Tribunal condenou dois gestores por manipulação de ações da Inapa e Ibersol

A justiça portuguesa concluiu três decisões judiciais de primeira instância em processos de crimes contra o mercado, no ano passado. Duas foram condenações por manipulação de ações.

Os preços das ações são definidos quando um investidor encontra quem lhe compre os títulos ao preço que quer vender. Se não acontecer, o vendedor poderá ter de ir baixando o preço. Mas e se um comprador generoso for sempre garantido? Se comprador e vendedor forem a mesma pessoa, é possível. Vender ações em nome próprio e comprar em nome da sua empresa terá sido a estratégia de Paulo Sobral, que foi condenado em primeira instância por manipulação de mercado.

Sobral terá comprado ações da Ibersol em nome próprio, enquanto vendia a mesma quantidade em nome da sua sociedade de capital de risco e vice-versa. Enquanto ninguém deu por nada — entre 18 de junho e 31 de dezembro de 2010, bem como entre 29 de abril e maio de 2014 –, as transações fictícias renderam uma mais-valia 23,6 mil euros. Agora, poderá ter de devolver o valor ao Estado e pagar uma multa, caso a decisão da Comarca de Lisboa de que existiu crime transite em julgado.

Licenciado em economia, detentor de um MBA, especializado em gestão de tecnologias de informação no MIT e docente universitário, Sobral é o dono da maioria do capital da sociedade de investimento em capital de risco Enotum Capital (cujas restantes participações minoritárias são de familiares).

A estratégia prendia-se com a colocação de ofertas simultâneas de compra e venda de ações da Ibersol. Assim, a mesma pessoa era tanto comprador, como vendedor, para “cruzar” ofertas e ganhar com o negócio, segundo mostra a sentença do tribunal, datada de junho de 2018. Não só comprometia o livre “jogo” da oferta e da procura no mercado bolsista, como criava a aparência de uma liquidez que o título não tinha.

No segundo semestre de 2010, Paulo Sobral comprou e vendeu em nome próprio um total de 65.404 e 85.376 ações da Ibersol, respetivamente. No mesmo período, a Enotum adquiriu e alienou um total de 80.200 e 68.750 títulos da mesma empresa.

Em julho de 2011, a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) deu conta das transações cruzadas, com segundos de diferença entre elas. O supervisor pediu à Enotum que enviasse dados sobre todas as transações realizadas no ano anterior. Em dezembro, chamou o gestor para prestar declarações e acabou por aplicar uma “admoestação”. Mas nem isso o impediu de voltar a tentar: em dois meses de 2014, Paulo Sobral adquiriu e alienou 11.600 e 40.404 ações, enquanto a Enotum comprou e vendeu 40.404 e 11.600 ações.

“O arguido Paulo Manuel Ferreira Sobral prestou declarações no sentido de negar a prática de todas as condutas que lhe são imputadas suscetíveis de integrar a prática de ilícito embora tenha reconhecido a realização das transações enunciadas, pese embora esclarecendo que a sua intenção não era de manipular o mercado ou de praticar qualquer ato fictício, mas antes realizar operações com reais efeitos para as esferas jurídicas dos intervenientes”, revela a sentença.

Gestor já tinha feito mesmo na Sonae. O amigo fez na Optimus

As operações (confirmadas pelo próprio) sem intenção de manipular o mercado foram justificadas. Em 2010, assentaram na aprovação de legislação fiscal com efeitos retroativos referente à tributação das mais-valias de ações detidas por mais de doze meses (antes isentas). Já sobre 2014, falou de um aumento de capital iniciado em 2006 (para que a empresa passasse a sociedade de capital de risco) e que devia ter sido concluído até 2011. Como os acionistas não tinham dinheiro, três anos depois do fim do prazo legal, Paulo Sobral decidiu vender ações para cumprir o aumento de capital.

O gestor negou, assim, “que as operações fossem fictícias” ou que houvesse “qualquer intenção de provocar enganos” e ainda foi mais longe, lembrando funções anteriores de consultoria financeira. “Aliás, a este respeito disse mesmo ter feito negócios semelhantes ao serviço do grupo Sonae (negócios cruzados entre empresas do mesmo grupo, na qualidade de representante de ambas, sem que nunca tenha sido alvo de responsabilidade criminal)”, refere.

Paulo Sobral não foi o único a admitir que já ter manipulado o mercado antes. “A testemunha José Carlos Mendes Pinto, gestor da NOS, amigo do arguido e seu ex-colega prestou declarações no sentido de esclarecer que conhece o arguido há cerca de vinte e oito anos, não só como colega de trabalho, mas também como colega de formação académica”, pode ler-se. “Referiu, ainda, o caráter lícito das operações cruzadas, as quais já realizou enquanto administrador da Optimus, pois nunca o fez com o objetivo de subir o preço nem nunca foi alertado por comportamento ilícito pela CMVM”.

