Afinal, quem tem de avaliar idoneidade de Tomás Correia?
Braço de ferro entre ASF e Governo continua e o Código das Associações Mutualistas parece ter criado um vazio legal. Jurista admite que Código tem uma redação pouco clara, "confusa e insuficiente".
O novo Código das Associações Mutualistas (CAM) tem dado azo a um debate aceso e pouco consensual: afinal, qual é a entidade que tem a capacidade para avaliar a idoneidade de Tomás Correia? O Governo diz que cabe à Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (ASF); a ASF diz que, por lei, não lhe compete essa função.
A leitura do código é, na verdade, pouco clara, conta ao ECO Alexandra Valente, advogada de direito financeiro. Analisando-o ponto a ponto, admite que a supervisão não é explícita, mas que ASF tem mesmo responsabilidades.
Braço de ferro intensifica-se
As posições contraditórias entre o Governo e a entidade que regula o setor regulador continuam a extremar-se. Mas que argumentos têm usado para se defenderem? Vamos por partes.
De um lado, tem estado o presidente da ASF, José Almaça já afirmou que “o assunto da idoneidade não tem que ver com a ASF no período transitório”, fixado em 12 anos para adaptação ao novo regime de supervisão previsto, que passa a “ser-lhes plenamente aplicável a partir dessa data”, pode ler-se no artigo 6.º do CAM.
Ainda esta sexta-feira a entidade que regula as seguradoras voltou a reforçar que não tem “competências legais” para avaliar a idoneidade ou a qualificação de gestores em mutualistas.
Do outro lado o Governo, com o ministro do Trabalho e da Segurança Social, Vieira da Silva, a afirmar esta terça-feira que o código “é muito claro”: cabe ao regulador de seguros a supervisão das instituições, não sendo por isso necessário clarificar a lei.
Em causa tem estado o papel da ASF e a sua capacidade para avaliar a idoneidade de Tomás Correia, presidente da Associação Mutualista Montepio Geral (AMMG), que foi multado em 1,25 milhões de euros pelo Banco de Portugal, multa respetiva à altura em que era presidente do banco Montepio.
O próprio Tomás Correia já tinha feito saber em janeiro que, na sua opinião, enquanto as mutualistas estiverem no período de transição, não se aplicam as regras do setor segurador e, por isso, não cabe à ASF avaliar a sua idoneidade, mas à assembleia-geral da mutualista. E recusou que fosse uma interpretação sua. “Sei é ler o código”, disse aos jornalistas, depois de ter sido reeleito.
Os opositores de Tomás Correia convergem com a posição do Governo. António Godinho e Fernando Ribeiro Mendes, que concorreram nas últimas eleições à AMMG, já tinham adiantado ao ECO que Tomás Correia se deve afastar imediatamente para proteger a instituição aos riscos reputacionais que podem advir de uma condenação do Banco do Portugal.
Antes disso, o ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social e o ministério das Finanças emitiram um comunicado onde entendem que o regulador dos seguros já dispõe desses poderes de avaliar se determinado gestor preenche os requisitos para exercer funções numa associação mutualista. E apontavam para uma das alíneas do número 5 do artigo 6º do novo Código das Associações Mutualistas (CAM), que entrou em vigor em setembro:
- f) Analisar o sistema de governação e os riscos a que as associações mutualistas estão ou podem vir a estar expostas e a sua capacidade para avaliar esses riscos, por referência às disposições legais, regulamentares e administrativas em vigor para o setor segurador.
Para os dois ministérios, “estas disposições incluem, no entendimento do Governo, a análise sobre matéria da idoneidade dos membros dos órgãos de administração das associações mutualistas abrangidas pelo regime transitório de supervisão previsto no CAM”.
Mas, afinal, quem tem razão? E o que é que este código define? Estará o argumento do Governo, baseado na alínea f) do artigo 6º, certo? Ou o período transitório de 12 anos muda o cenário, como defende a ASF? Ao ECO, juristas que pediram o anonimato analisam o Código, ponto a ponto, e ajudam a desmistificar.
O que diz o CAM, afinal?
Uma jurista que é sócia do departamento financeiro de uma das mais relevantes sociedades admite que o CAM tem uma redação pouco clara, “confusa e insuficiente”. Ainda assim, a advogada explica ao ECO que, de facto, a AMMG só estará sujeita à supervisão da ASF “findos os 12 anos do período transitório”.
Porém, o tão citado artigo 6º do CAM atribui alguns poderes à ASF que deverão ser exercidos sobre as associações mutualistas supervisionadas durante os 12 anos do período transitório, “sem prejuízo das competências do ministro com o pelouro da segurança social”.
Um desses poderes atribuídos à ASF no período transitório vem referido na tal alínea f) do artigo 6.º. Segundo outro advogado, “este preceito atribui à ASF o poder de analisar o sistema de governação e os riscos das associações mutualistas supervisionadas”, ou seja, o conjunto das suas normas internas e a sua adequação. “Este é um poder de análise genérico, relativamente ao sistema de governação e riscos, e não um poder de pré-aprovação pela ASF de uma candidatura específica de um membro do conselho de administração de uma Associação Mutualista Supervisionada”.
Assim, de acordo com o código, “o período transitório de 12 anos não permite à ASF estabelecer um sistema de pré-avaliação da idoneidade de um administrador nos termos em que a mesma é feita no setor financeiro ou no setor segurador”, ou seja, diferente do que sucede com o Banco de Portugal na supervisão de outras identidades bancárias, explica o advogado. Isto, porque, a pré-avaliação não está contemplada.
Mas o artigo 100 estabelece os critérios de idoneidade para a eleição de membros de um conselho de administração de uma associação mutualista. “Ou seja, qualquer candidato a membro do conselho de administração deve cumprir critérios de idoneidade — o código diz que devem ser ‘pessoas idóneas’ — sob pena de se estar a incumprir a lei”.
“Assim, neste contexto, parece-me que o conceito de idoneidade no caso de administradores de associações mutualistas supervisionadas poderá e deverá ser preenchido com as regras que se estabelecem para o setor financeiro. Ou seja, uma condenação prévia por uma entidade reguladora poderá afastar a idoneidade do candidato ao cargo”, admite o jurista.
Deste modo, dado que a ASF tem o poder de analisar os riscos a que as associações mutualistas supervisionadas podem vir a estar expostas por incumprimento da lei, “parece-nos que se deve concluir que a ASF tem o poder de analisar o risco de incumprimento pela Associação Mutualista Montepio do artigo 100 do código relativamente à eleição de Tomás Correia, ou seja, a ASF tem o poder de analisar esta candidatura e pronunciar-se sobre se a sua eleição poderá violar o artigo 100 do CAM, por falta de idoneidade”, argumenta um terceiro advogado. Ou seja, por esse ponto de vista, a ASF continua a ser a entidade que determina idoneidade de Tomás Correia, no âmbito deste artigo.
De resto, parece existir mesmo um vazio legal no CAM quanto à supervisão destas associações. O ponto 5 do artigo 6.º do CAM “atribui este poder à ASF como forma de analisar o risco de incumprimento de uma lei, mas não lhe atribui poderes de supervisão ou de bloquear a referida eleição. Este poder não é também atribuído ao Governo”, conclui.
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