As polémicas que marcaram o último Estado da Nação estão sanadas?

Pedrógão Grande, Tancos, Galpgate, CGD, Altice... A lista de polémicas que o Governo enfrentava à data do último debate do Estado da Nação era vasta. Um ano depois, o que mudou?

Há um ano, António Costa e o seu Executivo sentavam-se no Parlamento para enfrentar os deputados num dos momentos de maior fragilidade do Governo. Com os incêndios em Pedrógão Grande ainda com responsabilidades por apurar, o assalto a Tancos, a exoneração de três secretários de Estado no âmbito do caso Galpgate e ainda polémicas como a da Caixa Geral de Depósitos (CGD) a marcarem a agenda, muitas respostas estavam por dar. Um ano depois, e com um novo debate do Estado da Nação à porta, algumas ainda não foram dadas.

Pedrógão Grande. “Obviamente, não demito nenhum ministro”

Os fogos que deflagraram a 17 de junho, em Pedrógão Grande, resultaram na morte de 66 pessoas e deixaram centenas feridas, mas o caso não chegou para abanar o Governo. No último debate do Estado da Nação, que acontecia um mês depois da tragédia, António Costa garantia: “Obviamente, não demito nenhum ministro”. O verão de 2017 passou e António Costa não demitiu qualquer ministro.

Mas, em outubro, a região Centro voltou a ser assolada por incêndios de grande dimensão e morreram mais 49 pessoas. Marcelo Rebelo de Sousa interveio com um discurso a 17 de outubro onde deixou uma mensagem clara. “Abrir um novo ciclo, inevitavelmente, obrigará o Governo a ponderar o quê, quem, como e quando melhor serve esse ciclo”, disse, numa referência à demissão, então ainda não decidida, de Constança Urbano de Sousa, ex-ministra da Administração Interna.

Abrir um novo ciclo, inevitavelmente, obrigará o Governo a ponderar o quê, quem, como e quando melhor serve esse ciclo.

Marcelo Rebelo de Sousa

Presidente da República

A 18 de outubro, Urbano de Sousa apresentou a demissão, que António Costa aceitou. O Governo foi depois reformulado. Eduardo Cabrita, anterior ministro Adjunto, assumiu a pasta da Administração Interna. Pedro Siza Vieira ocupou o lugar deixado vago entrou para o Governo como ministro Adjunto.

Um ano depois, o inquérito relacionado com os incêndios de Pedrógão Grande tem dez arguidos. 157 das 264 casas destruídas pelos incêndios de 17 de junho de 2017 já foram recuperadas, estando todas as restantes já em obras. As empresas da região sofreram prejuízos na ordem dos 28 milhões de euros. Foram apresentados 55 projetos destinados a repor a capacidade destas empresas, dos quais 49 foram aprovados. A reflorestação da área ardida só deverá ser iniciada em outubro ou novembro deste ano e deverá prolongar-se pelos próximos dez a 20 anos.

Tancos. “No limite, pode não ter havido furto”?

A 29 de junho de 2017, o Exército português informou que cerca de uma centena de granadas de mão ofensivas e munições de calibre nove milímetros tinha desaparecido das instalações dos Paióis Nacionais de Tancos.

No debate do Estado da Nação de julho de 2017, a resposta de António Costa para o caso de Tancos era a mesma que dava para Pedrógão: nenhum ministro seria demitido. O ministro em causa, Azeredo Lopes, da Defesa, chegou a dizer, meses depois, que “no limite, pode não ter havido furto”, uma vez que não havia provas de que o mesmo tivesse acontecido.

A 18 de outubro de 2017, o material roubado foi encontrado pela Polícia Judiciária Militar, após uma denúncia anónima, na Chamusca, a menos de 30 quilómetros da base militar de Tancos de onde as armas desapareceram. O material foi encontrado em caixas deixadas num terreno a céu aberto. Apareceu, até, uma caixa a mais, com material que o Exército não tinha dado por desaparecido.

Passou mais de um ano e ainda não há respostas sobre o material militar roubado. O relatório elaborado sobre o caso, divulgado já em março deste ano, deu conta de “diversas deficiências/lacunas ao nível das estruturas”, entre as quais se destaca que as portas e as fechaduras “não têm o requisitos de segurança exigidos”.

