Privatização da EDP atrasou contribuição sobre o setor energético
Henrique Gomes queria introduzir uma contribuição sobre as energéticas. Vítor Gaspar rejeitou porque a EDP estava a meio da privatização. Com esse processo já terminado, foi aprovada a CESE.
O processo de privatização da EDP, concluído em 2012, não podia ser “perturbado”. E, por isso, não poderiam imputar-se custos demasiado elevados à elétrica. Terá sido esta a razão para que uma proposta apresentada pelo antigo secretário de Estado Henrique Gomes para a introdução de uma contribuição sobre os produtores de eletricidade, logo no primeiro mês após a tomada de posse do Governo de Pedro Passos Coelho, tenha sido rejeitada dentro do Executivo. Como hoje se sabe, uma medida semelhante — a Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético (CESE) –, mas com um impacto muito inferior em termos de receitas, veio a ser aprovada em 2014, já depois de concluída a privatização da EDP.
O desenrolar destes acontecimentos está a ser recordado, esta quarta-feira, pelo próprio Henrique Gomes, que está a ser ouvido na comissão parlamentar de inquérito ao pagamento de rendas excessivas aos produtores de eletricidade.
Começando pelo início: a contribuição especial foi proposta por Henrique Gomes em julho de 2011, um mês depois de o Governo ter tomado posse. Seria chamada de “contribuição sobre o potencial de geração” e a ideia seria cobrá-la a todos os produtores de eletricidade cujas receitas não resultassem do mercado. Mas o projeto não avançou.
Questionado sobre qual o argumento que lhe foi apresentado para que essa contribuição não fosse introduzida, Henrique Gomes fala na privatização da EDP. “Não se poderia perturbar o processo de privatização. Pode não ter sido dito de forma perfeitamente explícita, mas a preocupação, naquela altura, era o processo de privatização“. Ao mesmo tempo, rejeita que tenha havido intervenção da troika para essa rejeição. “A troika não tinha de validar, naquela altura. Só teve de validar depois de o Governo, formalmente, apoiar a CESE”.
Não se poderia perturbar processo de privatização. Pode não ter sido dito de forma perfeitamente explícita, mas a preocupação, naquela altura, era o processo de privatização.
Essa versão alternativa da contribuição que propôs, introduzida já em 2014, era semelhante, mas continha várias diferenças. “A CESE dá receitas de 125 a 150 milhões de euros. A minha proposta representava cerca de 230 milhões. Na CESE, 50 milhões vão para o setor energético e 100 milhões vão para o Orçamento do Estado. Na minha proposta, as receitas iriam todas para um fundo de equilíbrio do setor energético; só depois seria decidido se seria utilizado para abater o défice tarifário. Outra diferença é a incidência. A CESE incide sobre a EDP, a REN e a Galp. A minha incidia sobre todos os produtores”, elencou.
Havia uma outra diferença essencial entre as duas medidas: “A minha tinha, claramente, uma cláusula que proibia os produtores de repercutir esse custo sobre os consumidores. A CESE não tem essa cláusula e houve até uma tentativa de repercutir esses custos sobre os consumidores“.
Uma “oportunidade perdida”
A rejeição desta contribuição, considera Henrique Gomes, foi uma “oportunidade perdida” para “limpar a casa” do setor energético, com a redução ou mesmo eliminação da dívida tarifária. Ao longo da audição, o antigo governante reconheceu compreender os motivos que levaram o Ministério das Finanças a rejeitar a proposta, mas afirma que esta foi uma “má avaliação”.
“Falei com o ministro Vítor Gaspar em reuniões por duas vezes. Uma que foi uma reunião de primeiro contacto e nada mais. Mais tarde, tivemos uma reunião formal, a um domingo. A privatização estava presente”, conta. Mas ressalva: “Tudo isto foi antes de começar o processo [de privatização] e haveria tempo. Houve uma má avaliação de tudo isto, por parte das Finanças“.
Henrique Gomes admite, ainda assim, que a posição das Finanças não era fácil, dada a situação económica de Portugal. “Numa outra reunião que tive com a então secretária de Estado Maria Luís Albuquerque, só os dois, ela interrompe a reunião porque é chamada. Quando volta, chega lívida. Diz que não temos dinheiro nem para mandar engraxar os sapatos. Não há dinheiro. Esse era o ambiente que se vivia. Portanto, percebo perfeitamente a preocupação com a privatização”.
