Eutanásia. “Enquanto advogado fica a perplexidade jurídica”
A Advocatus foi saber o que alguns advogados pensam sobre as propostas para a despenalização da eutanásia, onde se posicionam e que alterações seriam feitas além do código penal.
Do grego “ευθανασία” ou “boa morte”, a eutanásia é um assunto de extremos, passível de dividir um país em dois blocos. Foi o que se passou por cá, com o tema a ser levado a discussão na Assembleia da República. Depois de a dia 29 de maio se ter votado no parlamento os quatro projetos de lei para a sua despenalização — do PS, Bloco de Esquerda, PEV e PAN — numa luta renhida e com desfecho difícil de adivinhar, o “não” venceu por cinco votos e as propostas foram chumbadas. Mas os partidos de esquerda prometem trazer o tema de volta ao debate público, assegurando que, mesmo perdida a luta, existe agora espaço para a sociedade discutir a eutanásia.
A Advocatus foi saber o que a classe dos advogados pensa sobre estas propostas, onde se posicionam, em que medida a legislação sobre a despenalização lá fora é, de facto, vanguardista e se uma medida como esta alteraria apenas o código penal. Fique com o testemunho de três advogados sobre a eutanásia — um a favor e dois contra.
A favor
O advogado Paulo Saragoça da Matta, especializado em direito penal, direito das obrigações, direito administrativo e contraordenacional, da sociedade de advogados Saragoça da Matta & Silveiro de Barros, conta à Advocatus que é a favor da despenalização da morte medicamente assistida, e afirma logo de início que a questão para si não é “religiosa, espiritual, moral, nem muito menos política (no sentido de axiologia de esquerda-direita)”.
É antes “exclusivamente ética, médica e jurídica”. E explica: “por razões jurídico-filosóficas, antes de mais, posto que considero que o direito à escolha da morte em situações limite, como aquelas que vinham consagradas nos projetos sujeitos a discussão no Parlamento, constitui a expressão última da própria dignidade humana em que assenta todo o edifício jurídico, e constitucional, português. A liberdade de me poder furtar a situações de dor excruciante, sem qualquer possibilidade de cura, num momento em que os avanços da ciência médica não podem assegurar-me uma cura, é o expoente máximo da liberdade ínsita ao ser humano plenamente digno e responsável. E essa mesma responsabilidade na tomada de decisão, quando acompanhada pelas cautelas médicas e jurídicas previstas, garante plenamente a inexistência de qualquer possibilidade de tomada de decisões não livres, não conscientes, não pessoais”.
Não é por acaso que a misericórdia ou compaixão já jogam um papel “típico” no direito penal português. Também a cautela de alguns dos projetos no que respeita à manutenção dos procedimentos reservada às instituições públicas de saúde, se afigura um importante garante da não-construção de “negócios” menos claros à volta desta tão sensível questão. Por tudo isto, porque um ser humano livre só o será se o puder ser até ao fim, sou a favor da despenalização da morte medicamente assistida.
Por outro lado, o advogado é a favor também por razões jurídico-práticas, uma vez que, segundo o advogado, “o sistema jurídico construído sobre os valores em que assenta a nossa Constituição não é compatível com a recusa da liberdade máxima que qualquer ser humano tem que poder ter. Aliás, se não é punível a tentativa de suicídio, ainda que totalmente desmotivada e sem qualquer acompanhamento médico ou cautela jurídica, seria absolutamente injusto, porque violador do princípio da igualdade, punir quem nas circunstâncias descritas auxilia aquele que conscientemente, livremente, esclarecidamente, deseja suicidar-se mas não o quer, ou não o pode, fazer sozinho”.
“Não é por acaso que a misericórdia ou compaixão já jogam um papel “típico” no direito penal português”, lança Paulo Saragoça da Matta. “Também a cautela de alguns dos projetos no que respeita à manutenção dos procedimentos reservada às instituições públicas de saúde, se afigura um importante garante da não-construção de “negócios” menos claros à volta desta tão sensível questão. Por tudo isto, porque um ser humano livre só o será se o puder ser até ao fim, sou a favor da despenalização da morte medicamente assistida”, reforça.
Contra
Por sua vez, o advogado Rui Tabarra e Castro, especializado nas áreas de Contencioso e Arbitragem da FCB Sociedade de Advogados, admite que, antes de mais, “convém precisar que aquilo que foi discutido e votado na Assembleia da República não foi a despenalização da eutanásia, mas sim a sua legalização”. E explica: “pode parecer um preciosismo, mas faz toda a diferença. Embora os promotores dos projetos que foram submetidos a votação e a própria comunicação social tenham sempre falado em despenalização, a verdade é que não foi isso que esteve em causa. O que era pretendido com os referidos projetos era que, em determinadas circunstâncias, fosse possível exigir-se ao Estado, em hospitais públicos e através de médicos do Serviço Nacional de Saúde, a eliminação de uma vida humana. Daí estar em causa a legalização da eutanásia e não unicamente a sua despenalização”, defende o advogado.