Não se conhecem os autores dos roubos, ninguém foi responsabilizado diretamente pelo ato e a investigação do Ministério Público ainda decorre. Dois dos cinco coronéis que foram temporariamente exonerados na sequência deste caso foram recentemente escolhidos para integrarem o próximo curso de promoção a oficial general. Marcelo Rebelo de Sousa insiste na necessidade de apurar responsabilidades e, ainda o mês passado, frisava que “a memória não prescreve” em casos como o do roubo de armas.

Galpgate. Sem “ilações políticas”, mas com exonerações

Poucos dias antes do último debate do Estado da Nação, António Costa recebia três pedidos de demissão: Fernando Rocha Andrade, secretário de Estado dos Assuntos Fiscais; Jorge Costa Oliveira, secretário de Estado da Internacionalização; e João Vasconcelos, secretário de Estado da Indústria.

Os três pediram a exoneração de funções na sequência do caso que ficou conhecido como Galpgate: em 2016, a Galp ofereceu viagens a governantes para irem assistir a jogos da Seleção durante o Euro 2016, em França. Um ano depois, a 9 de julho de 2017, um domingo, os governantes pediram a exoneração, depois de terem pedido ao Ministério Público a sua constituição como arguidos.

No último debate do Estado da Nação, as referências a este caso vieram quase exclusivamente das bancadas da direita. Poucos ou nenhuns esclarecimentos foram feitos da parte do Governo. Luís Montenegro, então líder parlamentar do PSD, acusou o Governo de não ter tirado quaisquer “ilações políticas” neste caso e, depois, ter aceitado as demissões.

Fernando Rocha Andrade foi substituído por António Mendonça Mendes; João Vasconcelos foi substituído por Ana Lehman; e o cargo de Jorge Costa Oliveira foi ocupado por Eurico Brilhante Dias.

Cativações? Governo só viu “cativações de memória da oposição”

O nível histórico de cativações feitas pelo Governo marcou grande parte do último debate do Estado da Nação. Em 2016, o Governo cativou 942,7 milhões de euros de despesas, um valor que representa mais do dobro que tinha sido prometido à Comissão Europeia e que é também o mais alto de que há registo.

À direita, o CDS-PP falou em “austeridade encapotada”, feita através de “um truque que foi descoberto”. Do lado do PSD, Passos Coelho concluiu que, sem este “plano B”, Portugal teria ficado “confortavelmente acima dos 3% do défice”. À esquerda, tanto o Bloco de Esquerda como o PCP criticaram o aumento das cativações como uma forma de cumprir a meta do défice. “Há uma diferença de 1.600 milhões de euros entre o défice necessário para sair do PDE e o défice registado efetivamente”, disse Catarina Martins.

As únicas cativações que conhecemos são as cativações de memória da oposição, que se esqueceu do que fez de 2011 a 2015.

Adalberto Campos Fernandes

Ministro da Saúde

No Governo e no PS, a garantia de que não houve cativações a mais. “As únicas cativações que conhecemos são as cativações de memória da oposição, que se esqueceu do que fez de 2011 a 2015”, atirou Adalberto Campos Fernandes. As cativações serviram apenas para “anular o crescimento da despesa”, compôs João Galamba. E, tendo sido feitas, as cativações não afetaram “áreas essenciais do Estado”, como as escolas e o Serviço Nacional de Saúde, garantiu António Costa.

Certo é que o Governo aprendeu a lição e, no ano passado, as cativações finais de despesa realizadas pelo Ministério das Finanças fixaram-se em 560 milhões de euros, o que representou uma redução de 40% face ao ano de 2016.

Mas o tema cativações poderá voltar a marcar o debate deste ano. Desta vez, a oposição deverá pegar nas cativações feitas às entidades reguladoras, depois de o CDS-PP ter enviado perguntas sobre este assunto a todos os reguladores do Estado. As respostas enviadas ao partido mostram um cenário de constrangimentos — seja na capacidade para contratar ou para realizar as ações de inspeção — motivados pelas cativações.

O “branqueamento político” à CGD

Em outubro de 2016, Mário Centeno revelava que o novo presidente executivo da Caixa Geral de Depósitos (CGD), António Domingues, ia ganhar 423 mil euros por ano para liderar o banco público, o dobro do que ganhava o seu antecessor. Já desde o verão desse ano que era público que o Governo tinha alterado o Estatuto do Gestor Público para abrir uma exceção para a CGD e permitir que a nova administração do banco pudesse furar o teto máximo dos salários auferidos pelos gestores públicos. Mas o valor de 423 mil euros gerou desconforto.