O contabilista da Enotum Simão Lopes da Costa, outra das testemunhas, também tinha conhecimento das operações em nome da empresa (quanto às transações em nome pessoal, disse apenas não ter acesso às declarações fiscais do arguido) e também não viu qualquer problema. Acrescentou que as contas foram auditadas até 2014, nunca tendo havido qualquer dúvida quanto por parte do pelo Revisor Oficial de Contas (ROC).

[Paulo Sobral] esclareceu que as operações cruzadas não são contranatura, são possíveis e especialmente prevista no regulamento da Euronext desde que se situem dentro do limite de intervalo entre a melhor oferta de compra e a melhor oferta de venda (…). Disse mesmo ter feito negócios semelhantes ao serviço do grupo Sonae.

Acórdão do tribunal de Lisboa

O Tribunal discordou. A reduzida diferença horária na introdução das ordens de venda e compra e tanto conhecimentos académicos como experiência profissional de Paulo Sobral fizeram com que a justiça concluísse que sabia que as transações eram fictícias.

Concluiu que as operações mudaram artificialmente a liquidez do título e influenciaram o preço. O que ficou por saber foi se Paulo Sobral atuou de forma consciente e intencional. Quanto às primeiras operações, o tribunal ainda considerou que há uma “dúvida razoável” sobre a intenção, mas quanto a 2014 (já depois de ter sido chamado pela CMVM), a justiça viu “uma atuação com dolo”.

O crime de manipulação de mercado é punido, em Portugal, com cinco anos de prisão ou multa. Neste caso, o tribunal preferiu não optar pela privação de liberdade. Condenou Paulo Sobral a perder os 26.750,49 euros que os negócios em questão lhe tinham rendido (23.583,40 euros a título particular e 3.167,09 euros em nome da Enotum), ao pagamento de uma multa de 3.000 euros e as custas criminais.

Acionista usava a imprensa para fazer subir os preços. Depois, vendia

O caso da Enotum foi uma das duas decisões judiciais de primeira instância em processos de crime contra o mercado que se traduziram em condenações (houve uma terceira, cuja decisão foi absolvição) no ano passado. O segundo caso (este sim, já transitou em julgado) envolve igualmente uma pequena empresa da Bolsa de Lisboa. O acionista da Inapa, Jorge Fazendeiro, anunciava na imprensa que queria reforçar a posição na papeleira, quando o valor dos títulos subia, afinal vendia.

Entre 2008 e 2019, José Fazendeiro era administrador da empresa Albano R. N. Alves – Distribuição de Papel, que era também sócio único da sociedade Amplivértice (detentora de 54,4% da Albano R. N. Alves). O gestor surge pela primeira vez, em julho de 2008, como acionista da Inapa, com 2,06% do capital (dos quais 2,02% em nome próprio e os restantes 0,04% através da Albano Alves). A participação qualificada colocava-o como terceiro maior acionista da Inapa, atrás do BCP (18,26%) e da Parpública (32,72%).

Logo após a divulgação da participação, José Fazendeiro dizia ao jornal Diário Económico (entretanto extinto) querer atingir “numa primeira fase o controlo de 10%” da empresa. No mês seguinte, acrescentava ao Expresso que o plano era ir “reforçando a posição consoante a cotação e as oportunidades de mercado”.

No primeiro trimestre de 2009, José Fazendeiro aumentara efetivamente a posição, até aos 4,99% (diretos e indiretos), mas os títulos desvalorizaram quase 15% em bolsa. Questionado pelo Diário Económico, em abril desse ano, sobre a liquidez anormalmente elevada do título, o gestor disse nada saber, mas voltou a afirmar querer continuar a aumentar a posição. Dez minutos depois da entrevista, ordenou a compra de 400 mil ações (um terço da média transacionada diariamente) e instruiu o trader do Deutsche Bank para que não comunicasse à CMVM que já tinha uma participação acima de 5%.

Na sessão seguinte, vendeu as ações e arrecadou 17 mil euros. “Com estas declarações a um órgão de comunicação social, o arguido quis, e conseguiu, fazer crer aos demais investidores que a Albano Alves estava ou estaria a preparar-se para adquirir mais ações da Inapa, induzindo o mercado nesse sentido e, consequentemente, fazendo subir, como aconteceu, a cotação desse título”, pode ler-se no acórdão. Em seis sessões, a cotação disparou 31% e volume de negociação 500%.

A estratégia de compra e venda, beneficiando das valorizações que se seguiam a declarações públicas, manteve-se até setembro de 2009, quando voltou a deter uma posição de apenas 2%. As sirenes já tinham tocado na CMVM. Acabou por correr mal: quando percebeu que as ações não tinham desvalorizado após as vendas como esperava, voltou a comprar no terceiro trimestre de 2009.

“O arguido agiu de forma livre e consciente, bem sabendo que a sua descrita conduta era proibida e punida por lei e configurava prática de crime”, concluiu o tribunal. A insolvência de José Fazendeiro levou a que a multa fosse apenas de 1.250 euros, a que acresce ainda a perda, a favor do Estado, das mais-valias conseguidas com o crime — 17.125,73 euros — e o pagamento das custas do processo.

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