• Entrevista por:
  • Vasco Gandra, em Bruxelas

Regulador dos seguros europeus pede um fundo sísmico para Portugal

Em entrevista, Gabriel Bernardino garante que o setor tem rácios de solvência confortáveis e que há muitas oportunidades para crescer. E coloca na agenda portuguesa a criação de um fundo sísmico.

Gabriel Bernardino lidera o supervisor europeu dos seguros desde a sua criação, em 2011. Atualmente, no segundo mandato como chairman da Autoridade Europeia dos Seguros e Pensões Complementares de Reforma (EIOPA), com sede em Frankfurt, Gabriel Bernardino garante que o setor tem rácios de solvência confortáveis e que há muitas oportunidades para crescer.

Em entrevista ao ECO em Bruxelas, entre encontros com a Comissão e o Parlamento Europeu, Bernardino falou ainda do trabalho do supervisor na regulamentação dos PEPP, que deverão estar prontos no próximo ano. E os ‘PPRs europeus’ deverão começar a ser vendidos em 2021, com custos que não deverão exceder 1%.

Qual é o estado de saúde do setor dos seguros na Europa? Quais são os principais desafios?

O setor tem vindo a apresentar em termos de sustentabilidade rácios a nível europeu relativamente bons e confortáveis. Obviamente que após a introdução do novo regime de Solvência em 2016, e com o trabalho feito anteriormente, foi possível fazer uma transição sem grandes problemas. Portanto, e de um modo geral, o setor tem rácios de solvência confortáveis. Existem desafios muito significativos. Do ponto de vista económico o maior desafio é, sem dúvida, a questão das taxas de juro. Neste momento, estamos numa situação em que mesmo os cenários que costumamos testar em testes de stress em termos de curvas das taxas de juro, já estamos lá. É um stress vivermos um stress na realidade. E isso tem um impacto significativo ao nível do cálculo das responsabilidades das empresas de seguros, sobretudo para os produtos de longo prazo. A questão das taxas de juro negativas é algo que era impensável há 10 anos. Isto é um desafio bastante significativo.

E a situação em Portugal? Como vê o atual momento?

Como imagina, estou muito mais focalizado em olhar para as questões a nível europeu. Obviamente, há países cujo setor tem maiores períodos de adaptação para chegar aos rácios de Solvência I e Solvência II. Portugal é um dos casos e há um período de ajustamento que o próprio regime prevê, períodos de transição, e portanto há uma parte do mercado português que está nesse período e que necessita de ser monitorizado mais de perto. Mas o mesmo acontece noutros mercados. Diria que não há nada de especial nesse aspeto. Obviamente, requer uma supervisão muito atenta e uma atenção e uma análise às políticas de investimento, ao tipo de responsabilidades e aos níveis de capital.

Parece-lhe que em Portugal há margem para novos investimentos e para o crescimento do setor?

Acho que o setor — para além da questão das taxas de juro que implica ajustamentos e repensar alguns modelos de negócios — tem que se confrontar com outras realidades que são muito importantes sob o ponto de vista da definição do modelo de negócio. Nomeadamente a questão desta transição rápida para novas ferramentas digitais, a utilização de big data e modelos de inteligência artificial. Isto é uma mudança muito significativa no setor, em toda a cadeia de valor do setor — desde a definição dos produtos à interação com os consumidores, até à gestão dos sinistros. Portanto, há aqui um potencial e necessidade para novos investimentos mas também oportunidades tremendas para a definição de novos produtos e serviços em que o setor tem que ser inovador. Há um potencial para ter um crescimento no setor até porque — em Portugal e em muitos países da União Europeia — há deficiências em relação aos níveis globais de poupança, de poupança para a reforma.

Quais são os ramos com maior potencial de crescimento?

