O número dois dos juízes em Portugal dá uma entrevista em exclusivo à Advocatus de fevereiro em que admite que concorda, sem hesitar, com a delação premiada.
O número dois dos juízes em Portugal dá uma entrevista em exclusivo à Advocatus de fevereiro em que admite que concorda, sem hesitar, com a delação premiada, em que acredita que os juízes têm de largar o papel de uma vez por todas e defende que ninguém deve ficar fora do acesso ao direito, mas “quem pode pagar, deve pagar”. Quer abrir a Justiça aos cidadãos mas não quer “escancarar as portas” à comunicação social e admite que o segredo de Justiça é um entrave a essa mesma comunicação.
Vamos ser pragmáticos: a responsabilidade na demora da Justiça é dos juízes ou das regras processuais? Ou de ambos?
A generalidade dos juízes trabalha muito mais de 40 horas semanais, frequentemente ao fim de semana e nas férias, pelo que para mim é evidente que o problema não está nas pessoas, mas nas leis e no sistema instituído pelas leis. Os problemas são sistémicos. Como tenho dito em várias ocasiões, é verdade que muitas vezes se escreve de mais e que os processos podiam ser tramitados de uma forma mais linear. Temos uma cultura ainda demasiado burocrática e formalista nos tribunais. Mas, em grande medida, isso também tem a ver com a lei, com exigências de fundamentação exageradas e com um regime que obriga os juízes a blindar as sentenças para prevenir a arguição de nulidades processuais. Hoje em dia, os tribunais confrontam-se com causas cada vez mais difíceis e intrincadas, com elevado número de megaprocessos e ao mesmo tempo, com uma significativa litigância de massa, em especial ações de dívida sem grande complexidade, que deveriam ter um regime especialmente aligeirado. Também temos um regime de recursos a vários títulos inadequado. Ao mesmo tempo que questões muito sensíveis e da maior importância não admitem recurso para o Supremo em matéria penal, designadamente em matéria de criminalidade económica ou violência doméstica, boa parte das decisões do STJ respeita a questões processuais. E os juízes das relações passam grande parte do seu tempo a ouvir as gravações da prova produzida na 1.ª instância… Nos últimos anos temos tido ganhos de produtividade, associados ao novo modelo de gestão das comarcas e à informatização. Em 2016, entraram 557.468 processos nos tribunais e findaram 734.290. E, em 2017, de acordo com números ainda não consolidados, entraram cerca de 770 mil e findaram cerca de 900 mil. Mas um verdadeiro choque de qualidade exige uma rutura com os atuais paradigmas processuais.
Pode concretizar algumas das medidas que defende?
Com base nos ensinamentos do direito comparado, defendo limitações à extensão dos articulados das partes e das alegações de recurso, nomeadamente das conclusões, que devem exprimir de forma precisa as questões a decidir. Uma vez que as audiências são atualmente gravadas, também defendo um modelo de fundamentação das sentenças muito mais aligeirado, em especial nos processos mais simples. Não percebo que as regras processuais não sejam claramente diferenciadas em função da natureza, valor e complexidade dos processos. A descrição dos factos provados deve limitar-se ao essencial e a fundamentação da convição do juiz deve ser sintética. Por outro lado, será de incentivar a recolha dos depoimentos das testemunhas nos escritórios dos advogados e de instituir mecanismos de controlo do número total de testemunhas e do número de testemunhas ouvidas quanto a cada facto. E quando o tribunal se considere suficientemente esclarecido, não tem sentido continuar a produção de provas… Em suma, precisamos de um paradigma processual que comporte decisões simultaneamente justas e em prazo razoável, capaz de corresponder às necessidades dos cidadãos e das empresas e que constitua um catalisador de transformação e desenvolvimento.
Quais as vantagens do novo modelo de gestão das comarcas e da reforma do mapa judiciário?
Até 2014, tínhamos cerca de 300 comarcas, sensivelmente uma por cada concelho. Agora temos 23 comarcas, com uma escala consentânea com dois fatores de eficácia e eficiência fundamentais. Em primeiro lugar, a especialização, que agora abrange quase todos os tribunais. Em segundo lugar, uma gestão real e efetiva do judiciário, centrada em resultados concretos e mensuráveis. Neste modelo o CSM assume um papel central e uma verdadeira governança do sistema, uma vez que na sua esfera de atuação exercem funções os presidentes das comarcas e os inspetores judiciais. Aliás, na sequência da entrada em vigor de um novo regulamento das inspeções judiciais em finais de 2016, passámos a ter um acompanhamento contínuo dos tribunais e dos juízes, inspeções menos burocráticas e relatórios de inspeção mais simplificados e uniformizados, o que potencia igualdade de critérios e um acréscimo de justiça relativa. Partilhada entre todos temos agora a necessária liderança, o que é um elemento fundamental em termos de mobilização da energia das pessoas e do seu envolvimento na concretização de uma visão estratégica que se reconduz a três grandes pilares: modernização e racionalidade organizativa, simplificação e desburocratização.
O que espera conseguir até final do seu mandato? Que marca quer deixar?
