E se as quotas de género fossem obrigatórias hoje? Só um terço das empresas cumpria a lei
O Governo vai avançar com uma proposta de lei que obriga empresas públicas e cotadas em Bolsa a cumprirem quotas de género nos conselhos de administração e comissões executivas.
Foi uma das bandeiras do PS ainda durante a campanha para as legislativas de 2015: a luta pela igualdade de géneros no mundo empresarial. Agora, está tudo pronto para avançar. O Governo vai entregar à Assembleia da República, muito em breve, a proposta de lei que irá obrigar as empresas públicas e cotadas em Bolsa a cumprirem quotas de género.
Assim, a partir de 2018, as empresas vão ter de reservar uma percentagem dos cargos nos conselhos de administração e comissões executivas para o género menos representado no topo das empresas — que é como quem diz, “para mulheres”, sem ferir suscetibilidades.
Quem está pronto para cumprir as metas do Governo? Muito poucos. E o problema não está só no clube de cavalheiros que é o PSI-20. Está, também — ou sobretudo –, no mau exemplo do Estado.
Mas… e o mérito?
Desengane-se quem pensa que não se tentou chegar lá por outras vias que não a imposição.
Estávamos em 2013 quando 21 empresas nacionais assinaram um acordo onde se comprometiam a promover a igualdade de géneros, numa iniciativa dinamizada pela Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE).
A EDP — a mesma que tem hoje zero mulheres no conselho de administração –, o Banco Espírito Santo — aquele que agora se chama Novo Banco mas que mantém a velha tradição de só ter homens a liderar a empresa –, ou as administrações dos portos nacionais — que continuam a ser das empresas mais desiguais no que toca ao género, como poderá ver mais em baixo — foram algumas das empresas que assinaram o acordo.
Mais tarde, em junho de 2015, a então secretária de Estado da Igualdade, Teresa Morais, conseguia que 13 empresas cotadas, das quais nove do PSI-20, assinassem um acordo para, voluntariamente, alcançarem uma meta de 30% dos cargos de administração ocupados por mulheres em 2018.
BCP, Impresa, EDP, EDP Renováveis, Pharol, Galp, Luz Saúde, CTT, Lisgráfica, Media Capital, REN, Banif e Glintt foram as 13 empresas que assinaram esse acordo em meados de 2015. Um ano e meio depois, à exceção dos CTT e da Media Capital (e com a devida escusa para o Banif, que já não existe), nenhuma das outras consegue sequer chegar à meta mais branda, de 20%, que o atual Governo quer impor.
Olhando para o contexto nacional, um estudo da Informa D&B mostra que as mulheres representam 42,2% da força de trabalho das empresas em Portugal, mas apenas 8,9% das funções de direção geral são desempenhadas por elas.
Não é difícil de concluir que, até agora, a autorregulação não tem funcionado.
Se avaliamos o talento no pressuposto de que os grupos subrepresentados não merecem ocupar cargos de topo, estamos a dizer que os homens brancos e ricos são, naturalmente, mais meritórios.
Está bem, mas e o mérito? Já dizia Teresa Morais, ao Dinheiro Vivo, no ano passado: “Estou convencida de que o mérito não nasceu masculino”.
Traduzindo: a ideia não é eleger mulheres sem qualquer critério de seleção. É, sim, que numa situação em que haja mais do que um candidato a um cargo, homens e mulheres, com percursos profissionais e académicos semelhantes, seja dada prioridade às mulheres, para que, gradualmente, possa ser alcançada a paridade de géneros nos cargos de liderança.
Há que ter medidas para impor [a igualdade]. Quem tem o poder nunca quer largar o poder.
Desenvolvendo: o argumento de que as quotas anulam o mérito é, aliás, um mito, defende Rainbow Murray, uma professora de política num artigo publicado no blogue da London School of Economics. Sobretudo, porque deixa implícito que os grupos sub-representados, incluindo mulheres, minorias étnicas e classes sociais baixas, estão sub-representados nos cargos de liderança porque não merecem ocupá-los, argumenta a professora. “Se baseamos a nossa avaliação do talento neste pressuposto, então estamos a dizer que os homens brancos e ricos são, naturalmente, mais meritórios do que quaisquer outros grupos”, escreve.
E concluindo: “Na década de 80, dizia-se que estes problemas das diferenças salariais e de chegar ao poder seriam resolvidos naturalmente, porque as mulheres estavam a qualificar-se rapidamente. Estamos em 2016 e essa não é a realidade. Portanto, há que ter medidas para impor essa realidade. Quem tem o poder nunca quer largar o poder“, dizia, no início deste ano, a atual secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, Catarina Marcelino, em entrevista ao Dinheiro Vivo.
Quem tem de cumprir o quê?
O diploma ainda não é conhecido, mas há alguns detalhes já divulgados. Desde logo, as exigências feitas às empresas do Estado e às cotadas em Bolsa vão ser diferentes.
Nas primeiras, 33,3% dos cargos de administração terão de ser ocupados por mulheres a partir de 1 de janeiro de 2018; a 1 de janeiro de 2019, esta percentagem já terá de ter subido para 40%. Ainda entre as empresas públicas, o setor empresarial local só terá de cumprir uma quota de 33,3% em 2018.
No caso das cotadas, a exigência será menor: uma quota de 20% a partir de 1 de janeiro de 2018 e de 33,3% a partir de 2020.
Também haverá sanções para as empresas que não cumprirem estas quotas, mas ainda não se sabe ao certo quais serão. No caso das empresas públicas, chegou a falar-se da possibilidade da nulidade da designação de um conselho de administração. Já para as cotadas, a sanção poderá ser a sinalização pública do incumprimento na internet. A suspensão da negociação em Bolsa também já foi uma hipótese apontada.
