“É do lado do Ministério Público e dos Tribunais que os processos ‘ficam’ mais tempo”

Cláudia Amorim, sócia da Sérvulo, faz uma avaliação do conjunto de propostas para melhorar a celeridade da Justiça, nomeadamente nos mega processos, apresentadas pelo CSM. Leia a entrevista.

Cláudia Amorim está na Sérvulo desde 2006. É sócia no departamento de Contencioso e Arbitragem, exercendo a sua atividade com especial incidência na área de Penal e Contraordenações.

Presidente do Forum Penal – Associação de Advogados Penalistas, desde 2022, foi membro da Comissão para a Igualdade de Género e Violência Doméstica da Ordem dos Advogados e membro do Grupo de Trabalho para a Reforma das Contraordenações da Ordem dos Advogados. Integrou também, até 2020, o Comité para a Prevenção da Tortura. Licenciada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em 2002. Iniciou a sua carreira de advogada na PLMJ, primeiro como estagiária, entre 2002 e 2004, e depois como associada, de 2004 a 2005.

Recentemente, o CSM apresentou um conjunto de propostas para melhorar a celeridade da Justiça, nomeadamente nos megaprocessos. Vamos começar por analisar algumas dessas medidas, numa altura em que o Governo prepara uma reforma do CPP. Redução da instrução ao debate instrutório onde só haverá lugar às diligências que o Juiz decidir. Concorda?

Como tenho já tido oportunidade de dizer, a instrução tem, várias vezes, um papel fundamental no desfecho dos processos, evitando precisamente a realização de um julgamento desnecessário ou possibilitando a ida a julgamento de um caso erradamente arquivado. Se fosse utilizada nos termos exatos previstos na lei, certamente serviria ainda melhor esse papel, por isso discordo desta proposta.

Na verdade, a pretendida alteração nada mais faz do que trazer expressamente para a letra da lei aquela que é a prática da maioria dos nossos Juízes de Instrução Criminal. Ao invés, o que deveria ser feito era uma análise dos propósitos e vantagem desta fase, procurando mecanismos que evitem o desvirtuamento dos fundamentos que justificam a intervenção de um Juiz de instrução prévia a um eventual julgamento.

Na própria carta apresentada pelo CSM existe um estudo de Direito Comparado que comprova precisamente que esta fase existe em diversos modelos processuais penais europeus, não se entendendo a razão pela qual se propõe um afastamento do que se pratica nos países analisados.

Redução dos prazos processuais – e para os juízes e MP?

Penso que é uma falsa questão identificar a duração dos prazos processuais para o exercício de direitos dos Arguidos como uma das razões pelas quais os chamados megaprocessos são morosos. Na verdade, é do lado do Ministério Público e dos Tribunais que os processos “ficam” mais tempo, arrastando-se ao longo de anos. A agilização das notificações no estrangeiro (como proposto) poderá ajudar, desde logo, ao encurtamento do tempo que se aguarda pelo início da contagem do prazo, mas esta agilização tem de ser feita sem atropelo dos direitos dos respetivos notificandos. A proposta de os Arguidos deixarem de aproveitar o prazo que começa a contar em último lugar, a meu ver, não tem qualquer efeito útil, já que o processo terá sempre que esperar pelo decurso do prazo relativamente a todos os sujeitos processuais, para além da interferência que isto pode criar na própria estratégia da defesa.

Note-se, aliás, que – e isso é transversal a toda esta proposta apresentada pelo CSM – as reduções dos prazos propostas não se aplicam apenas aos dito megaprocessos.

De facto, era tempo de haver também prazos perentórios para magistrados, pelo menos para a fase de inquérito. Compreendo as dificuldades investigatórias neste tipo de casos e que podem justificar inquéritos mais longos do que os habituais, mas já não consigo compreender a resistência em fixar um prazo findo o qual o inquérito tem obrigatoriamente de ser encerrado, com acusação ou com arquivamento. Até porque, verificados determinados requisitos, o inquérito pode ser reaberto.

Limitação dos recursos, só permitido recurso para o STJ em caso da condenação em pena superior a 12 anos de prisão?

Esta tendência de ir reduzindo a cada passo o direito ao recurso é muitíssimo preocupante, principalmente em processos penais. O STJ tem um papel muito relevante na jurisprudência e, tendo em conta as penas que se aplicam em Portugal (a meu ver, bem, já que a prisão não é necessariamente a melhor solução para punir o agente do crime), esta limitação vai reduzir muito a intervenção deste Tribunal.

Por outro lado, faltou nesta análise do CSM um estudo sobre a procedência dos recursos, já que fica a ideia de que a maior parte dos recursos são meramente dilatórios, quando, na verdade, existem muitas revogações de decisões dos Tribunais de Primeira Instância e também das Relações.

