecnologia para a área da Energia e chegaram a ter algumas parcerias com a EDP. Só depois dessas tentativas é que encontraram o seu grande sucesso, no caso no mundo financeiro, detetando transações fraudulentas em pagamentos online em tempo real”, explica o responsável da DiTS. “É uma empresa que tem tido excelentes resultados, que tem angariado muitos prémios e financiamento, aqui como no estrangeiro, e cujo percurso pertinente serve de modelo a outras startups.”
É muito graças à Feedzai e a outras grandes empresas que o IPN tem levantado uma média de cerca de 8 milhões de euros/ano de Capital de Risco, explica Paulo Santos. “É um número algo enviesado pelas grandes operações de empresas como essa, mas ainda assim bastante interessante face ao que acontecia há dez anos”, aponta. A par disso, e para além dos capitais próprios dos fundadores (“quase sempre muito parcos”), o Instituto tem ajudado a levantar capital junto Business Angels e também a obter financiamento através de instrumentos de apoio público nacionais e internacionais, explica o diretor da incubadora, dando como exemplos o Horizon2020, o PT2020 e o SME Instrument, “onde as nossas empresas são muito ativas”.
O modelo de múltiplas valências do IPN — entre a incubadora, a aceleradora, seis laboratórios de I&DT aplicada e “um centro de formação avançada acreditado que presta ajuda não só a startups como a muitas PME e grandes empresas nacionais e internacionais” — “tem vindo a ser reconhecido” cá dentro e lá fora, explica Santos, precisamente pela variedade da oferta em áreas de negócio cada vez mais apetecíveis, que “permite explorar muitas oportunidade e sinergias”.
No caso da DiTS, a realidade não é muito diferente. Para além de fazer a ponte entre o mundo académico e o empresarial, a divisão da Universidade gere linhas de financiamento como as bolsas de ignição, de dez mil euros cada, colocadas à disposição dos docentes “para que possam explorar o seu potencial comercial e dar mais um passo de aproximação ao mercado, para depois terem validação tecnológica”, explica Gonçalves.
“Agora o que queremos oferecer cada vez mais é a possibilidade de as empresas desenvolverem tecnologias aqui e criarem empregos aqui trabalhando também para fora.” É o conceito de trabalhar para o mundo com vista para o Mondego, um objetivo cada vez mais tangível que, esperam, acabará por conduzir a salários mais competitivos e à fixação de mais empresas na cidade. “Até porque”, aponta Gonçalves, “estudos recentes têm identificado que por cada posto de trabalho criado numa incubadora tecnológica, criam-se 1,5 postos de trabalho locais”. E se assim é, porque não apostar em Coimbra?
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