A (nova) perda de bens: entre passos em frente e os desafios de um “mundo novo”

  • Tiago Coelho Magalhães
  • 14:29

A novidade que assumirá contornos seguramente mais controversos corresponde à possibilidade de ser determinada a perda de bens sem condenação — embora também isso resulte da própria Diretiva.

Apesar do anúncio ontem efetuado pelo Governo, a proposta de lei apresentada, no essencial, mais não é do que a transposição, para o ordenamento jurídico nacional, da Diretiva Europeia 2024/1260, aprovada em abril de 2024.

O texto da Diretiva, seja nos seus considerandos iniciais, seja no respetivo articulado, é bastante claro e taxativo quanto à exigência imposta aos Estados-Membros no sentido de adotarem medidas que permitam a apreensão de bens necessária a garantir a sua eventual perda. E, considerando a força obrigatória das diretivas, que impõem aos Estados-Membros autênticas «obrigações de resultado», pouca margem subsiste para que o legislador nacional possa prever soluções muito diferentes das propostas pela diretiva. Ainda que a concretização legislativa possa variar, sempre deverá ser alcançado o fim e o propósito enunciado na diretiva. Tal não significa que o texto final da lei nacional que vier a ser aprovado não possa suscitar diversos problemas de conformidade constitucional, como muito provavelmente será aqui o caso.

Existem, no entanto, alguns aspetos positivos a salientar, nesta proposta de lei que irá ser apresentada à Assembleia da República. Em especial, a previsão, no processo penal, de um novo sujeito processual: a «pessoa afetada» pelas decisões de apreensão, arresto ou perda, com a previsão de um catálogo dos respetivos direitos e de deveres processuais. Será especialmente importante nos casos em que essas pessoas não sejam os próprios arguidos ou suspeitos, mas antes terceiros que, no momento da apreensão de um determinado bem, detêm efetivamente esse bem, ou seja, o bem encontra-se na sua posse — sendo esses terceiros titulares de direitos, interesses ou expectativas legítimas relativamente ao próprio bem, que importa proteger (isto poderá ser especialmente relevante para as instituições bancárias, quando sejam titulares de garantias sobre saldos bancários que venham a ser apreendidos).

No entanto, quanto a algumas soluções inovadoras, suscitam-se várias dúvidas e será importante aguardar pelo texto final da proposta de lei para compreender melhor o seu sentido e alcance, até para aferir se essas soluções ainda respeitam, ou não, a Constituição:

  1. A novidade que assumirá contornos seguramente mais controversos corresponde à possibilidade de ser determinada a perda de bens sem condenação — embora também isso resulte da própria Diretiva (e o Governo tenha concretizado que essa solução apenas valerá para bens, não para valores). Por um lado, o novo quadro legal deverá prever algumas circunstâncias mais ou menos objetivas em que essa perda poderá ocorrer: serão as hipóteses de morte, doença ou incapacidade ou mesmo fuga do arguido ou suspeito, bem como prescrição — tudo situações em que não houve condenação. Embora seja importante o rigor legislativo na definição destas situações (sobretudo doença, incapacidade ou fuga, que podem ser conceitos menos determinados), o aspeto seguramente mais problemático será a possibilidade de perda sem condenação, nos casos em que se demonstre que seria possível o processo penal ter levado a uma condenação quanto a crimes ou infrações que poderiam ter gerado um «benefício económico substancial», e desde que o tribunal fique convencido de que as vantagens, instrumentos ou bens alvo de perda resultaram da infração ou da atividade criminosa. De acordo com a nota explicativa da proposta de lei que foi divulgada, será suficiente a demonstração de que «os bens em causa advêm de atividade criminosa, ainda que não se possa determinar exatamente de que factos ilícitos típicos se trata». Antecipo que esta solução suscitará não apenas muito debate, mas também sérias dúvidas de conformidade com a Constituição: dependendo daquilo que o texto legislativo venha a prever, isto poderá não ser mais do que uma mera presunção. Implicará, por isso, um exercício mais aprofundado e cuidado de fundamentação por parte dos tribunais, mesmo que a proposta de lei venha a prever «indícios que o tribunal pode considerar para fundamentar a sua convicção». Será essencial um especial cuidado, por parte do legislador, na definição desses indícios. E, a jusante, uma exigência de acrescido dever de fundamentação das decisões judiciais, por referência a factos provados e a elementos de prova, sob pena de este instrumento se poder converter num «cheque em branco» que poderá conduzir a situações de verdadeiro confisco arbitrário e ilegítimo;
  2. Antecipa-se que, em cumprimento da Diretiva, passe também a ser possível a perda de bens de terceiros, ou seja, bens que tenham sido transferidos, direta ou indiretamente, pelo arguido ou suspeito a terceiros e que constituem vantagem do crime, caso o terceiro soubesse ou devesse saber que aquela transferência do bem apenas visava evitar a sua perda. Embora a informação para já divulgada sobre a proposta de lei não especifique, a Diretiva descreve situações em que essa perda de bens de terceiros se poderá efetivar: por exemplo, se a transferência do bem do arguido ou suspeito para o terceiro tiver sido a título gratuito ou a um preço considerado inferior ao valor de mercado; ou se, mesmo depois de transferido para terceiro, o bem continuou sob o controlo efetivo do arguido ou suspeito. Importará perceber se o legislador nacional irá apenas prever estas hipóteses ou outras, uma vez que a Diretiva dá margem para isso. Ainda assim, essas hipóteses devem ser previstas de forma clara e inequívoca, para salvaguardar a certeza e a segurança jurídica e evitar decisões arbitrárias;
  3. De acordo com o Governo, a nova legislação permitirá ainda que o Gabinete de Recuperação de Ativos possa adotar «ações imediatas», no sentido de «congelar» os bens (o que corresponde a uma solução imposta pela Diretiva). Será, contudo, essencial compreender os específicos requisitos em que essas «ações imediatas» serão admissíveis, assumindo sempre que assumem natureza excecionalíssima e que são, de facto, necessárias e proporcionais, no caso concreto, e de acordo com as exigências cautelares de cada situação.
  • Tiago Coelho Magalhães
  • Associado principal da Morais Leitão

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