Mais desconforto ainda quando, dias depois, o comentador do PSD Luís Marques Mendes lançou uma dúvida em direto: estes novos gestores da Caixa não tinham de declarar os rendimentos e património ao Tribunal Constitucional, nem as incompatibilidades à Procuradoria-Geral da República, nem as participações que detinham em qualquer empresa à Inspeção-Geral das Finanças, obrigações a que estão sujeitos todos os gestores públicos.

Depois disso, António Domingues durou um mês. Demitiu-se em novembro de 2016, acabando por ser substituído por Paulo Macedo, que assumiu a pasta em fevereiro de 2017.

A polémica foi suficiente para se constituir uma nova comissão parlamentar de inquérito sobre a CGD, por cima de uma outra que já estava a decorrer. Arrancou, assim, em abril de 2017, a comissão de inquérito à nomeação e à demissão de António Domingues como presidente da Caixa, que ficou conhecida como a comissão dos SMS devido às mensagens trocadas entre Centeno e Domingues, através das quais terá sido assumido o compromisso de que os gestores da Caixa não teriam de apresentar declarações de rendimentos.

Enquanto isso, dois pontos marcavam a agenda sobre o banco público. Por um lado, o Governo anunciava que tinha encomendado à consultora EY uma auditoria à gestão da CGD entre 2000 e 2015, que iria analisar a concessão de créditos, a aquisição e alienação de ativos e as decisões estratégicas tomadas pelos dentro do banco. Ao mesmo tempo, decorria a primeira comissão de inquérito à CGD, que apurava as condições em que foi feita a última recapitalização e a gestão feita no banco público durante a última década. E era aqui que acontecia aquilo a que a direita veio a chamar de “branqueamento político” por parte da esquerda.

Isto porque PS, Bloco de Esquerda e PCP permitiram que esta comissão de inquérito encerrasse sem que tivessem sido entregues aos deputados documentos pedidos ao Banco de Portugal, à CGD e à Comissão do Mercado de Valores Mobiliários. O Tribunal da Relação de Lisboa chegou a decidir que estas três entidades tinham mesmo de entregar os documentos pedidos, mas as três recorreram da decisão junto do Supremo Tribunal de Justiça. Antes de chegar uma decisão desta última instância, a comissão de inquérito foi encerrada.

PS, Bloco de Esquerda e PCP não têm vergonha de não deixar a investigação decorrer e juntam-se para o maior branqueamento político de que tenho memória.

Luís Montenegro

PSD

Foi neste clima que chegámos a julho de 2017, quando decorreu o último debate do Estado da Nação. Por esta altura, a oposição já só se focava no “branqueamento político” da esquerda. “PS, Bloco de Esquerda e PCP não têm vergonha de não deixar a investigação decorrer e juntam-se para o maior branqueamento político de que tenho memória”, acusava Luís Montenegro, do PSD. “Branqueamento político foi o que o vosso Governo fez no caso do Banif”, respondia João Paulo Correia, do PS.

Chegamos ao debate do Estado da Nação deste ano ainda sem conhecer os documentos que foram pedidos no ano passado pelos deputados ao Banco de Portugal, à CGD e à CMVM, e também sem conhecer a auditoria feita pela EY. A auditoria já existe. Foi concluída e enviada à própria CGD. O Governo não pediu que a consultora lhe entregasse a auditoria. Os deputados do PSD pediram, mas o pedido que foi recusado pela equipa de Paulo Macedo. O Ministério Público também pediu, e recebeu o documento, mas, segundo o Jornal de Negócios, colocou-o sob segredo de justiça.

Altice? Costa escolheu a companhia que utiliza

Quando, há um ano, deputados e membros do Governo se sentavam no Parlamento para discutir o Estado da Nação, a contestação em torno da Altice estava ao rubro. Em fevereiro, o Expresso noticiava que o grupo multinacional que comprou a PT Portugal tinha deixado cerca de 300 trabalhadores no quadro de mobilidade interna sem quaisquer funções atribuídas. Por essa altura, e desde que a antiga PT foi comprada pela Altice, mais de mil pessoas já tinham mudado de funções e de local de trabalho e o grupo tinha encolhido de 11 mil para cerca de 9.600 pessoas. Ou seja, no espaço de um ano e meio, o grupo tinha rescindido com 1.400 trabalhadores.