Onde estão as mulheres? Não no PSI-20
Vamos a números. São poucas as empresas da Bolsa que podem dizer que já cumprem a lei. O grande destaque vai para a Sonae Capital, a única cotada com uma mulher a liderar a comissão executiva: Cláudia Azevedo. Nos últimos dias, também a Galp deu um passo importante, com a nomeação de Paula Amorim para presidente conselho de administração. A petrolífera não cumpre, ainda assim, a meta dos 20%.
A Corticeira Amorim, a Sonae e a Altri também se destacam das restantes empresas, por terem as percentagens mais elevadas de cargos ocupados por mulheres nos conselhos de administração.
Mas não é esse o panorama geral. Na verdade, dos 220 membros que compõem os conselhos de administração das empresas do PSI-20, só 33 são mulheres, o que representa 15% do total. Há quatro empresas — EDP, Montepio, Semapa e The Navigator Company — que não têm uma única mulher nos conselhos de administração.
As comissões executivas são ainda mais desiguais. Dos 84 membros das comissões executivas, nove são mulheres, o equivalente a 10,7% do total. O número de cotadas sem uma única mulher na comissão executiva é avassalador: onze, mais de metade das 18 empresas que compõem o PSI-20.
A conclusão destes números? Se a lei que introduz as quotas de género entrasse hoje em vigor, só seis das 18 empresas do PSI-20 (ou um terço) estavam prontas para cumpri-la.
Pior ainda, mesmo tendo tempo para se adaptarem às novas exigências, uma parte significativa das empresas não vai conseguir fazê-lo, assumindo que as atuais administrações cumprem o mandato até ao fim. Isto porque, das 18 empresas do PSI-20, sete têm conselhos de administração com mandatos para cumprir até depois de janeiro de 2018, o prazo limite para que atinjam a meta de 20% dos cargos ocupados por mulheres.
Isto é: se a EDP, a EDP Renováveis, a Galp, o Montepio e a The Navigator Company não convidarem mulheres para os conselhos de administração antes de os atuais mandatos terminarem, estarão em incumprimento a 1 de janeiro de 2018.
O ECO entrou em contacto com todas as empresas que não cumprem a meta que o Governo vai impor. Só o BPI respondeu, apenas para dizer: “Neste momento, nada temos a comentar”.
O Estado devia dar o exemplo? Devia. E dá? Não
O cenário é ainda mais preocupante entre as empresas do setor empresarial do Estado. Não só o prazo é mais curto e a quota mais exigente, como a falta de mulheres é mais evidente. E não falamos apenas da Caixa Geral de Depósitos (CGD), o caso mais gritante — mais que não seja, porque foi a última administração a ser nomeada, já depois de o Governo ter anunciado que ia introduzir quotas de género nas empresas, e porque, entre os 11 administradores, não há uma única mulher.
Analisadas 18 das maiores empresas públicas, só cinco já têm os conselhos de administração compostos por 33% ou mais de mulheres: Docapesca, Administração dos Portos da Madeira, Parpública, RTP e CP.
Mais uma vez, não é este o panorama geral. Um estudo publicado pela Direção-Geral da Administração e do Emprego Público, da autoria de Vanessa Tatiana Pita, uma aluna do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, conclui que, entre 2012 e 2015, 68% dos nomeados para cargos de direção superior na administração pública foram homens. A disparidade é tanto maior quanto mais altos forem os cargos.
Este estudo teve em consideração 411 concursos para cargos de chefia, realizados entre 2012 e 2015, e os candidatos nomeados para esses cargos. Uma análise muito mais rápida permite chegar a uma conclusão semelhante. Dos 87 membros dos conselhos de administração das 18 empresas públicas analisadas pelo ECO, apenas 15, ou 17,24%, são mulheres.
Conclusão: menos de um terço destas grandes empresas públicas está preparado para cumprir a lei que aí vem. Algumas não estão sequer perto. Além da CGD, também a TAP, a Companhia das Lezírias e as administrações dos portos de Aveiro, Açores e Sines não têm qualquer mulher nos conselhos de administração.
Também no setor público, há o problema dos mandatos. A intenção do Governo é que a quota de 33,3% seja cumprida a 1 de janeiro de 2018. A maioria das empresas públicas que não cumprem esta meta também terá os atuais conselhos de administração ainda em funções nessa data.
E a lei vai passar?
É provável que sim. À esquerda, o Governo deverá contar com o apoio do Bloco de Esquerda, defensor habitual de políticas ativas pela igualdade de géneros.
A surpresa poderá vir do PSD, que, quando era Governo, não quis que as quotas fossem obrigatórias porque queria “esgotar primeiro a possibilidade de que as empresas o quisessem fazer através de um compromisso”. Agora, é capaz de mudar de ideias.
Pelo menos, a julgar pela proposta de alteração ao Estatuto do Gestor Público, que apresentou recentemente e onde defende que haja “alternância de género” no cargo de presidente das empresas públicas e que haja uma “representação mínima de 33% de cada género”.
Os votos contra poderão vir do CDS e do PCP, que, historicamente, se opõe à imposição de quotas. Em 2006, quando foi publicada a Lei da Paridade, que estabelece que as listas para a Assembleia da República, o Parlamento Europeu e as Autarquias Locais têm de ter uma representação mínima de 33% de cada género, os comunistas votaram contra o diploma, dando preferência, por exemplo, ao reforço dos direitos da maternidade.
Na altura, Fernanda Mateus, então na comissão política do PCP, questionou: “Por que razão se impõem regras para as listas partidárias e não se impõem para os altos cargos na administração pública ou para a formação dos governos?”.
Está aqui a oportunidade.
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