O sócio da Morais Leitão, Duarte Santana Lopes, falou à Advocatus sobre o regime geral da prevenção da corrupção, a fase de instrução, o Ministério Público e de mega processos.
Duarte Santana Lopes colabora com a Morais Leitão desde 2007, sendo sócio desde 2022. A sua atividade centra-se no acompanhamento de clientes em processos penais e contra-ordenacionais, sobretudo na área económico-financeira.
Nos últimos anos tem dedicado especial atenção à vertente preventiva (compliance e investigações internas), em especial às matérias relacionadas com a prevenção da corrupção, do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo. Entre 2013 e 2015, colaborou numa sociedade de advogados em Macau, na qualidade de Representante Internacional da Morais Leitão Legal Circle para a Ásia, tendo trabalhado essencialmente nas áreas de contencioso criminal, civil e administrativo. É, desde 2017, Professor Convidado na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa (disciplina de Prática Jurídica Interdisciplinar).
À Advocatus, falou sobre o regime geral da prevenção da corrupção, a fase de instrução, o Ministério Público e de mega processos.
Dia 25 de novembro de 2024, entrou em funcionamento a Plataforma RGPC (regime geral da prevenção da corrupção). Como avalia esta plataforma?
Acho que a plataforma poderá ser útil para a interação entre o Menac e as entidades abrangidas pelo RGPC, pelo que me parece uma boa iniciativa. Contudo, as comunicações do Menac sobre o modo de utilização dessa plataforma e, sobretudo, quanto à obrigatoriedade de registo e de submissão de determinados elementos através da mesma tem sido bastante errática, em particular no que diz respeito às entidades privadas. A confusão está instalada, pelo que me parece imprescindível que o Menac preste esclarecimentos públicos claros sobre esta matéria.
Diz que é obrigatória para as empresas privadas. Isso decorre da lei?
Não decorre da Lei, nem do Regulamento que o Menac aprovou sobre a plataforma – cuja natureza e força jurídicas também me suscitam as maiores dúvidas. E a verdade é que o Menac também não afirma expressamente e de forma clara, nas suas comunicações, que é obrigatória para empresas privadas, mas é o que parece decorrer, quer das publicações que constam do site do Menac, quer das comunicações que têm sido remetidas às entidades privadas abrangidas pelo RGPC.
Ora, relativamente às empresas privadas, não existe qualquer norma jurídica, seja no RGPC, seja no Regulamento do Menac, da qual resulte a obrigatoriedade de se registarem na plataforma, de interagirem com o Menac através de uma plataforma eletrónica ou, sequer, de submeterem ao Menac, seja por que meio for, os elementos que compõem o seu programa de cumprimento normativo, nem sequer os relatórios de avaliação intercalar e anual da implementação das medidas previstas nos planos de prevenção de riscos de corrupção e infrações conexas. E, já agora, também não existe qualquer norma que sancione o incumprimento daquela suposta (e inexistente) obrigação. O que o RGPC prevê é a obrigatoriedade de divulgação de tais elementos apenas aos trabalhadores das entidades privadas, através da intranet e da respetiva página oficial da internet.
Admito que o Menac pudesse ter previsto tais obrigações no Regulamento que aprovou sobre a plataforma, mas a verdade é que não o fez, sendo que os esclarecimentos públicos que tem prestado sobre o tema têm sido muito pouco, ou mesmo nada, esclarecedores.
As comunicações do Menac sobre o modo de utilização dessa plataforma e, sobretudo, quanto à obrigatoriedade de registo e de submissão de determinados elementos através da mesma tem sido bastante errática, em particular no que diz respeito às entidades privadas. A confusão está instalada, pelo que me parece imprescindível que o Menac preste esclarecimentos públicos claros sobre esta matéria”
Como está a ser o grau de implementação das empresas?
Quanto à plataforma, e como já referi, diria que está o caos instalado, pelas incertezas e dúvidas geradas pelo Menac. Quanto à implementação dos programas de cumprimento normativo ao abrigo do RGPC, diria que o grau de implementação é elevado e considero que tem tido um impacto bastante positivo nas entidades abrangidas, na medida em que tem permitido criar maior awareness para a importância da prevenção da corrupção e das infrações com esta relacionadas. Tem também fomentado um maior conhecimento dos conceitos de corrupção e dos principais crimes associados (recebimento e oferta indevidos de vantagem, tráfico de influência, abuso de poder, branqueamento, etc.), o que permite às empresas ficarem mais cientes dos seus concretos riscos de exposição à ocorrência desses ilícitos criminais, incentivando, ainda, a que as empresas adotem as medidas adequadas à prevenção e mitigação desses riscos.