Penso que é uma falsa questão identificar a duração dos prazos processuais para o exercício de direitos dos Arguidos como uma das razões pelas quais os chamados megaprocessos são morosos. Na verdade, é do lado do Ministério Público e dos Tribunais que os processos “ficam” mais tempo, arrastando-se ao longo de anos”

Multas para as manobras dilatórias dos advogados que podem ultrapassar os 10 mil euros e consequentes processos disciplinares. Esta medida deu que falar. Qual a sua apreciação da mesma?

Esta medida vem, na verdade, inserida numa proposta que toda ela parece ser uma espécie de “puxão de orelhas” aos advogados.

Começa, desde logo, com a linguagem utilizada em relação aos advogados que me parece totalmente desadequada. A título de exemplo: classificar o regime de arguição de nulidades, tal como ele é alegadamente usado pelos advogados como “uma inadmissível tutela do direito ao retardamento do processo”; utilizar expressões para classificar a intervenção de advogados nos processos como “atuações reveladoras de desprezo pela celeridade ou mesmo guiadas pelo desiderato de o entorpecer e que obstam ao seu normal prosseguimento mediante a dedução de pretensões inequivocamente desprovidas de fundamento” e até que estes têm “dolo dilatório”. Não se podem fazer estas generalizações, até porque esta não é a realidade na maioria dos processos. A dignificação da figura do Advogado é algo que deve também ser assegurado pelos magistrados, que não podem assumir uma espécie de presunção de que este atua de má-fé.

Não existe, neste documento, qualquer olhar para dentro, de auto responsabilização dos magistrados. Tudo se resume à má-fé processual dos Advogados. Isto é inaceitável.

Restringir a liberdade de atuação dos advogados é o caminho para um processo penal com total desigualdade de armas, menos direitos e menos Justiça. E fazê-lo também através de sanções económicas representa uma enorme penalização para quem tem menos recursos financeiros, acentuando a desigualdade e a injustiça. Sanções aplicadas por quem a lei muito dificilmente permite que seja responsabilizado por decisões erradas.

Enquanto não se perceber que estamos todos no mesmo barco – juízes, magistrados do Ministério Público, advogados, órgãos de polícia criminal, oficiais de justiça – não se alcançarão resultados verdadeiramente estruturantes para a Justiça.

Posto isto, quais são as principais causas da morosidade do sistema judicial em Portugal?

Existem diversos fatores, desde logo alguma falta de meios e deficiente alocação dos meios existentes, o que dificulta a tramitação processual. Embora tenha havido um incremento a este nível, ainda estamos muito aquém do desejável e isso é sentido diariamente por todos os operadores judiciários.

É necessário também distinguir os processos maiores, mais complexos e/ou com mais sujeitos processuais envolvidos, dos restantes, que são a maioria. Nestes, dependendo da comarca, sentem-se melhorias no ritmo processual.

Por outro lado, e embora o processo penal seja uma área mediaticamente mais visível, existem problemas de morosidade muito graves noutras jurisdições, principalmente na jurisdição administrativa, em que os processos estão parados por longos anos.

A dignificação da figura do Advogado é algo que deve também ser assegurado pelos magistrados, que não podem assumir uma espécie de presunção de que este atua de má-fé. Não existe, neste documento, qualquer olhar para dentro, de auto responsabilização dos magistrados. Tudo se resume à má-fé processual dos Advogados. Isto é inaceitável.”

Que medidas apresentaria ao poder político para que se altere este status quo?

Já fomos falando de algumas delas: maior e melhor alocação de meios tecnológicos, fixação de prazos também para os magistrados do Ministério Público e eventualmente também para os magistrados judiciais. Por outro lado, é necessário identificar onde há também falta de meios humanos e reforçá-los, para além das suas competências.

Um exemplo concreto: acontece com muita frequência os juízes não conseguirem marcar determinada diligência porque não há sala disponível no Tribunal. Chega a haver casos de juízes que só têm sala disponível uma ou duas vez por semana. Ora, naturalmente que isto impede o andamento célere dos julgamentos. Muitas vezes são estas questões logísticas que atrasam tudo. Se fosse feito um levantamento criterioso deste tipo de problemas, em cada Tribunal, penso que seria relativamente fácil encontrar soluções.

É importante também que as medidas a implementar não sejam motivadas por um específico caso concreto, mas que resultem de análises profundas e transversais, com total noção da realidade processual em geral.

Quais são os desafios enfrentados pelos advogados na defesa de causas mais impopulares com alguns dos vossos clientes mais mediáticos?

