Esta é a história de como um ex-administrador do Twitter propôs aos jornais digitais um novo modelo de negócio que resgata os princípios da imprensa tradicional. Como? Criando o Flipboard.
“Vejam só o que eu encontrei!”, diz Marci McCue enquanto passa o iPhone ao marido. Ao olhar para o ecrã, Mike não encontra melhor reação: “What?!” O telemóvel mostra o Flipboard, uma aplicação móvel que permite ler, guardar e partilhar artigos que abrangem um vasto leque de tópicos e interesses. A razão da surpresa é a conta da Associação de Turismo do Porto. Com mais de 180 “revistas” criadas, 3.400 artigos partilhados e quase 300 seguidores, o perfil impressiona o fundador daquela rede social, que não estava à espera de ver uma conta portuguesa tão ativa na plataforma.
Lançado há sete anos, o Flipboard é relativamente desconhecido em Portugal quando comparado com o Facebook, o Twitter ou mesmo o Reddit. No entanto, lá fora, já tem uma dimensão considerável: são 100 milhões de utilizadores mensais ativos. Desse número, cerca de 70 milhões de pessoas usam o Flipboard todas as semanas. Também há quem o use “todos os dias, várias vezes por dia”. E em Portugal? Apesar de ainda não ter suporte na região, Mike McCue garante que a plataforma tem por cá “o mesmo alcance per capita” registado “na maioria dos países europeus”. “É uma base sólida”, comenta o criador do Flipboard e ex-membro do conselho de administração do Twitter, numa entrevista exclusiva ao ECO à margem do Web Summit.
Tal como na imprensa em papel, boa publicidade e bom conteúdo é algo pelo qual os consumidores estarão dispostos a pagar.
O melhor do papel, mas no digital
Talvez já conheça a aplicação. Algumas marcas de dispositivos móveis instalam o Flipboard de origem em certos modelos de tablets e telemóveis. Mas a verdadeira história está na visão de Mike McCue para o futuro dos media numa era digital. O empreendedor norte-americano acredita que um bom modelo de negócio para os jornais digitais passa por aproximar mais o conteúdo digital daquilo que se encontra no papel. Esse é o ideal que está na base do Flipboard. É também o conceito que lhe permite cobrar mais aos anunciantes por um tráfego mais segmentado. E é por isso que a rede chega a representar 10% de todo o tráfego para alguns meios de comunicação social estrangeiros.
Tudo começou assim: “Lembro-me de ver um artigo maravilhoso na National Geographic. Era mesmo muito bonito: a tipografia, as fotografias, os mapas, a publicidade. Tudo estava simplesmente fantástico”, recorda Mike McCue, quando questionado sobre a origem da ideia por detrás do Flipboard. “Então, fui à internet e encontrei o tal artigo, mas não tinha nada a ver com o que vi no papel. Estava dividido em oito páginas diferentes para aumentar as page views. Todas as imagens estavam numa fotogaleria. Havia publicidade no meio do ecrã, com tudo espalhado. A tipografia não existia. E os anúncios eram aqueles banners péssimos. Pensei: porque é que estes sites não são capazes de criar uma experiência maravilhosa no digital como se faz no papel?”, conta.
No problema, o norte-americano viu a oportunidade de “criar uma plataforma onde conteúdo de excelência e histórias brutais pudessem parecer-se mais com o papel”. Uma plataforma que pudesse ter “publicidade como a do papel em vez de anúncios estúpidos”. E, mais importante ainda, em que fosse possível “cobrar mais por esses anúncios”. Nascia assim o Flipboard, que foi sendo aprimorado com os anos e que, hoje, pode ser definido como um agregador de conteúdo de vários jornais onde qualquer pessoa pode partilhar uma ligação e seguir um tema em que tenha interesse.
Para isso, o Flipboard fecha parcerias com publishers em todo o mundo, assentes em dois modelos: num deles, a plataforma encaminha diretamente os utilizadores para os sites dos jornais e estes ficam com 100% da receita; no outro, os artigos são incorporados na aplicação e a empresa ajuda a encontrar anunciantes, partilhando depois as receitas. É com base neste último formato que Mike McCue desenhou os anúncios de página inteira, nativos na aplicação, que se relacionam com os interesses do utilizador e com o que se está a ler. Desta forma, a experiência de ver publicidade torna-se mais natural e menos intrusiva, um dos problemas associados aos banners que aparecem na generalidade da web e que deixam os internautas à beira de uma crise de nervos. Melhor: o Flipboard pode cobrar mais por essa publicidade, que tem maior probabilidade de obter resultados para o anunciante. O resultado? Mais receita.
