No dia internacional da cerveja, o ECO faz um retrato do mercado das cervejas artesanais em Portugal. É que até as grandes cervejeiras já começaram a vender IPA.
Foi numa conversa com amigos de infância que o empresário Rui Figueiredo, 41 anos, “um pouco a brincar, um pouco a sério”, decidiu testar o arquiteto Luís Rosa e o engenheiro informático Sérgio Cruz. “E se?…”
A condicional virou ideia e, da ideia à prática, passou pouco mais de um ano. “A ideia foi acolhida muito rapidamente pelos três sócios e, também, instintivamente, teve um propósito definido: estávamos ali nós, na nossa pequenina mas muito querida aldeia e, pela cabeça de todos passou a ideia de que seria uma cerveja de e para a região”, conta Sérgio, em conversa com o ECO. Em Oliveira do Hospital, depois daquela conversa no verão de 2014, nasceu a Rapada, o desejado “estandarte da região” que “alinhasse também com os principais sabores locais, nomeadamente o queijo Serra da Estrela”, relata o engenheiro.
Da produção em casa à linha de produção
A Oitava Colina nasceu na Graça, a oitava colina da cidade de Lisboa — que não entra na famosa enumeração — pelas mãos de João Lobo, João Camejo, Fernando Gonçalves e Sérgio e Pedro Romão. O último sócio explica ao ECO que “quando começámos nesta aventura, em 2014, a nossa missão era contribuir para alterar o panorama cervejeiro em Portugal”, uma vez que o que encontravam no mercado não enchia as medidas.
Três anos e sete colaboradores depois, a empresa conta já com mais de 300 clientes e Pedro Romão aponta que o objetivo principal já foi cumprido: “Tem piada termos lançado uma IPA [Indian Pale Ale, um tipo de cerveja mais amarga] no início de 2015 que é já um ícone do movimento craft em Portugal, e agora ir na rua e olhar para a publicidade da Sagres e da sua versão de uma IPA. É engraçado ver que os grandes ‘cervejeiros’ vêm atrás de nós”, afirma o cervejeiro artesanal.
Noutro ponto da capital, a história da Lince começa, mas longe da cerveja: António Carriço e Pedro Vieira eram colegas de trabalho numa das maiores telecoms do mundo, mas a vontade de fazerem algo diferente juntou-os neste desafio. “Fazíamos quantidades muito pequenas para partilhar com família e amigos”, conta António Carriço ao ECO.
O hóbi tornou-se profissão e seguiu-se a venda direta e um novo sócio: Adão Coelho. “Começámos a vender em novembro do ano passado, temos cerca de seis meses de vendas”, continua o empresário, tornado cervejeiro. “De qualquer modo estamos muito satisfeitos com o negócio.” De tal modo que vão ter de duplicar o seu volume de produção através da expansão da sua fábrica.
Foi há ano e meio, pouco tempo depois, que arrancou a Musa, um projeto de co-criação entre os ex-consultores Bruno Carrilho e Nuno Melo. Depois de regressar de uma viagem pós-demissão, no outono de 2014, Nuno desafiou o amigo a lançar um dos 50 negócios que tinha em mente. Só que, a ideia que deu origem ao negócio não veio da viagem de Nuno mas da boleia Porto-Lisboa que Bruno lhe deu. “E se lançássemos uma cervejeira artesanal?”, desafiou o ainda consultor. Entretanto, muito mudou. “O mercado e a Musa transformaram-se drasticamente! Em relação ao mercado há cada vez mais produtores, variedades de cervejas, postos de venda e pessoas interessadas no movimento da cerveja artesanal. Acabou a ditadura da pilsnerAca [o tipo de cerveja mais consumido no mundo]”, diz Nuno Melo, cofundador da marca.
Mas, se durante mais de um ano, as cervejas da marca foram produzidas em fábricas de outros produtores, o crescimento levou também ao investimento: em fevereiro deste ano, a Musa começou a produzir na fábrica da marca. “Apesar de termos crescido significativamente durante o período em que fazíamos outsourcing da produção, isso limitava a nossa expansão no mercado. Agora que estamos ‘em casa’, temos maior flexibilidade e capacidade para continuar a crescer”, conta Nuno. Por isso, se no primeiro trimestre de 2016 a Musa demorava três meses a vender 2.000 litros de cerveja, no mês passado [junho] venderam dez vezes esse valor.
A Musa, acrescenta o fundador, cresceu em sintonia com essa transformação. Ou, de alguma forma, foi — também — responsável por ela. “Na verdade, acho que temos tido um papel importante na explosão da categoria. Entre 2015 e o início de 2016, éramos apenas dois, hoje somos 11”, conta. Das três cervejas do início — Born in the IPA, Mick Lager, Red Zeppelin Ale — a Musa produz atualmente mais de dez diferentes. E a fábrica, nos planos desde o dia um, funciona desde o início do ano.