Daquela que é a minha experiência, optando por não contribuir para esse mediatismo no que respeita aos clientes que represento, não sinto que a questão da “impopularidade das causas” seja um tema. Um dos desafios talvez seja esse mesmo, deixar para o processo aquilo que é do processo. Fazer no processo o meu trabalho e apenas ali. Isso muitas vezes é difícil porque certo tipo de processos ocupa, de facto, muito espaço mediático e pode tornar-se um verdadeiro dilema para a defesa a forma como deve lidar com essa pressão, protegendo sempre da melhor forma os interesses do seu cliente.

De qualquer forma, os advogados penalistas, em Portugal, não são só advogados de defesa. Muitas vezes representamos as vítimas, o que também apresenta desafios difíceis.

Os advogados estão a perder força institucional? Temos um CG da OA que só fala de apoio judiciário e CPAS….

Embora as questões relacionadas com as condições de exercício da profissão sejam extremamente relevantes, é necessário que os Advogados se unam também em torno das questões da Justiça no seu todo e a Ordem tem um papel institucional fundamental nesse aspeto, atendendo às suas atribuições, principalmente a de defender o Estado de Direito e os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e de colaborar na administração da justiça.

Mas os Advogados não se podem limitar a criticar a Ordem, podem e devem participar, não ficarem alheados. É muito importante que haja esse trabalho contínuo, ativo, com contribuições de diversos tipos de advocacia, a nível nacional.

E para além do que é possível fazer através da Ordem, os Advogados têm uma voz na sociedade civil, podendo também desenvolver projetos que proporcionem uma melhoria na Justiça. Um desses exemplos é o Forum Penal, de que tenho a honra de ser Presidente, uma associação de advogados e advogadas penalistas que tem vindo também a afirmar-se como um stakeholder de referência nos temas relacionados com a Justiça criminal e contraordenacional.

A formação dos advogados está alinhada com as exigências atuais da sociedade e do mercado de trabalho?

Há realidades muito diversas na advocacia e a formação a que se tem acesso está condicionada pelo tipo de prática (individual ou inserida em escritório/empresa), dimensão da estrutura e até a região. De qualquer forma, na formação obrigatória durante o estágio penso que se recuou demasiado. A meu ver, esta fase de formação é muito importante e devia ser mais completa e mais exigente.

Tem fé que o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) ajude na agilização dos processos judiciais?

Penso que o PRR poderá ser bem utilizado na continuação da meta da transição digital, já em curso, mas ainda com necessidade de muitas melhorias em termos de software e de equipamentos. No entanto, é preciso regular com muito cuidado a utilização de mecanismos de inteligência artificial.

Os mecanismos existentes para promover a transparência e a prestação de contas no sistema de justiça português existem, na prática?

Penso que principalmente no que respeita à “prestação de contas”, esses mecanismos são ineficientes. Como dizia no início, é necessário olhar para dentro, identificar as falhas e como melhorá-las. Assumir erros e responsabilidades.

Enquanto não se perceber que estamos todos no mesmo barco – juízes, magistrados do Ministério Público, advogados, órgãos de polícia criminal, oficiais de justiça – não se alcançarão resultados verdadeiramente estruturantes para a Justiça”

Como os cidadãos podem ter mais confiança na imparcialidade e na eficácia do sistema?

É essencial que haja mais informação sobre os temas relacionados com a Justiça desde a escola primária. Conhecer e entender as bases legais, compreender como funciona o sistema. Só assim o cidadão pode escrutinar e contribuir para a sua melhoria. A edução cívica, na área da Justiça, é fulcral.

Qual é o papel dos cidadãos e da sociedade civil no debate sobre as reformas do sistema de justiça?

O envolvimento da sociedade civil é imprescindível. É necessário criar grupos de trabalho que incluam contributos tanto da Academia, como de outras profissões não jurídicas que lidam diariamente com os Tribunais e, bem assim, auscultar os cidadãos que já estiveram envolvidos em processos judiciais e que possam transmitir uma visão prática do impacto dos problemas da Justiça nas suas vidas.

Envolver também as Associações que lidam com vítimas, arguidos e reclusos. Os temas relacionados com o sistema prisional não devem ficar de fora e são muitas vezes menosprezados. Sem verdadeira reabilitação, não se consegue chegar a bom porto.

Qual é o papel da comunicação social na promoção da transparência e da compreensão do sistema judicial?

A perceção que a maior parte dos cidadãos tem sobre o sistema judicial, principalmente no que respeita aos processos-crime, é dada pela comunicação social. A sua função pedagógica é fulcral e incontornável, daí ser tão importante prestar informação de forma responsável, completa e isenta.

Esta informação deve não só trazer ao conhecimento factos potencialmente geradores de responsabilidade criminal e o acompanhamento de processos com interesse público, que não estejam sujeitos a segredo de justiça, mas também dar a conhecer o desfecho de tais processos e o seu encerramento definitivo, permitindo a existência real de um verdadeiro direito ao esquecimento.

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