Pacote Omnibus pode acelerar ou ‘atropelar’ ESG na Europa
O pacote para a desburocratização da UE, o Omnibus, vem alterar importantes diplomas de sustentabilidade. Objetivo é simplificar, mas é importante não desvirtuar esta legislação, dizem especialistas.
Em janeiro, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, apresentou a Bússola para a Competitividade, a “principal iniciativa” do executivo europeu para o novo mandato, inspirada no relatório feito por Mário Draghi sobre o mesmo tema.
Na altura, enumerou cinco eixos transversais que serão facilitadores da competitividade no Velho Continente. No âmbito de um deles, a “simplificação”, que quer decisões administrativas “mais simples, rápidas e leves”, anunciou que vem aí a proposta Omnibus. Esta proposta “vai simplificar o reporte de sustentabilidade, a diretiva da due dilligence e a taxonomia (CSRD, CSDDD e Taxonomia)” europeia, lê-se numa nota publicada pela Comissão. A expectativa é que a proposta seja conhecida esta quarta-feira, dia 26 de fevereiro, embora possa resvalar.
A Taxonomia, explica o economista sénior do Banco Carregosa, Paulo Rosa, contém os princípios para identificação de atividades económicas sustentáveis. A Diretiva de Relatórios de Sustentabilidade Corporativa (CSRD) obriga as empresas a divulgarem informações sobre o impacto das suas atividades nas questões ambientais, sociais e de governança (ESG). E a Diretiva de Devida Diligência em Sustentabilidade Corporativa (CSDDD), a qual exige que as empresas identifiquem e mitiguem impactos adversos nos direitos humanos e no meio ambiente ao longo das suas cadeias de valor.
Na nota já referida, a CE assume que o objetivo é cortar em pelo menos 25% o fardo administrativo que recai sobre as empresas, elevando a percentagem para 35% no que respeita às pequenas e médias empresas. Esta desburocratização afigura-se como importante para a competitividade na medida em que existem estudos, como é o caso do Investment Survey de 2023 do Banco Europeu de Investimento (BEI), que documenta que duas em cada três empresas consideram os encargos regulatórios a que estão sujeitas como o grande obstáculo ao investimento de longo prazo, tornando a Europa menos atrativa para investir quando comparada com outros locais, assinala a responsável pelo pelouro da Sustentabilidade na PwC, Cláudia Coelho.
A CIP – Confederação Empresarial de Portugal considera que “as empresas necessitam urgentemente de um sinal de que a UE está verdadeiramente interessada em reduzir a carga regulamentar, fazendo disso a sua principal prioridade”. Nesse sentido, diz-se “expectante” relativamente ao Omnibus, querendo que os textos da CSRD e CSDDD “se tornem mais operacionais e consentâneos com a realidade empresarial”.
A conjugação destes dois diplomas entre si e com outros regulamentos relacionados com os temas do trabalho e reflorestação é uma das urgências identificadas por esta associação, além de apelar à não duplicação de relatórios e exigências. A CIP defende ainda que a Comissão Europeia prorrogue a data de transposição e implementação dos diplomas.
No entanto, também se têm levantado vozes contraditórias a este movimento. Em janeiro, relembra a conselheira no Centro para Negócios Sustentáveis e liderança da Católica Lisbon, Angela Lucas, um grupo de grandes empresas europeias, investidores e associações industriais, publicou uma carta aberta dirigida aos líderes europeus, manifestando a sua preocupação pelo facto de o pacote Omnibus poder servir para reabrir e renegociar a legislação de sustentabilidade, sendo que as empresas já investiram recursos significativos na preparação e cumprimento dos novos requisitos legais. Os signatários da carta incluem Nestlé, Unilever, Mars, Ferrero, Primark e a Global Network Initiative.
Em cima da mesa: limar arestas e adiar prazos
Da parte do setor financeiro, o BPI espera que os requisitos aplicáveis a este setor sejam alinhados com aqueles que se aplicam ao setor não financeiro. “Se se isentar as entidades não financeiras de requisitos, mas posteriormente obrigar as entidades financeiras a reportar sobre a carteira, então as entidades não financeiras serão igualmente obrigadas a reportar”, evidencia fonte oficial.
Da parte da SRS Legal, conta-se com “a simplificação de uma regulamentação densa, nem sempre congruente”, evitando-se sobreposições e contradições nos requisitos dos relatórios de sustentabilidade, “sem anular os elevados padrões de exigência”, afirma a sócia Carla Neves Matias. Na mesma linha, a sócia de Compliance da Macedo Vitorino, Cláudia Martins, fala em “clarificar definições, alinhar prazos e uniformizar critérios entre a CSRD, a CSDDD e a Taxonomia”, mas sem comprometer a robustez do controlo e prevenção de greenwashing.