Em abril, a Altice já propunha rescisões amigáveis a 200 destes 300 trabalhadores sem funções. Em julho, acumulavam-se as greves. O Sindicato dos Trabalhadores da Portugal Telecom (STPT) acusava a empresa de retirar direitos a estes trabalhadores, ao transferi-los para outras empresas do mesmo grupo. Em causa estavam outros 150 trabalhadores que seriam transferidos para empresas como a Penor, a Sudtel ou a Visabeira, todas do grupo Altice.

O Governo que recusou, e bem, o despedimento coletivo da PT, não pode agora lavar as mãos quando a PT está a fazê-lo.

Catarina Martins

Coordenadora do Bloco de Esquerda

Sobre este assunto, esquerda e Governo estavam alinhados. “A Altice prepara o despedimento de milhares de trabalhadores, fintando todas as regras e gabando-se disso mesmo até no Parlamento. A responsabilidade do Governo é travar estes processos. O Governo que recusou, e bem, o despedimento coletivo da PT, não pode agora lavar as mãos quando a PT está a fazê-lo”, dizia então Catarina Martins.

António Costa também tecia críticas à empresa e resumia: “Eu, por mim, já fiz a minha escolha da companhia que utilizo”.

A saga Altice prolongou-se por vários meses. Em agosto de 2017, era divulgado um relatório da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) que detetava 150 infrações na PT Portugal e que dava conta de várias casos de trabalhadores sem ocupação efetiva e ainda de casos de assédio. No mesmo mês, PS e Governo reuniam-se para avaliar este relatório e estudar alterações ao Código do Trabalho que evitassem novos casos semelhantes ao da Altice.

Foi já este ano que PS, Bloco de Esquerda, PCP e PAN chegaram a acordo para uma proposta conjunta que dá aos trabalhadores o direito de se oporem quando estiver em causa a transmissão de estabelecimento. As novas regras entraram em vigor em março deste ano.

Mas a história só ficou fechada já esta semana, com a assinatura, entre sindicatos e administração da Altice Portugal, de um acordo coletivo de trabalho que é considerado “um entendimento inédito”. O acordo prevê aumentos salariais entre 1% e 4%, ou entre 10 e 25 euros, consoante o rendimento base. Os trabalhadores também terão direito a mais um dia de férias.

Saúde. A “herança” da direita atrasou as metas da esquerda

Os problemas do Sistema Nacional de Saúde (SNS) mantêm-se praticamente os mesmos de há um ano. No último debate do Estado da Nação, Adalberto Campos Fernandes, ministro da Saúde, era confrontado com a colocação de novos médicos de família e as cativações na área da saúde.

Nessa altura, o ministro defendia-se com as metas já cumpridas: a contratação quatro mil profissionais desde o início da legislatura, o aumento do número de consultas e de cirurgias. Ainda assim, assumia que o objetivo não seria cumprido na totalidade a curto prazo. “Estamos atrasados”, culpa da “herança que recebemos”, dizia então.

Um ano depois, as críticas e acusações mantêm-se, os argumentos de defesa também. Num debate parlamentar sobre a política de saúde, na semana passada, todos os partidos, à exceção do PS, foram unânimes em considerar que o Governo não planeou devidamente a passagem às 35 horas de trabalho semanais, desde 1 de julho, de milhares de enfermeiros, técnicos e assistentes do SNS.

Adalberto Campos Fernandes, por seu lado, assegurou que 98% das 21 mil camas do SNS não registam qualquer instabilidade com a passagem às 35 horas semanais de trabalho e acusa a oposição de alarmismo. Segundo o Ministério da Saúde, até maio foram contratados 1.600 profissionais para suprir as necessidades da passagem de trabalhadores às 35 horas de trabalho semanais. Este mês, vão ser contratados mais 2.000.

Mas, ainda no mês passado, o ministro da Saúde admitiu que “é impossível” resolver em dois anos os problemas acumulados no setor, uma posição que a esquerda considera inaceitável. “Não é a falta de dinheiro, é a falta de vontade política que impede a contratação de mais profissionais”, acusou a deputada Carla Cruz, do PCP.

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