Ou seja, faço um balanço muito positivo da vigência do RGPC e considero que está, em grande medida, a cumprir os desígnios pretendidos pelo legislador com a aprovação da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção. Noto, contudo, que é um regime bastante exigente para as entidades abrangidas, pelo que é preciso ter cuidado com os excessos: de voluntarismo, de obrigações, de burocracias, etc., que já sabemos no que costuma resultar.
Agora uma pergunta mais abrangente: como avalia a atuação do MENAC?
Não será novidade para ninguém dizer-se que o Menac teve uma primeira fase, que se prolongou até meados do segundo semestre de 2024, de quase total inação. Desde então, o Menac tem tomado algumas iniciativas, mas que, a meu ver e com o devido respeito, pecam por algum excesso de voluntarismo – porventura como consequência de algumas críticas que foram surgindo à inatividade do Menac –, e têm sido bastante erráticas, como resulta do que disse há pouco a propósito da plataforma eletrónica. Mas há um outro exemplo que julgo que demonstra o excesso de voluntarismo de que falo, que é a Recomendação que foi emitida pelo Menac segundo a qual as entidades abrangidas pelo RGPC devem enviar mensalmente ao Menac relatórios sobre a existência ou não de falhas ou irregularidades no cumprimento do programa de cumprimento normativo adotado. Trata-se, a meu ver, de um fardo excessivamente pesado, quer para as empresas, quer sobretudo para o Menac, que seguramente não terá capacidade para analisar milhares de relatórios por mês, além de todas as funções que lhe cabem. São os tais excessos de que falava e que me parece manifesto que poderão ser contraproducentes.
Dito isto, vejo naturalmente com bons olhos o facto de o Menac estar mais ativo no exercício das suas funções, parecendo-me especialmente relevantes as suas funções de emissão de orientações e diretivas e de fiscalização, esperando que possa exercer essas funções através de iniciativas que sejam claras, pedagógicas e adequadas aos fins que pretendem alcançar.
Faz sentido a fase de instrução deixar de existir, no processo penal?
Acho que a fase de instrução tem um papel relevante a desempenhar na arquitetura do nosso processo penal, mas confesso que não me chocaria se deixasse de existir, desde que fosse devidamente substituída por outros mecanismos processuais que permitissem, por um lado, um saneamento do processo prévio ao julgamento e, por outro, evitar levar a julgamento casos em que a falta de fundamento da acusação seja flagrante ou notória. E, por outro lado ainda, que permitissem aos ofendidos/assistentes reagir contra um despacho de arquivamento.
O que não me parece fazer sentido, acima de tudo, é termos uma fase instrutória cuja decisão assenta num juízo probabilístico de condenação ou de absolvição. Acho que não é esse – ou não deve ser esse – o desiderato da instrução. Esta deve servir, essencialmente, para o saneamento do processo – i.e., para a análise de questões jurídicas, em particular de natureza processual, que podem obstar a que o processo prossiga para julgamento – e para uma comprovação judicial de que os factos que constam da acusação, caso venham a ser provados em julgamento, podem efetivamente configurar a prática de crimes, mas sem que exista um juízo sobre a prova desses factos ou sobre a maior ou menor probabilidade de o arguido vir a ser condenado. Questões de prova devem ser tratadas em julgamento e devem ser admitidas na fase de instrução a título absolutamente excecional, por exemplo quando estiverem em causa situações análogas às do erro notório na apreciação da prova, que é um dos vícios da sentença passíveis de serem invocados em recursos limitados a questões de direito.
Não será novidade para ninguém dizer-se que o Menac teve uma primeira fase, que se prolongou até meados do segundo semestre de 2024, de quase total inação. Desde então, o Menac tem tomado algumas iniciativas, mas que, a meu ver e com o devido respeito, pecam por algum excesso de voluntarismo – porventura como consequência de algumas críticas que foram surgindo à inactividade do Menac –, e têm sido bastante erráticas, como resulta do que disse há pouco a propósito da plataforma electrónica”
O que faz falta no Ministério Público?
Acho que o Ministério Público precisa agora de alguma tranquilidade, pelo que não queria estar aqui a repetir o que já disse em algumas ocasiões sobre o que, a meu ver, deve mudar na magistratura do Ministério Público. Mas, para não deixar a pergunta sem resposta, e numa perspetiva diferente da habitual, diria que falta alguma abertura: abertura à sociedade civil, abertura ao diálogo com outros sujeitos processuais, abertura de horizontes, abertura ao mundo em geral. É sempre importante conhecermos outras (várias) perspetivas, sobretudo quando temos por função acusar ou julgar os outros.