Depende muito dos países porque depende da estrutura da base social das diferentes áreas. Mas o que se nota em termos europeus é claramente uma tendência para um maior enfoque na poupança de longo prazo na questão da reforma — isto é um tema geral na União Europeia –, e também as questões relacionadas com a saúde. A questão da complementaridade dos seguros na área da saúde é cada vez mais relevante. Depende da estrutura dos países porque há países onde estes mercados já são mais desenvolvidos, outros menos. Diria que estas duas áreas — áreas dos seguros de massa — são as mais relevantes. Depois, numa altura em que a nossa sociedade é confrontada com um conjunto de novos riscos — o setor segurador enquanto setor que gere riscos tem efetivamente oportunidades. Falamos de riscos cibernéticos, os seguros relacionados com ocorrências de cybering estão cada vez mais a crescer e há uma oportunidade tremenda. Falamos de questões relacionadas com alterações climáticas ou na área das catástrofes. Portanto, há áreas de seguros de massa mas também áreas de nicho que têm potencialidades bastante significativas.

Na área das alterações climáticas quais são concretamente os novos desafios?

Há claramente dois aspetos. Um que já é realidade neste momento. Existe um protection gap muito significativo ao nível das catástrofes naturais. Se analisarmos o que são os custos de catástrofes naturais a nível europeu nos últimos 10, 20 anos e a parte dos custos que está coberta pela transferência para um seguro, este gap tem vindo a aumentar. Portanto, há aqui um potencial para o setor segurador contribuir. Não é o setor segurador que vai resolver todos os problemas das catástrofes naturais mas há um grande potencial para que o setor possa utilizar os mecanismos de gestão de riscos, de mutualidade, para dar muito mais proteção à nossa sociedade — quer aos indivíduos quer às empresas — em situações de catástrofes. É por isso que tenho posto na agenda portuguesa a questão de um fundo sísmico em Portugal porque é uma área onde o nível de proteção dos cidadãos e das empresas é muito diminuto. A questão dos terramotos é uma área onde algo deveria ser feito.

O quê exatamente?

Soluções que já vemos noutros países onde existe um mecanismo que junta a lógica pública e privada para conseguir ter um nível de penetração muito maior e uma proteção acrescida para as pessoas. No passado houve vários projetos apresentados. Antes da crise houve um projeto apresentado pelo regulador no qual estive bastante envolvido e que chegou a ter pernas para andar e suporte político. Mas depois veio a crise e isso passou. Acho que é tempo de o governo voltar a olhar para isso e, em conjunto com o regulador e com o setor, chegar a uma solução. Há boas bases. Acho que é um aspeto importante a ter em conta porque é uma questão de proteção social do nosso tecido económico e, para nós, como cidadãos. Tudo isto ganha mais relevância com o que vemos com as alterações climáticas. Pela situação costeira que tem e se virmos os relatórios internacionais nesta matéria, Portugal está numa zona de risco. E portanto o padrão de risco também se vai alterar no país e é fundamental que o setor segurador esteja envolvido nas soluções que permitam não só uma maior proteção quanto às alterações mas, ainda mais significativo, que o setor possa através da sua atividade de investimento e da sua atividade de subscrição de risco também induzir nas empresas e na economia real uma transição para uma economia mais sustentável e “verde”. O setor segurador tem um potencial para induzir bons comportamentos nesta matéria. É o que temos vindo a defender na Autoridade Europeia dos Seguros e Pensões Complementares de Reforma, e a aconselhar a Comissão a ajustar a regulamentação europeia no sentido de dizer que as seguradoras e os fundos de pensões devem considerar nas suas gestões os riscos relacionados com o ambiente e as alterações climáticas.

A AdC divulgou em agosto as conclusões de uma investigação no setor segurador em que constatou a existência de um cartel de empresas que combinavam entre si valores que apresentavam a grandes clientes empresariais na contratação de seguros. Que tipo de impacto têm estas práticas das empresas em termos de confiança no setor?

