Mandato de oito anos começa esta quinta-feira, mas o caminho (pelo menos inicial) já está definido. As diferenças deverão ser reduzidas e a principal será na relação com os mercados.
“Não é necessário nenhum conselho. Ela sabe, perfeitamente bem, o que tem de fazer”. Foi assim que Mario Draghi respondeu quando foi questionado, após a última reunião a que presidiu no Banco Central Europeu (BCE), sobre a sucessora. Christine Lagarde assume agora funções como quarta presidente da instituição e, apesar de o italiano não ter deixado recomendações, deixou o caminho traçado.
Aos 63 anos, Christine Lagarde interrompeu o segundo mandato de cinco anos à frente do Fundo Monetário Internacional (FMI) — que terminava só em 2021 — para assumir funções como presidente do BCE, num mandato único de oito anos que começa esta sexta-feira, dia 1 de novembro.
Não só será a primeira mulher a ocupar o cargo, como será a primeira presidente da entidade responsável pela política monetária da Zona Euro que não é economista de formação — é advogada –, e a segunda com nacionalidade francesa: o primeiro foi Jean-Claude Trichet, antecessor de Draghi.
“A nomeação de Christine Lagarde foi uma excelente nomeação porque ela não tem nada a ver com bancos centrais. Tem tudo a ver com política e a minha previsão é que Christine Lagarde não irá, nunca, em oito anos de mandato mudar a política monetária. Já está definida“, vaticina Neil Dwane, estratega global da Allianz Global Investors.
Aplicar a estratégia que não desenhou
Lagarde participou pela primeira vez, a 24 de outubro, numa reunião do Conselho de Governadores do BCE, naquela que foi a última de Draghi. Limitou-se a assistir e não se pronunciou, mas mesmo que o tivesse feito, já a estratégia havia sido anunciada um mês antes.
Antes da saída, o italiano — responsável por implementar medidas nunca usadas na Zona Euro e que foram vistas como a salvação do euro — definiu o curso: cortou a taxa de depósitos para um nível ainda mais negativo de -0,5% (mas criando dois escalões para mitigar o impacto nos bancos) e relançou as compras líquidas do programa de compra de ativos no valor de 20 mil milhões de euros por mês a partir de 1 de novembro.
“De facto, a sucessora de Draghi está obrigada a aplicar um programa que já está desenhado. Terá alguma flexibilidade para calibrar os parâmetros da política predeterminada, mas a direção principal já está decidida por um longo período de tempo”, refere Éric Dor, diretor de estudos económicos da francesa IÉSEG School of Management.
A nomeação de Christine Lagarde foi uma excelente nomeação porque ela não tem nada a ver com bancos centrais. Tem tudo a ver com política e a minha previsão é que Christine Lagarde não irá, nunca, em oito anos de mandato mudar a política monetária. Já está definida.
Este será o principal desafio de Lagarde, na chegada ao BCE: aplicar uma estratégia que não planeou. E com agravantes. Por um lado, a decisão foi tudo menos consensual e, após o anúncio, uma série de Governadores criticaram-na publicamente — algo inédito –, incluindo os governadores do Banco Central da Alemanha, da Holanda e da Áustria.
Além de encontrar o Conselho de Governadores com a maior divisão de que há memória, Lagarde terá ainda de lidar com a possível fadiga dos estímulos e com os seus efeitos secundários.
“O maior desafio serão os efeitos negativos da política monetária expansionista“, apontou Jörg Krämer, economista-chefe do Commerzbank, alertando para o risco de uma bolha imobiliária e a sobrevivência de empresas zombie. “Outro é a fadiga das reformas e falta de apetite dos países para lidarem com os seus próprios problemas, enquanto as implicações positivas vão diminuir ao longo do tempo”.
Lagarde já lança farpas aos Governos
“Draghi ganhou estatuto e autoridade durante um período de crise severa e quase-colapso dos mercados financeiros periféricos. Estas condições já não se aplicam e a sua sucessora terá de estabelecer a sua própria autoridade. Isso será difícil”, lembrou Steven Bell, diretor-geral e economista-chefe da BMO Global Asset Management.