Os mega processos são os responsáveis pela demora na Justiça Penal?
Quanto a isso não há dúvidas, e as estatísticas comprovam-no de forma evidente. Os megaprocessos são, por natureza, mais demorados do que os processos normais, mas a verdade é que, em muitos casos, são muito mais demorados do que deveriam ser e do que é objetivamente admissível. A questão está em saber quais são as reais causas dessa demora, e aqui há muitas ideias e mensagens erradas ou que não correspondem à realidade. Estatisticamente está demonstrado que onde Portugal compara pior com os outros países europeus, em termos de demora dos processos penais, é na fase de investigação. Na fase de julgamento e na fase de recursos estamos alinhados com a média europeia. Não quero com isto dizer que não haja casos em que se abusa dos expedientes processuais, mas a nossa legislação já prevê mecanismos mais do que suficientes para impedir que assim seja, pelo que o problema não está aí. A meu ver, as alterações legislativas a introduzir para resolver este problema devem estar focadas essencialmente na fase de inquérito, porque é aí que residem as principais causas da demora da justiça penal.
O que pode ser melhorado para não termos processos a durarem tantos anos?
Duas medidas muito concretas: prazos perentórios de duração dos inquéritos (bato sempre na mesma tecla, na esperança de furar a pedra) e digitalização de todas as fases do processo penal, incluindo a realização de todas as inquirições e interrogatórios através de gravação áudio ou, preferencialmente, vídeo.
Recentemente, o Conselho Superior da Magistratura (CSM) propôs a alteração da lei processual penal para evitar atrasos excessivos nos processos, a reformulação da instrução criminal, um combate aos expedientes dilatórios e mais recursos tecnológicos e humanos adequados aos juízes para enfrentar a complexidade dos mega processos. São medidas adequadas?
Ainda não se conhecem as medidas concretas propostas pelo CSM, conhecem-se apenas essas ideias genéricas que referiu. Estou de acordo com os principais pontos focados pelo CSM, mas não deixo de notar que, uma vez mais, e salvo erro, não há qualquer referência expressa àquela que é, de longe, a fase processual em que se verificam as maiores demoras na justiça penal: a fase de inquérito. Espero que as tais alterações legislativas que serão propostas “para evitar atrasos excessivos nos processos” visem também a fase de investigação. Quanto ao mais, destaco os recursos tecnológicos, que acho que poderão ter um impacto positivo significativo na celeridade dos processos.
Não podemos é continuar a viver com um quadro legal que, na teoria, permite que um inquérito se arraste infinitamente e que, na prática, tem resultado em inquéritos com mais de uma dezena de anos”
Se fosse ministro da Justiça, que medida tomaria em primeiro lugar?
Posta assim a questão, seria a definição de prazos perentórios para a fase de inquérito, porque considero que a existência de inquéritos que se arrastam por vários anos, em alguns casos por mais de dez (são vários os exemplos na justiça portuguesa), em que os arguidos vêem as suas vidas suspensas, sem possibilidade de se defenderem, por não existir sequer uma acusação, e em que muitas vezes têm parte ou a totalidade do seu património apreendido, é uma realidade que não pode, pura e simplesmente, existir.
Claro que esta medida teria de ser complementada por outras alterações, de forma a atenuar os seus impactos, que podem ser bastante profundos, desde logo quanto à contagem e alargamento dos prazos e quanto à definição de prazos diferentes em função da complexidade dos processos (o que de certa forma já se verifica no modelo atual, ainda que tendo por referência “prazos meramente indicativos”). Como tenho defendido noutras ocasiões: prazos mais longos, mas verdadeiros prazos, o que significa que, se forem ultrapassados sem que o MP consiga deduzir uma acusação, o processo é arquivado.
Não podemos é continuar a viver com um quadro legal que, na teoria, permite que um inquérito se arraste infinitamente e que, na prática, tem resultado em inquéritos com mais de uma dezena de anos. Nesta senda, parece-me também crucial adotar medidas imediatas e drásticas que permitam, pelo menos, melhorar substancialmente a (falta de) celeridade dos processos nos Tribunais Administrativos e Fiscais.
A lei do lobby vai ajudar a esclarecer e tornar certos contextos mais transparentes?
Não será nenhuma solução mágica, mas acho que poderá ajudar. Não conheço ainda nenhuma proposta legislativa em concreto, mas as legislações que conheço sobre o lobby têm normal e essencialmente essa virtude: introduzir uma maior transparência nas relações com o poder, o que, por si só, reduz as possibilidades de influência e favorecimento indevidos.
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“Não me chocaria que a instrução deixasse de existir”, diz Duarte Santana Lopes, sócio da Morais Leitão
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