Antes de mais, e enquanto advogado, fica a perplexidade jurídica. A eliminação da vida de uma pessoa, por mais ponderosos que possam parecer os motivos, constitui, em termos objetivos, um homicídio. No caso, divide-se a doutrina entre o homicídio privilegiado e o homicídio a pedido da vítima. Ora, o artigo 24.º da Constituição da República Portuguesa, o primeiro dos artigos dedicados aos direitos, liberdades e garantias, é inequívoco e não permite interpretações restritivas. A vida humana é inviolável.
“Feita a precisão, importa esclarecer que não concordo com a legalização da eutanásia (como também não concordaria com a sua despenalização)”, defende o advogado, explicando que há muitos argumentos contra a eutanásia — jurídicos, éticos, científicos e políticos. “Antes de mais, e enquanto advogado, fica a perplexidade jurídica. A eliminação da vida de uma pessoa, por mais ponderosos que possam parecer os motivos, constitui, em termos objetivos, um homicídio. No caso, divide-se a doutrina entre o homicídio privilegiado e o homicídio a pedido da vítima. Ora, o artigo 24.º da Constituição da República Portuguesa, o primeiro dos artigos dedicados aos direitos, liberdades e garantias, é inequívoco e não permite interpretações restritivas. A vida humana é inviolável”, explica. “Este princípio, estruturante da nossa ordem jurídica, tem subjacente uma etiologia que não pode ser ignorada. O edifício normativo do Estado de Direito assenta no valor absoluto que constitui a dignidade da vida humana. Torna-se, assim, fácil de perceber que, por mais válidos que pudessem ser os motivos que estiveram na base dos quatro projetos, a inconstitucionalidade de qualquer um deles não deixaria de ser suscitada e, na opinião de muitos constitucionalistas – com os quais concordo –, constituiria motivo de chumbo pelo Tribunal Constitucional”.
“Julgo, assim, que antes de se discutir qualquer projeto que vise instituir a eutanásia, deveriam os seus defensores tentar alterar a Constituição, estabelecendo uma exceção ao princípio que prevê que a vida humana é inviolável. Se bem que tenha algumas dúvidas de que tal fosse possível, é importante lembrar que qualquer alteração à Constituição exige, por um lado, a assunção de poderes de revisão e, por outro, uma maioria deliberativa de dois terços, o que talvez ajude a explicar por que motivo esta questão foi praticamente ignorada por aqueles que, na Assembleia, pretendiam aprovar uma lei objetivamente atentatória da inviolabilidade da vida humana por maioria simples”.
Deve ler e ater-se com toda a atenção na posição política manifestada do insuspeito Partido Comunista Português (PCP) sobre a matéria, e compreender, também por aí, que a proibição jurídica da eutanásia não é um imperativo de religião – como se fosse pouco – mas sim e inequivocamente de civilização.
Nuno Pena, sócio da CMS Rui Pena & Arnaut, especialista na área do direito civil, comercial, societário e resolução de litígios na área da banca, também se mostrou contra a eutanásia. Em declarações prestadas à Advocatus, o advogado afirma que no ordenamento do Direito, “o direito à vida é inalienável e inviolável. Encontra-se protegido pela Constituição, e no que particularmente respeita à eutanásia, pelos tipos criminais de homicídio privilegiado, de homicídio a pedido da vítima e de incitamento ou auxílio ao suicídio, todos previstos e punidos nos termos do Código Penal. O parlamento nacional reiterou recentemente este entendimento sobre o sentir nacional quanto aos referidos padrões civilizacionais e deliberou não dever abrir caminho a alterações do referido quadro legal. Julgo que esteve muitíssimo bem“, comenta.
Acrescentou ainda, em jeito de nota irónica, que, com efeito, “ainda que eu acredite convictamente que o espírito santo iluminou os nosso deputados, mesmo quem não partilhe esta minha convicção, por não ser católico, por não seguir uma diferente religião, por não ser crente ou nem sequer conservador, deve ler e ater-se com toda a atenção na posição política manifestada do insuspeito Partido Comunista Português (PCP) sobre a matéria, e compreender, também por aí, que a proibição jurídica da eutanásia não é um imperativo de religião – como se fosse pouco — mas sim e inequivocamente de civilização”, remata.
A legislação lá fora: precipitação ou vanguarda?
Na Europa, a eutanásia ou o suicídio assistido foram legalizados em quatro países: Holanda, Bélgica, Suiça e Luxemburgo. Já nos Estados Unidos o suicídio assistido é legal em cinco estados: Oregon, Washington, Vermont, Montana e Califórnia, sendo a eutanásia criminalizada, sem exceção. O Canadá foi o mais recente país a legalizar a prática de eutanásia para doentes terminais, em junho de 2016. Uma pequeníssima amostra, tendo em conta o panorama global. Será a legislação destes países em torno da eutanásia e suicídio assistido vanguardista ou antes precipitada?