Já a partner da PwC Cláudia Coelho prevê que a possa vir a ser constituída uma nova categoria de empresas médias (maiores do que PME e menores do que as grandes empresas). Madalena Perestrelo, consultora sénior de Bancário, Financeiro e Fusões e Aquisições na PLMJ, entende que estas deverão ser aproximadas da regulação simplificada pensada para as PME. Além disso, continua a consultora da PLMJ, as obrigações relacionadas com a sustentabilidade proporcionais à escala de atividades das empresas afetadas. Por fim, conta que se tente evitar o “efeito cascata”, isto é, a transferência de encargos regulatórios de reporte de sustentabilidade de grandes empresas para outros atores na sua cadeia de atividades, o que conduz a um excesso de reporte para empresas de menor dimensão.
Angela Lucas assinala que seria “boa notícia” se surgisse uma “clara interoperabilidade” entre as Normas Europeias de Relato de Sustentabilidade (ESRS) e outras normas usadas pelas empresas (como as normas do International Sustainability Standards Board – ISSB). Perestrelo e Lucas destacam que ferramentas auxiliares à aplicação das regras técnicas (desde “perguntas frequentes” a guiões e recomendações) são “bem-vindas”.
Em paralelo, a partner da PwC aponta uma eventual simplificação do Mecanismo de Ajustamento Carbónico Fronteiriço para entidades mais pequenas.
Por outro lado, a SRS Legal entende que a “alteração dos prazos de implementação é uma necessidade que dificilmente poderá ser ignorada”. Nuno Fernandes, managing partner da Odgers Berndtson Board Solutions, considera “expectável” um adiamento nas obrigações pelo menos para as pequenas e médias empresas, por cerca de um ano. No caso das grandes empresas, “há pressão para reduzir a carga administrativa especialmente no reporte de emissões indiretas.
Olhando à Taxonomia Europeia, o BPI considera “essencial” repensar o Green Asset Ratio (GAR), “dadas as sérias limitações que lhe são reconhecidas”. Um relatório recente da Plataforma EU para o Financiamento Sustentável conclui que os objetivos originais do GAR não estão a ser atingidos, sublinha o banco. Para a instituição é importante que as regras de cálculo sejam clarificadas com antecedência face às datas de reporte, que o processo de cálculo seja simplificado para informação associada ao retalho e que sejam eliminadas inconsistências entre numerador e denominador do rácio. Neste sentido, o BPI sugere que seja ponderada a introdução dos rácios que ainda estão ao abrigo de um período de transição até que o GAR principal esteja estabilizado.
Em relação ao reporte de sustentabilidade, o BPI queixa-se de que em muitos casos, para já, é ambíguo se a informação a reportar pelo setor financeiro diz respeito à atividade direta ou também à atividade dos clientes que são financiados, pelo que apela à clarificação nestes aspetos.
As alterações devem ser “cuidadosamente ponderadas” e “adequadamente comunicadas”, garantindo que as prioridades da Europa se mantêm, balança, por fim, Cláudia Coelho. A sócia da SRS Legal aconselha a que a discussão e alterações sejam realizadas no menor espaço de tempo possível: “A celeridade que conseguir imprimir neste processo fará a diferença, assim como a posterior capacidade de adaptação das empresas.”
Simplificação, sim. Retrocesso, não
“Simplificar e tornar a Europa mais competitiva, sim; rasgar ou desvirtuar completamente o PEE, seria uma oportunidade desperdiçada e um “tiro no pé”, atira Angela Lucas. Numa visão mais otimista, o BPI indica que “não há incompatibilidade entre a necessidade de simplificação e a aposta na transição sustentável”, encarando o processo de revisão como uma oportunidade de melhoria dos requisitos atuais sem que se coloque em causa o objetivo.
“Uma simplificação que não comprometa a integridade dos objetivos ambientais será benéfica para as empresas”, permitindo “dirigir o foco para a melhoria do desempenho e inovação”, entende Cláudia Coelho. Nuno Fernandes afere que faz sentido ajustar regras para garantir que as PME possam cumprir sem custos desproporcionais. Madalena Perestrelo também sublinha que “simplificação não significa desregulação”, sendo que muitas vezes passa por assegurar clareza e facilidade de implementação.