Seja como for, “foi uma oportunidade perdida e foi uma má avaliação”, reforçou. “Tínhamos entrado na privatização calmamente e com o setor em equilíbrio. A contribuição serviria para aliviar o esforço da população e entrávamos num caminho de estabilidade mais fácil para todos nós“.
EDP apresentou “alternativas paliativas”
Rejeitada a proposta para a introdução desta contribuição logo no Orçamento do Estado para 2012, o Governo continuava a ter de encontrar alternativas para baixar os custos com o setor elétrico. O gabinete de Henrique Gomes começou, então, a negociar com os produtores de eletricidade para alcançar um modelo que fosse aceite por ambas as partes. Os maiores entraves vieram do lado da EDP.
“Contactámos todos os afetados e explicámos a ideia. Chegámos a ter um compromisso informal relativamente às renováveis. Sabíamos que não podíamos ferir economicamente ninguém, apenas retirar o que nos parecia ser um excesso. Mas não passava disso e havia margem para fazer isso, claramente. Faltava-nos o maior produtor, a EDP, que passou o mês de setembro connosco, a olhar para o modelo”, recordou.
Chegados ao fim desse mês de negociação, a Secretaria de Estado da Energia conseguiu chegar a acordo com a elétrica relativamente a dois pontos: validar o modelo de equilíbrio para a sustentabilidade do sistema elétrico nacional e acordar os pressupostos que seriam utilizados nas simulações. Ficou a faltar um último ponto: estudar medidas que permitissem limitar o crescimento anual dos preços da eletricidade a 1,5%, minimizar a criação de nova dívida tarifária e eliminar toda a dívida até 2020.
Foi no âmbito deste último objetivo que a EDP apresentou um plano “alternativo” e é aqui que as duas versões divergem. Numa carta entregue a Henrique Gomes, datada de 30 de janeiro de 2012, a elétrica afirma que as medidas que apresentou para alcançar aqueles objetivos foram aceites pelo Governo, num acordo firmado em outubro de 2011. Numa audição nesta comissão parlamentar de inquérito, na semana passada, Eduardo Catroga, antigo presidente do Conselho Geral de Supervisão da EDP, também chegou a dizer que esse acordo foi alcançado em 2011. Isto para, na mesma audição, corrigir-se e dizer que, afinal, havia apenas um “projeto de acordo”, ou até um “acordo de cavalheiros”.
Começa a aparecer uma série de alternativas, que nós rejeitámos, porque todas as alternativas que nos apresentaram era paliativos que aliviavam o curto prazo mas que não cortavam nada. Esse princípio nós nunca aceitámos. Com a EDP, que era fundamental, não chegámos a acordo.
Esta ideia é categoricamente rejeitada por Henrique Gomes. “Paralelamente, começa a aparecer uma série de alternativas por parte da EDP, que nós rejeitámos, porque todas as alternativas que nos apresentaram era paliativos que aliviavam o curto prazo mas que não cortavam nada. Esse princípio nós nunca aceitámos. Com a EDP, que era fundamental, não chegámos a acordo“.
Na troca de correspondência que manteve com a EDP, Henrique Gomes explica com mais detalhe o porquê de ter rejeitado as propostas da elétrica. “Como certamente poderá comprovar, as medidas avançadas pela EDP impunham perda de receitas extremas a alguns setores da produção, salvaguardando a manutenção do status quo da EDP, e traduziam-se na transferência de risco e no aumento dos encargos financeiros para o sistema tarifário”, pode ler-se numa carta dirigida a Eduardo Catroga. Perante este cenário, “este Ministério não estabeleceu nenhum acordo com a EDP e o essencial dos produtores, designadamente aquele que refere ter ocorrido a 4 de outubro de 2011“, acrescenta a carta.
Efetivamente, as sete propostas apresentadas pela EDP para alcançar os objetivos de redução da dívida do setor energético e controlar o aumento de preços previam, como defende Henrique Gomes, um corte das receitas da empresa no curto prazo, mas que seria pago mais tarde, com a extensão do período de receitas garantidas de que beneficia.
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