Bruxelas chumba o Orçamento de Roma. Roma desafia a autoridade de Bruxelas. A tempestade financeira entre a Fontana di Trevi e o Manneken Pis.

Roma parece um enorme autocarro com metade dos passageiros a tentar guiar e a outra metade a tentar cobrar bilhetes. Bruxelas está em permanência no discurso dos políticos que, representando a Europa, querem ter as vantagens nacionais que não se atrevem a defender. Eis a política europeia no seu esplendor.

A devolução do Orçamento de Itália para ser objeto de revisão e configuração com as regras comuns da Zona Euro é um exercício politicamente inédito. Para além das análises técnicas realizadas à exaustão, há um aspeto do conflito político entre a narrativa de Roma e o discurso de Bruxelas que passa completamente invisível ao radar dos comentários — o Presidente do Parlamento Europeu, o Presidente do Banco Central Europeu e a Alta Representante da União Europeia para a Política Externa e Segurança, são todos cidadãos com passaporte italiano. Dos seis cargos de topo na Europa, a Itália detém três titulares com influência e poder decisivos na definição das políticas da União.

Neste particular, a recusa do Orçamento ganha um duplo contorno, quer ao nível do Estado da União, quer à dimensão do Estado da Nação. Os italianos no apex da Europa enfrentam um conflito de interesses, um dilema entre a fidelidade a Bruxelas e a lealdade a Roma. O governo de Roma pressiona no sentido da decisão a favor do interesse nacional de Itália; Bruxelas está confiante de que os italianos detentores dos mais altos cargos da hierarquia da União decidam em prol do interesse geral da Europa. A probabilidade de Matteo Salvini acusar os seus compatriotas de estarem a decidir contra o interesse nacional é um tópico da política populista, um tropo que pode tocar os tons da traição. Como país fundador da Comunidade, seria talvez inevitável que os italianos estivessem nos dois lados de um conflito que opõe a nomenklatura de Bruxelas ao nacionalismo de Roma. A ironia está no facto das clivagens da Europa atravessarem o coração político de Itália.

Desta peculiar situação política emerge uma narrativa alternativa que se posiciona no centro do sucesso do fenómeno populista. O populismo é o sintoma e não a causa de uma realidade política em que o establishment se encontra dividido por dois propósitos incompatíveis — a orientação dos interesses nacionais e os desígnios internacionais e globais. As correntes populistas exploram este afastamento no limite do possível e do democraticamente imaginável. No caso do Orçamento de Itália existe mesmo uma sobreposição das duas componentes irreconciliáveis, facto que Salvini explora com agressividade e dramatismo, confiante que a terceira maior economia da Europa é demasiado grande para cair sem arrastar consigo toda a Zona Euro para uma crise de contornos e consequências difíceis de imaginar, mas fáceis de prever.

É nesta dimensão exclusivista que o populismo falha como solução para os problemas políticos e económicos correntes e vigentes. Em matéria de ideologia, o populismo resvala para os extremos, tanto à esquerda como à direita. Na perspetiva da organização e da competência, os populistas sentem-se confortáveis como movimentos de protesto, desconfortáveis como partidos de governo — o demagogo supera em todas as ocasiões o estadista. Partidos populistas parecem não ser capazes de ganhar eleições. Novamente a Itália como exceção. E exceção pelo facto de ter um sistema partidário pulverizado e sem partidos que marquem o centro político, ao qual se assimila a existência de dois partidos populistas, um à esquerda, outro à direita. Acrescente-se ainda a situação ingovernável de uma dívida pública a tocar os 130% do PIB, a segunda maior da Europa, e os constrangimentos das regras e dos procedimentos da Zona Euro. Perante este cenário, Matteo Salvini vê-se entre o abismo e o precipício, e opta pela pressão sobre Bruxelas.

Pelo modus operandi, os partidos populistas são também agentes não intencionais do status quo, pois a perturbação que injetam no sistema é um estímulo para que tudo permaneça exatamente como está e pela rápida união dos partidos clássicos. Mais ainda, em certo sentido, o populismo tem conseguido castigar e punir o establishment, mas têm-se revelado incapaz de dar aos votantes o governo desejado. As reformas exigem uma visão positiva estranha ao fenómeno populista, determinação ponderada, atenção ao detalhe, não declarações ruidosas, gestos extravagantes. O populismo é a falsa esperança, a pergunta certa e a resposta errada, o calor sem luz, a revolta sem justiça. E Roma continua a ser a cidade aberta.

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Roma Ladra

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