Até aqui, tudo de acordo. Mas “prejudiciais seriam quaisquer alterações que comprometessem a estratégia europeia assente no Pacto Ecológico Europeu (PEE)”, aponta Angela Lucas. Na sequência desta revisão, pode mesmo “abrir-se a caixa de Pandora” e, ao invés de meramente simplificar o edifício jurídico que sustenta o Pacto Ecológico Europeu, reabrir toda a discussão e pôr em causa a própria sobrevivência do pacto, avisa a conselheira no centro de Negócios Responsáveis da Católica. O risco torna-se especialmente vincado sendo que há vozes na atual configuração do Parlamento Europeu a pugnar por que o PEE seja, “pura e simplesmente, rasgado”, remata.
Madalena Perestrelo afirma que também possui “muitas dúvidas sobre a adequação do momento em que estamos a discutir o Pacote Omnibus e a reabrir o diálogo sobre a CSRD, a CS3D [CSDDD] e a Taxonomia”. A CSDDD acaba de ser aprovada, “depois de vários anos de intensa discussão e concessões para se chegar a um consenso final” e a CSRD ainda está a ser transposta nalguns estados, como é o caso de Portugal. “Não houve ainda tempo de testar as obrigações de reporte de sustentabilidade, de aprender com as dificuldades e melhorar a partir daí, pelo que me parece que pode ser precipitado avançar-se já para a revisão”, pontua.
"Não houve ainda tempo de testar as obrigações de reporte de sustentabilidade, de aprender com as dificuldades e melhorar a partir daí, pelo que me parece que pode ser precipitado avançar-se já para a revisão.”
“Um retrocesso total nos requisitos seria negativo”, afere o BPI, ao mesmo tempo que defende que “muita da informação exigida é útil para o setor financeiro e outras partes interessadas”, sendo apenas importante “alguma harmonização, que seria trazida precisamente pela legislação”. Para os bancos, por exemplo, é “muito importante conhecer os riscos físicos e de transição que as empresas do setor não financeiro enfrentam”, para que possam integrar essa informação na respetiva avaliação de riscos.
A redução excessiva dos requisitos de reporte ou de diligência pode ainda “abrir uma porta para práticas de greenwashing”, explica Cláudia Martins, da Macedo Vitorino, caso as empresas cumpram apenas formalmente as suas obrigações, sem que ocorra uma mudança substancial nas suas práticas. Quanto à CSDDD em particular, enfraquecê-la, limitando sua aplicação a grandes empresas ou retirando a responsabilidade legal sobre impactos ambientais e sociais, “pode comprometer os objetivos da legislação e criar desigualdade competitiva no mercado”, alerta Nuno Fernandes.
“Flexibilizar em excesso pode minar a credibilidade da transição verde, afastando investidores e deixando empresas europeias em desvantagem no cenário global. Simplificar não pode significar retroceder”, vinca o managing partner da Odgers Berndtson Board Solutions, Nuno Fernandes. “Os investidores querem previsibilidade e normas claras. Se a UE flexibilizar demais, pode gerar desconfiança e afastar capital sustentável. No entanto, uma simplificação equilibrada pode tornar o mercado europeu mais atrativo, facilitando a alocação de recursos para empresas sustentáveis sem excessos burocráticos”, contrabalança Paulo Rosa.
"Os investidores querem previsibilidade e normas claras. Se a UE flexibilizar demais, pode gerar desconfiança e afastar capital sustentável.”
Mesmo a questão do adiamento de prazos pode levantar problemas. Cláudia Coelho indica que “alterações significativas” neste âmbito, ou mesmo no grupo de empresas abrangidas, “podem ser negativas e colocar em causa os objetivos da legislação, diminuindo a urgência e o foco na ação e enfraquecendo a resposta global”. Outra iniciativa negativa seria a redução ou eliminação das regras que responsabilizam as empresas em caso de incumprimento, acrescenta Angela Lucas.
"Esta simplificação, embora desejável, ocorre num momento em que as empresas que investiram para se adaptarem e cumprirem as exigências legislativas são prejudicadas face às que arriscaram menos.”
As consequências, contudo, não passam apenas pelo possível abalo dos objetivos da legislação: as próprias empresas também podem sofrer. Os principais riscos, na ótica da Macedo Vitorino, são a criação de insegurança jurídica e instabilidade regulatória, quando se tenta “parar um comboio já em marcha”. “Esta simplificação, embora desejável, ocorre num momento em que as empresas que investiram para se adaptarem e cumprirem as exigências legislativas são prejudicadas face às que arriscaram menos”, assinala a SRS Legal. Assim, pode ser afetada a “competitividade entre os bons e os maus alunos”, conclui Carla Neves Matias. Para Angela Lucas, as empresas “mais descuidadas, relapsas ou mesmo incumpridoras”, veem-se agora beneficiadas pelo volte-face da lei. A reabertura do debate pode desincentivar algumas empresas de começarem ou continuarem o caminho da transição sustentável, alerta ainda Perestrelo.
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