“Temos cervejas cada vez mais consistentes e fizemos uma grande aposta comercial e de distribuição, pelo que aumentámos significativamente a nossa capilaridade no país e, recentemente, fora dele.” Tudo agregado, há mais uma novidade recente. Desde a última quinta-feira que a Musa tem o tap room aberto, uma espécie de “casa da Musa”. “Só faremos a inauguração oficial em setembro — ainda estamos em modo ‘piloto’ — mas já podem vir aqui beber um copo connosco”.
“A Musa tem um ano e meio. Só recentemente é que ‘começámos a andar’, pelo que ainda temos muito para crescer, ainda mais para amadurecer. No entanto, acreditamos que em pouco tempo conseguimos dar um salto significativo e ser já uma das marcas de referência no país. Isso enche-nos de orgulho. Mas ainda estamos longe do nosso objetivo de completar a democratização da craft beer em Portugal. Mas temos a certeza que vamos lá chegar.”
Acabou a ditadura da pilsner!
Cerveja como estilo de vida
Se a falta de opções por parte das marcas industriais fez com que muitos pusessem, a medo, o pé direito no caminho do malte e da cerveja artesanal, esta limitação afeta também o consumidores que, sem informação, se veem sempre restritos às mesmas receitas.
“Há quatro anos, lembro-me de estar num corredor de 30 metros repleto de cerveja e de ver apenas um estilo, mudando apenas o rótulo e o formato das garrafas”, conta, ao ECO, Pedro Romão. “Depois chegava a casa e conseguia fazer a cerveja que eu quisesse. Sentia-me um pouco enganado, pois toda a minha vida de consumidor de cerveja me impuseram um estilo apenas.” Consequentemente, o desconhecimento em relação aos diferentes tipos de bebida afirma-se como uma barreira muito forte ao desenvolvimento dos negócios dos cervejeiros artesanais, uma barreira que, para estes, tem de ser ultrapassada através da educação e informação.
Desta forma, dentro do caminho do malte, há muitos mapas a utilizar: a Lince é, nas palavras de um dos seus progenitores, “uma cerveja para quem gosta de cerveja, e não para quem gosta de cerveja artesanal”, isto porque os últimos gostam de “sabores mais exóticos”. Com três opções de escolha, o objetivo é que o consumidor comercial também goste destas.
Nuno Melo, da Musa, não tem dúvidas de que quanto mais se fala, mais se sabe. “Muitas vozes têm mais força do que uma só. E há uma união muito bonita, rara na maioria dos mercados, entre as várias cervejeiras artesanais. Somos todos amigos, bebemos copos juntos, encomendamos matérias-primas em conjunto e sugerimos cervejas uns aos outros”, conta, em entrevista ao ECO.
"Há uma consciência coletiva que resulta em algo mais do que a lançar uma marca individualmente. Estamos todos a desbravar caminho para uma nova categoria de produto e, por isso, todos temos um papel muito importante na educação dos consumidores e pontos de venda e, também, no protagonismo merecido da cerveja artesanal.”
Talvez por isso, para a Musa, a marca seja muito mais do que cerveja. “A música [por exemplo] é o ADN da marca. A Musa é uma cerveja mas também é uma atitude, uma forma de estar, e não queremos perder nunca isso. Queremos que os nossos rótulos façam sorrir e que as nossas cervejas deem vontade de dançar”, diz Nuno.
O caminho feito pela Musa é comum a outras marcas. A Cerveja Rapada, por exemplo, fala de “muita mata virgem” por explorar num caminho, muitas vezes, “pedregoso”. “Nessa altura, em 2015, o fenómeno cerveja artesanal era ainda um embrião em desenvolvimento e, se pouca gente o conhecia, ainda menos pessoas acreditavam que pudesse ser algo para ficar”, lembra o engenheiro informático Sérgio Cruz que, com Rui Figueiredo e Luís Rosa lançaram há cerca de dois anos a marca Rapada, produzida em Oliveira do Hospital.
“Parece uma anedota mas o primeiro investimento cifrou-se nuns extravagantes 400 euros. (…) Foi difícil entrar no mercado, encontrar distribuidores e foi necessária muita evangelização. (…) Obviamente que tudo cresceu e esse número é hoje desfasado. Isto para dizer que também nós tivemos uma abordagem cautelosa”, acrescenta.
"Sempre foi claro para nós comercializar local, nacional e internacionalmente. Embora a Cerveja Rapada já tenha visitado mercados em todos os continentes, ainda não dispomos de uma exportação regular. ”
A Oitava Colina é o lar do Zé Arnaldo, da Urraca Vendaval e da Florinda, os três tipos de cerveja produzidos. Pedro Romão define-as como uma utilização “honesta dos ingredientes”, “cujo principal foco é a qualidade”. Os utilizadores da Untappd, a maior rede de avaliação de cervejas do mundo concordam com esta definição, tendo considerado a Urraca Vendaval como a melhor cerveja artesanal do país.
Com todas as diferenças, para António Carriço não há dúvida de qual é a melhor: “Para brincar, costumamos fazer uma adaptação de um slogan conhecido e dizemos que é a Lince é provavelmente a melhor cerveja artesanal portuguesa.”