Segundo Paulo Saragoça da Matta, a legislação estrangeira a este respeito pode dizer-se que é vanguardista “porque constitui um passo fundamental no reconhecimento do que não pode deixar de ser um direito de cada um de nós, individualmente considerados, num estado de direito democrático assente na dignidade da pessoa. Aliás, os argumentos contra a legalização da morte medicamente assistida em Portugal assenta numa série de falácias e distorções da realidade, como os movimentos “anti-despenalização” mostraram “a outrance” na passada semana, com argumentos como “não matem os velhinhos”, ou com posições totalmente incompreensíveis de um ponto de vista dogmático jurídico por parte de alguns partidos políticos”, defende.
O advogado sublinha, contudo, que a junção das normas de pelo menos dois dos projetos discutidos na passada semana — o do PS e o dos Verdes — tornariam a legislação portuguesa “igualmente vanguardista”, uma vez que ao permitir a legalização da morte assistida “estruturavam mecanismos de segurança (checks and balances) melhores do que os de outros países que já reconheceram este mesmo direito”. Realça ainda que ficava “apenas por regularizar uma parte do problema, que é o da legalização da morte assistida, nos casos das pessoas que não tendo testamento vital, se encontrem impossibilitadas no momento da verificação dos pressupostos médicos, de tomar uma decisão (não pensando os ditos projetos em vias substitutivas de obtenção do tal consentimento livre e esclarecido na impossibilidade do doente terminal em estado vegetativo)”.
Já Rui Tabarra e Castro diz que a questão do “suposto vanguardismo da opção pela eutanásia é outro dos logros que viciou o debate. Ao contrário do que possa pensar-se, a eutanásia não é admitida senão em meia dúzia de países. Quer isto dizer que, depois de décadas a discutir a eutanásia, existem cerca de 190 países que não permitem a eutanásia. Muito recentemente, uma proposta que visava legalizar a eutanásia na Finlândia foi rejeitada por cerca de 70% dos deputados. Na Holanda, um dos primeiros países a legalizá-la, discute-se a forma como a medida que pretendia aplicar-se a casos extremos, muito residuais, acabou por ser uma prática muito mais recorrente do que a inicialmente esperada (mais de 6.000 no último ano), o que levou a que muitos que, no passado, haviam defendido a sua prática, tivessem mudado de opinião quando perceberam as consequências da sua legalização”.
“Mas se rejeito a eutanásia não é por serem muito poucos os países que a admitem”, explica o advogado, “é porque ela relativiza a vida humana e degrada a dignidade da pessoa. Isto não pode ser entendido como progressista. Seria antes um retrocesso civilizacional que, em minha opinião, devemos evitar“, defende.
Eutanásia alteraria apenas o Código Penal?
Todas as quatro propostas, caso vencessem, tinham previstas alterações ao Código Penal, nomeadamente aos artigos 134º — que fala sobre homicídio a pedido da vítima — e 135º — a respeito do incitamento ou ajuda ao suicídio. Em causa estaria legislar a proteção dos médicos que procedam a uma antecipação da morte. O artigo 139.º, acerca da propaganda do suicídio, foi também mencionado pelo PEV: “Não é punido o médico ou enfermeiro que, não incitando nem fazendo propaganda, apenas preste informação, a pedido expresso de outra pessoa, sobre o suicídio medicamente assistido”.
A ex-ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, numa entrevista dada ao DN onde defende a despenalização da eutanásia, também referiu que entende que “é muito importante que a discussão se passe a centrar no direito à boa morte como um direito de facto, mas no âmbito do direito civil, e não como uma questão penal“. A advogada e deputada do PSD considera que “temos estado a discutir esta matéria pelo lado do direito penal, só a mera despenalização, o que no meu ponto de vista é um erro. Não chega. Devíamos estar a discutir o assunto no âmbito dos direito e das liberdades que nos assistem”.
Paulo Saragoça da Matta defende que esta matéria, por definição, “nunca pode ser restrita apenas ao Código Penal, posto que há regulamentação variada que terá de ser introduzida em legislação de outras áreas do direito, como, por exemplo, normas da área do direito médico e da saúde“.
Rui Tabarra e Castro diz que estão em causa princípios constitucionais e estruturantes do Estado de Direito e da ordem jurídica. “Não é só o da inviolabilidade da vida humana. A incapacidade ou, pior, a falta de vontade do Estado em democratizar a rede de cuidados paliativos viola o princípio da proteção da saúde, o que constitui uma inconstitucionalidade por omissão. Considero, assim, que, mesmo que estivesse unicamente em causa a despenalização da eutanásia (que não é o caso dos projetos que foram votados no Parlamento), esta questão não se resumiria a uma alteração do Código Penal“.
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