Não estou por dentro do caso em concreto. O que lhe posso dizer em termos genéricos é que é muito importante que as empresas no setor financeiro tenham práticas de governação que sejam sérias e que verifiquem os requisitos regulamentares que existem, e as questões relativas à concorrência são obviamente um dos requisitos. Acho que, a existirem estas situações, é positivo que a Autoridade da Concorrência atue e que o setor traduza no fim de contas as lições e ensinamentos que este tipo de processos deve traduzir. Ligou, e bem, à questão da confiança. Acho que é importantíssimo. O setor financeiro em geral vive muito na base da confiança. Estamos a falar muitas vezes de investimentos de longo prazo e é fundamental que haja confiança e que o setor adote as melhores práticas em termos de governação, de transparência e de verificação dos requisitos legais. Nesse aspeto, é muito importante olharmos também para as lições da crise em que claramente muitas das situações que nós verificámos em Portugal e noutros países tiveram que ver com questões de governação, de más práticas e de não se verificarem princípios que são fundamentais em termos de governo das sociedades e de transparência. Deve ser tido como algo importante para não repetir.

A União Europeia vai introduzir no mercado dos planos de poupança individual um novo produto de poupança reforma — o “PPR europeu” ou PEPP (Pan-European Personal Pension Product). Os PEPP serão registados na EIOPA. Quando começarão a ser vendidos e que vantagens trazem?

A lógica de criação do plano europeu de poupança individual é de tentar trazer concorrência para o mercado — isto não é um produto obrigatório, é facultativo, funcionará em todos os mercados da União Europeia em paralelo com os produtos existentes. Qual é a lógica subjacente? Primeiro, tentar que seja um produto o mais simples, transparente e cost-effective possível. O que nós vimos em termos europeus é que há muitos países onde os produtos de poupança individual são muito complexos ou os custos associados em termos de comissões ou de gestão são muito significativos e portanto comem uma parte significativa do retorno que é possível obter ao fim de alguns anos. A transparência não era a melhor. O que tentámos fazer foi pegar no que se vê de melhor em todos os mercados europeus e traduzir isso num produto que seja mais simples, mais transparente e o mais eficiente possível em termos de custos.

Segundo, que este produto possa ser feito numa lógica pan-europeia. Desde logo que possa ser vendido em toda a União Europeia. Porque é que alguém em Portugal não pode comprar um produto de poupança que seja vendido por uma empresa de outro país? Nós também temos que ver a mobilidade dos cidadãos dentro da União Europeia. Em vez do que acontece hoje — em que temos um mercado completamente fragmentado e uma pessoa vai tendo bocadinhos da sua reforma pelos sítios por onde passa –, porque não haver a possibilidade de ter tudo integrado num só produto que dá capacidade para ter melhor retorno e melhor investimento? Estamos neste momento na fase de regulamentação. A EIOPA tem até agosto de 2020 para fazer a regulamentação do produto. Há um regulamento europeu que é automaticamente aplicável mas existe uma série de elementos de regulação secundária que têm de ser definidos. Coisas muito importantes como os custos e comissões que podem ser incluídos. Há um teto para os custos de 1% do montante que uma pessoa tem no seu plano anualmente. A responsabilidade da EIOPA é definir o que está e como incluído nesse 1%, portanto, garantir a transparência. Vamos definir um documento de informação para os consumidores na fase pre-contratual que vai ser digital por forma a ter informação disponível via smartphone. Tudo a pensar no que serão os novos clientes e o futuro. Esta fase de regulação acabará em agosto de 2020. A minha expectativa é que em 2021 teremos os primeiros PEPP a ser vendidos à escala europeia. Acho que é importante para a cidadania europeia ter um referencial de qualidade nesta matéria. Se o PEPP for um sucesso, se os consumidores tiverem confiança e se for bem supervisionado, acho que terá também implicações ao nível dos outros produtos no mercado. Se for um sucesso, vai induzir que outros produtos sejam ajustados.

  • Vasco Gandra, em Bruxelas

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