Nuno Melo diz que o desconhecimento é, mais do que uma ameaça, uma oportunidade de potenciar o negócio. “É claro que o número atual de clientes da cerveja artesanal não é certamente suficiente para viabilizar um número tão elevado de marcas. No entanto, acreditamos – penso que todos nós, no meio – que o mercado irá continuar a crescer muito nos próximos anos. E é este mercado potencial que justifica a existência de tão elevado número de marcas”, diz, acrescentando que a verdadeira questão é saber quanto mais poderá a cerveja artesanal crescer nos próximos 5-10 anos e quantas marcas é que esse mercado futuro poderá sustentar. “Não sabemos, naturalmente, a resposta à primeira pergunta mas não temos dúvidas que será um mercado muito maior do que o atual. Também não sabemos quantas marcas poderão existir na altura, mas acreditamos que, no novo paradigma da indústria e do mercado, serão muitas, provavelmente algumas dezenas”, acrescenta.
Cerveja portuguesa é cerveja do mundo?
Por cá, não há dúvida que a cerveja nacional é rainha. Um estudo da Nielsen aponta para que, a manter-se a este ritmo, 2017 venha a ser o ano com maior crescimento do consumo de cerveja da última década. Após a bebida ter perdido lugar nas casas e nas mãos dos portugueses, cerca de três milhões de lares consumiram cerveja em casa no último ano. O produto é consumido maioritariamente por pessoas entre os 26 e os 45 anos, especialmente do sexo masculino, “embora seja evidente um aumento do consumo de cerveja entre as mulheres”, acrescenta a Nielsen, sublinhando que é nas zonas da Grande Lisboa e no Litoral Norte que se regista maior consumo desta categoria.
Para Tiago Aranha, Client Development Manager da agência, “a recuperação da conjuntura económica, o aumento do número de consumidores e as condições climatéricas favoráveis são três fatores-chave para que este crescimento se continue a verificar até ao final do ano”.
No estrangeiro, continua a ganhar território, não só devido às grandes marcas como também pela necessidade de dar a conhecer o que se faz artesanalmente. Com nove meses de negócio, a Lince ainda não vende para fora. Ainda assim, António Carriço afirma que as suas cervejas já são do mundo, visto que “muito do consumo que é feito em Portugal é feito por turistas estrangeiros.” E as reações têm sido muito positivas.
Quase dois anos depois de produzidas as primeiras garrafas, a Musa começou há dois meses a exportar produção. “Começámos a enviar para Espanha, França, Holanda, e Inglaterra começa este mês”, enumera Nuno. “São quantidades pequenas e, na verdade, tudo para importadores que nos vieram bater à porta. Mas é esse o caminho. Queremos que represente um terço das nossas vendas em 2018”, assinala. A marca chegou também, há pouco tempo, à barreira das 100.000 garrafas vendidas o que expressa, não só o aumento de vendas mas a diversidade de referências. “Temos uma lógica de portefólio fixo em que temos quatro cabeças de cartaz — Born in the IPA, Mick Lager, Red Zeppelin Ale e Twist and Stout. Depois, em determinadas alturas do ano, surgirão cervejas sazonais, como é o caso da recém-lançada Saison O’Connor. E depois faremos cervejas que, na maioria das vezes, só existirão em Barril, a que chamamos experimentais. Aqui cabem as nossas Ale that She Wants, Baltic Sabbath, Cafe D’Ale Mar”, esclarece.
Por ser um negócio eternamente experimental, o investimento feito nos primeiros passos ainda não viu o retorno total. “É uma indústria onde o capex é muito elevado. Não tem nada a ver com os negócios tech que agora estão em voga. Aqui investe-se muito no início e espera-se bastante tempo para ter o pay-back do investimento. E vamos continuar a querer crescer e a investir o que resulta naturalmente num adiamento desse break-even“, explica Nuno Melo.
Por sua vez, a Oitava Colina já ultrapassou as sete de Lisboa e de Portugal e, segundo o sócio Pedro Romão, conta com uma forte exportação para o mercado da saudade, principalmente no Reino Unido, França e Luxemburgo. Para breve está a entrada na Suíça.
Quer fazer cerveja? Siga estas dicas
Por mais que estas marcas de cerveja artesanal difiram nas suas características, públicos e mercados, há um assunto que gera consenso em todos os cervejeiros com quem o ECO falou: fazer cerveja é fácil. Em caso de dúvida, cada um deixou a sua dica:
- “O principal é saberem que é muito simples. Podem-se comprar uns kits, em que a cerveja vem já meia feita e faz-se boa cerveja para partilhar com os amigos e a família” – António Carriço
- “É muito fácil fazer cerveja em casa, experimentem, ponham mãos à obra. Não desanimem com resultados menos bons e continuem a desenvolver receitas. Inventem, brinquem com ingredientes, desenvolvam mecanismos que aperfeiçoem o processo” – Pedro Romão
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
Artesãos da cerveja querem derrubar a ditadura industrial
{{ noCommentsLabel }}