A melhoria da qualidade do sistema de justiça depende de quatro elementos: para além, como já falámos, de leis processuais adequadas, gestão efetiva das comarcas, informatização global e tramitação eletrónica dos processos em plataformas amigáveis e com equipamentos informáticos de qualidade, reforma do modelo organizacional das secretarias judiciais, que é demasiado rígido e compartimentado, baseado na afetação de certo número de funcionários a cada juiz e não em função de tarefas e áreas funcionais, como seria desejável. No essencial, as competências do CSM respeitam à gestão dos juízes e dos tribunais, pelo que gostaria de deixar o Conselho mais estruturado e preparado para plenamente corresponder às responsabilidades que lhe estão cometidas, sem perder de vista alguma magistratura de influência quanto a todos os fatores dos quais depende o sucesso do sistema.
É um homem já habituado aos holofotes da comunicação social. Que contributos pode dar para a abertura da Justiça ao mundo?
A linguagem jurídica, que é incontornavelmente uma linguagem técnica, e os tempos próprios da justiça, que têm a ver com imperativos de reflexão, contraditório, recato e rigor, são elementos que dificultam a comunicação da justiça. Diria que o meu contributo passa pela compreensão de que, apesar de tudo, temos que comunicar, em prol da cidadania e da transparência. O caminho faz-se caminhando… É o que temos tentado fazer e vamos aprofundar, quer no âmbito do Conselho, quer no plano das Comarcas.
O segredo de justiça não ajuda a essa comunicação?
À partida, é verdade que o segredo de justiça é um limite à comunicação. Mas o segredo de justiça visa, antes do mais, proteger a investigação e significa, essencialmente, proibição de acesso ilimitado ao processo por parte do arguido. Daí que a própria lei permita que a autoridade judiciária proceda aos necessários esclarecimentos públicos, desde que não prejudiquem a investigação. Pode, por exemplo, divulgar-se a existência de determinado processo, bem como o respetivo objeto, ou a identidade dos envolvidos. O mesmo acontece em matéria disciplinar, uma vez que o Código de Processo Penal é subsidiariamente aplicável.
Tenho de lhe fazer esta questão – que tem sido recorrente – mas porque razão as classificações aos magistrados são sempre tão positivas ou abonatórias para os magistrados?
É mais um caso de desfasamento entre a realidade e as perceções… A avaliação dos juízes é efetuada segundo critérios de máxima exigência e rigor. Salvo casos excecionais, a primeira notação não é superior a “bom”, a subida de classificação é gradual e a nota de “muito bom” não é atribuída a juízes com menos de 10 anos de serviço. O “bom” corresponde à avaliação normal. “Muito bom” e “bom com distinção” são as notas de mérito. “Suficiente” e “medíocre” são classificações negativas. Aliás, esta última redunda em regra no afastamento do juiz, por demissão ou aposentação compulsiva, o que em média acontece duas ou três vezes por ano. Gostava de saber que profissões são mais escrutinadas… Mas antiguidade ou falta dela tem de ser mesmo um critério de avaliação? Num mundo perfeito, a avaliação seria totalmente independente da antiguidade. Mas precisamos de alguns mecanismos que impeçam uma inflação perversa das classificações que lhes retira qualquer relevância distintiva das pessoas. É um pouco a lógica das quotas em matéria classificativa, que é porventura um mal necessário. Se toda a gente tiver a nota máxima, a avaliação não tem qualquer utilidade.
O CSM já registou no passado mês de dezembro uma suspensão preventiva de um juiz. Está orgulhoso da mensagem que quer passar à classe?
Nenhum comentário sobre casos concretos.
Não está a fechar-se em copas e a contribuir para a falta de comunicação entre magistratura e cidadãos a não responder a esta questão?
Os processos disciplinares estão sujeitos a um princípio de confidencialidade e reserva, o que naturalmente não impede os esclarecimentos públicos que em cada momento se imponham. Todos os esclarecimentos tidos por adequados já foram prestados. Se necessário, em momento oportuno será prestada informação complementar. A comunicação entre magistratura e cidadãos não significa, não pode significar, portas escancaradas.
E a sua ‘luta’ por desmaterializar processos e acabar, ou pelo menos reduzir, o papel nos tribunais, é uma medida exequível?
Não sou um burocrata, pelo que não me bato por mais ou menos papel. Bato-me por uma cultura de cumprimento da lei e das regras. E pela qualidade e modernização dos nossos tribunais. O CSM sempre adotou uma posição de grande abertura e flexibilidade em matéria de desmaterialização dos processos judiciais. Temos homologado a generalidade das ordens de serviço que os juízes nos apresentam nesta matéria. Mas se tivermos um funcionário diariamente ocupado a imprimir papel para um único juiz, o sistema bloqueia no dia seguinte…
Mas o ‘largar’ o papel irá ajudar a essa modernização não?
Sem dúvida. É um elemento fundamental de modernização e racionalidade organizativa. Diria que é mesmo que a informatização é o elemento primário do choque de qualidade que se impõe.