“Christine Lagarde tem um desafio menor porque a economia do euro ainda está a crescer, apesar de a ritmo de caracol. Mas também terá munições menores para combater a próxima recessão. Se a economia reavivar, tudo estará bem. Se não, o seu mandato será difícil”, sublinhou.
O que motivou a ação do BCE, que no ano passado mostrava otimismo e vontade de inverter a política monetária, foi a desaceleração da economia global. Na Alemanha, o Bundesbank alertou para uma possível recessão à espreita, aumentando os receios sobre o impacto para toda a Zona Euro.
Draghi ganhou estatuto e autoridade durante um período de crise severa e quase-colapso dos mercados financeiros periféricos. Estas condições já não se aplicam e a sucessora terá de estabelecer a sua própria autoridade. Isso será difícil.
Draghi passou oito anos a alertar que o BCE não pode atuar sozinho e a incitar os Governos a usarem a política orçamental para estimular a economia e apoiar os efeitos da política monetária. Lagarde, ainda antes de ter chegado ao lugar, já começou a fazer o mesmo.
“Aqueles que têm margem de manobra, os que têm excedente orçamental — como a Alemanha ou a Holanda — porque não usarem esse excedente orçamental e investir em infraestruturas? Porque não investirem em educação ou inovação?”, lançava Lagarde, em declarações à RTL.
Se, por um lado, Draghi deixou parte do plano definido, por outro, Lagarde poderá por si própria seguir-lhe alguns passos. Até porque, sublinham os analistas, tem mostrado apoio e concordância em relação às políticas adotadas pelo banco central.
“Considerando as suas declarações enquanto diretora-geral do FMI, na essência, Lagarde, concorda com a política que o BCE tem vindo a levar a cabo nos últimos anos”, diz Rui Serra, economista-chefe do Banco Montepio. “Cremos que Draghi facilitou o trabalho de Lagarde. É mais fácil suceder a Draghi do que ter sucedido aos anteriores presidentes do BCE“.
Menos relação com os mercados, mais política
Então quais as diferenças entre o italiano e a francesa? São poucas, mas existem. Bell lembra que enquanto Draghi tem um forte background académico, de banca e bancos centrais, que Lagarde não tem. Este foi-lhe útil no Conselho de Governadores, mas também na relação com os mercados.
O presidente que com três palavras — whatever it takes — salvou o euro, foi mestre em passar a mensagem aos mercados financeiros e essa poderá ser uma das principais diferenças. “Comunicar [publicamente] uma mudança política e depois pressionar o Conselho de Governadores a aprová-la, algo que Draghi fazia regularmente“, é a mudança esperada por Krämer. “Não é o estilo dela”, diz.
Considerando as suas declarações enquanto diretora-geral do FMI, na essência, Lagarde, concorda com a política que o BCE tem vindo a levar a cabo nos últimos anos. Cremos que Draghi facilitou o trabalho de Lagarde. É mais fácil suceder a Draghi do que ter sucedido aos anteriores presidentes do BCE.
Por outro lado, Lagarde tem mais experiência governativa (foi Ministra das Finanças em França) e de equilibrar forças numa grande organização global, o que poderá ser especialmente útil no papel do BCE no trabalho de completar a união monetária.
“O que ela irá fazer é usar a credibilidade do BCE — que é bastante elevada — para bater em cabeças em Bruxelas, Paris, Berlim, Madrid, Lisboa… Porque é preciso uma união dos mercados de capitais, união de depósitos, orçamento do euro e ministro das Finanças do euro”, acrescentou Dwane, da Allianz GI. “Ela irá conseguir isso. A questão é, se não conseguir nos oito anos do mandato, o que irá acontecer à sustentabilidade e à viabilidade da Zona Euro?“
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Com pouca margem e na sombra do antecessor, Lagarde chega hoje à liderança do BCE
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