E mais receita é música para os ouvidos dos criadores de conteúdo, começando nos jornais, que têm vindo a sofrer com sucessivas quebras nas vendas de publicidade. Os anunciantes têm apostado mais em plataformas como o Facebook e a Google, que têm um público mais vasto. Só em 2017, quase 65% do investimento em publicidade digital nos Estados Unidos terá ido para estas duas gigantes tecnológicas. E é por isto que novos modelos de negócio se procuram: além da publicidade, muitos jornais começam a apostar em cobrar diretamente aos leitores pelo conteúdo que produzem, um modelo que Mike McCue acredita ter bastante potencial de sucesso.
“Tal como na imprensa em papel, boa publicidade e bom conteúdo é algo pelo qual os consumidores estarão dispostos a pagar. O melhor modelo é encontrar uma forma em que seja fácil de comprar a subscrição, mas também com que se consiga construir uma audiência maior enquanto publisher. É importante ter público para se ter influência”, reconhece Mike McCue. Além disso, mesmo com os utilizadores a pagarem para aceder ao conteúdo, o empreendedor acredita que a publicidade bem feita poderá continuar a ser uma fonte de receita importante: “Quando olhamos para as revistas, nunca compraríamos a Vogue sem os anúncios. Seria loucura. Enquanto consumidores, pagamos seis dólares pela Vogue e queremos lá os anúncios. Ficaríamos aborrecidos se os anúncios não estivessem lá. Fazem parte da experiência.” O mesmo aplica-se ao digital, garante.
Temos de criar anúncios mesmo bonitos que respeitam a experiência do utilizador e que sejam relevantes para o conteúdo.
Anúncios “relevantes”? Tecnologia é a chave
O modelo de cobrar aos leitores por conteúdo — a chamada paywall — ganhou nova vida este ano, depois de o The New York Times ter anunciado que obteve mais de mil milhões de dólares em receitas com subscrições em 2017, contando com 2,6 milhões de subscritores digitais. O número apanhou de surpresa o mercado e o setor. Fica a ideia de que, juntando anúncios bem feitos a conteúdo de qualidade, cobrando ao leitor pelo acesso, como na imprensa em papel, pode ser a chave para um jornalismo digital sustentável, como defende o fundador do Flipboard que, desde 2010, já angariou mais de 210 milhões de dólares em cinco rondas de financiamento, de acordo com a CrunchBase.
“Como chegar lá? Temos de ter novas ter tecnologias e é aqui que entra a programática. A programática de hoje é uma forma de cada vez mais publicidade e vender mais e mais e mais. Essa é uma forma errada de pensar sobre a programática. A outra forma é criar um mercado privado em que os publishers têm o controlo e só permitem a certos anunciantes entrarem nesse mercado. Existem alguns que começaram a fazer isso e estão a ter sucesso. Um bom exemplo é a Vox“, resume Mike McCue ao ECO. E sublinha: “Creio que há uma oportunidade enorme, que também tem de vir com a qualidade da experiência com os anúncios. Se continuarem a ser várias pop-ups, há o ad blocking e simplesmente não vai funcionar. Temos de criar anúncios mesmo bonitos que respeitam a experiência do utilizador e que sejam relevantes para o conteúdo.”
Chegados aqui, até pode ficar a ideia de que o modelo de negócio que o Flipboard propõe não é muito diferente do que faz o Facebook. Mas Mike McCue rejeita totalmente essa ideia: “As pessoas vêm ao Flipboard para ler sobre coisas que adoram, para investir em si mesmas e ter uma vida mais preenchida. Não é por isso que vão ao Facebook. Vão ao Facebook para ver o que os outros estão a fazer: os amigos e a família”, argumenta, frisando que, no Flipboard, “um utilizador lê ativamente sobre surf, vê um anúncio sobre um acessório interessante de surf, ou um bom sítio para surfar, e clica nele”. “O tráfego que direcionamos para os publishers tem três, quatro, cinco vezes mais valor”, garante.
Para explicar, arrisca um exemplo: “Muitas pessoas usam o Facebook só para passar tempo: estão à espera do café, estão online e estão a fazer scroll no feed. Mas quando já têm o café, sentam-se à mesa e tiram meia hora para pensar na carreira, no trabalho, para onde é que vão nas férias, é aí que abrem o Flipboard.” E termina, revelando um pouco do que poderá ser o Flipboard do futuro. “Estamos a tentar evoluir continuamente: numa terça-feira de manhã provavelmente não queremos ver o mesmo conteúdo que veríamos numa sexta-feira à noite ou num domingo. E a trabalhar em mapear melhor o conteúdo de acordo com o dia da semana”, revela. Também não está afastada a hipótese de alargar o suporte ao mercado português. Serão estas ideias o suficiente para salvar o jornalismo? Talvez não. Mas, na visão de Mike McCue, são sem dúvida um bom começo.
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Flipboard: Como salvar o jornalismo digital? Tornando-o mais parecido com o do papel
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