A ASJP já fez saber que não são meros executores de ‘ordens’…
Ninguém defende a independência mais do que eu. Há é que delimitar o conceito, circunscrevendo-o ao objeto material da causa e à relação jurídica processual. Uma leitura absoluta e ilimitada da independência fragiliza o princípio e os próprios juízes. No dia em que o CSM a perfilhar estará dado o primeiro passo para uma alteração do paradigma que temos hoje. Aí sim, estará em causa a independência dos tribunais e a atual arquitetura do judiciário, nas suas diferentes vertentes.
Até onde vai a independência dos juízes?
O Tribunal Constitucional tem chamado a atenção para a necessidade de distinguir a esfera jurisdicional e a esfera administrativa das decisões dos juízes. No exercício do poder jurisdicional, que compreende a decisão da causa e todos os aspetos de natureza processual suscitados no processo, os juízes não se encontram sujeitos a quaisquer ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento das decisões proferidas em recurso pelos tribunais superiores. Mas a independência não é um princípio absoluto, em nome do qual é possível fazer tudo, uma vez que todos os princípios têm que se compatibilizar com outros princípios. Mesmo os mais estruturantes e fundamentais têm uma razão de ser, têm uma esfera de proteção constituída pelos valores que visam proteger, sendo por isso de afastar a sua aplicação acrítica, sem ter em conta as implicações de outros princípios ou valores igualmente importantes. Por outro lado, é evidente os princípios não podem servir para dar cobertura a posições excessivas e extravagantes, incompatíveis com a coerência organizativa do conjunto do sistema de justiça, ou a situações flagrantemente graves, incompreensíveis para a generalidade das pessoas. Nem sempre é fácil determinar a fronteira. O CSM é um órgão constitucional cuja função última consiste precisamente em garantir a independência dos tribunais. Cabe-lhe decidir caso a caso, tendo em conta todos princípios e valores em confronto e as especificidades de cada situação concreta.
O Pacto para a Justiça não deveria ter a colaboração na dianteira do CSM e não da ASJP?
Não. O CSM é um órgão superior do Estado, pelo que a sua colaboração ativa numa iniciativa dessa natureza seria suscetível de entrar em rota de colisão com a esfera de competência dos órgãos de soberania a quem cabe definir a política de justiça e as leis da República.
Mas não acha que o Pacto para a Justiça seja positivo?
Mesmo nas áreas nucleares do Estado, é muito importante, naturalmente, obter o máximo consenso, pelo que é positivo. Mas não deixar de se ter presente que aquilo distingue o poder político do poder administrativo é a linha a partir da qual é necessário tomar e impor decisões estruturantes. Há sempre um momento, mais tarde ou mais cedo, em que se impõem escolhas e opções de fundo, que por natureza são políticas.
No documento, os operadores judiciários terão desistido da figura da delação premiada. Qual a sua opinião sobre esse mecanismo?
Pessoalmente, e tudo o que fica dito é a título pessoal, concordo sem hesitação com a denominada delação premiada, em termos que deverão ter em conta as experiências de outros países e com os cuidados necessários para evitar abusos e a sua utilização perversa. A criminalidade altamente organizada e, em especial, a económico-financeira, é o grande fator de desagregação e de desigualdade das sociedades modernas. Deve ser combatida sem tibiezas. No entanto, sendo uma questão fraturante, compreendo que não tenha havido consenso. Aliás, sendo o Processo Penal considerado verdadeiro Direito Constitucional aplicado, tenho dificuldade em perceber que uma questão tão nuclear e fundamental pudesse depender apenas de consensos exteriores aos órgãos do Estado com competência na matéria. Estamos a falar para uma revista jurídica em que o target principal são os advogados.
Acha que essa barreira que os advogados criaram ao Pacto é saudável?
Como referi, trata-se de uma questão filosófica e politicamente fraturante. Em face dos valores em conflito nesta matéria, uns setores privilegiam uma abordagem que a meu ver é demasiado garantística e liberal. Outros, sem prejuízo da salvaguarda de princípios fundamentais, privilegiam a necessidade de realmente combater um fenómeno que gera disfuncionalidades sociais gravíssimas. Ambas as opções são legítimas.
Os tribunais são muito caros para o comum dos cidadãos?
Depende da perspetiva. O que é gratuito ou barato para o utente, pode ser caro para o cidadão contribuinte. Ninguém deve ser privado do acesso aos tribunais por falta de meios, mas quem pode pagar, deve pagar. E quem utiliza os tribunais abusivamente e sem um mínimo de razão, apenas para protelar o pagamento daquilo que deve, ou para impedir o trânsito em julgado das decisões, também deve pagar e, nestes casos, com sensível agravamento das custas. Mas prefiro enfatizar uma dimensão primária do acesso à justiça de que pouco se fala, que é a funcionalidade do sistema judiciário. Para mim, o prioritário é pôr os tribunais a funcionar bem. Se isso não acontecer, se tivermos tribunais submersos em processos, pode adiantar pouco recorrer à justiça.
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Mário Morgado: “O segredo de justiça é um entrave à comunicação”
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