"Se decidirmos afetar agora só 70% [do Fundo de Recuperação, e não os 100%", como sugere a proposta de Charles Michel "isso diminui a capacidade de cada país planear já a totalidade do seu programa".
Portugal entra no Conselho Europeu que se inicia esta sexta-feira com a expectativa de que ainda será possível chegar a acordo este mês sobre o plano de recuperação da União Europeia (UE). O mais tardar no início do outono. Em entrevista ao ECO, o ministro dos Negócios Estrangeiros alerta que se deve “evitar uma discussão demasiado nacional” e recorda que todos ganham se houver acordo.
“Esse acordo deve ser conseguido a tempo de os instrumentos financeira estarem em condições de serem utilizados a partir do início do próximo ano”, defende Augusto Santos Silva. Estes montantes serão determinantes para que os Estados possam financiar os planos de retoma e inverter a recessão que as previsões da Comissão Europeia antecipam.
A cimeira europeia extraordinária de 17 e 18 de julho promete ser tensa, especialmente devido à relutância dos Estados chamados “frugais” em relação ao plano de recuperação, composto por 250 mil milhões de euros em empréstimos e, acima de tudo, subsídios de até 500 mil milhões, que não terão de ser reembolsados pelos Estados beneficiários. Os Países Baixos, Áustria, Suécia e Dinamarca, em particular, mostram-se muito cautelosos com o plano, que beneficiará principalmente os países do sul, Itália e Espanha em destaque, os mais afetados pelas devastadores consequências socioeconómicas da pandemia.
O chefe da diplomacia portuguesa defende que Portugal não tem linhas vermelhas nesta discussão, porque não é esse o estilo do país. Prefere falar em construir pontes e garante que basta “racionalidade” para se conseguir desbloquear uma negociação que permitirá dotar a Europa de um próximo Quadro Financeiro Plurianual, o orçamento da UE para 2021-2027 (revisto recentemente para 1,07 biliões de euros), acoplado de um Fundo de Recuperação (de 750 mil milhões euros).
Augusto Santos Silva elenca os sete pontos que é preciso fechar para construir uma decisão final e reconhece o papel de liderança que António Costa tem assumido nestas negociações. O primeiro-ministro “é um dos protagonistas principais deste processo de aproximação de posições, de negociação, de construção de um compromisso, isso parece-me evidente. E digo mais. O exemplo português foi muito importante para que a iniciativa franco-alemã e a proposta da Comissão Europeia fossem possíveis”.
Parte para este encontro com uma postura pessimista, tendo em conta os resultados da conversa de António Costa com o homólogo holandês e as declarações da chanceler Angela Merkel?
Desejamos que seja alcançado o mais depressa possível um acordo sobre o Quadro Financeiro Plurianual e sobre o Plano de Recuperação da Economia Europeia. Esse acordo deve ser conseguido a tempo de os instrumentos financeira estarem em condições de serem utilizados a partir do início do próximo ano. Quanto mais depressa o acordo for obtido melhor. A nossa expectativa é de que acordo ainda possa ser obtido ainda durante o mês de julho, senão até ao início do próximo outono. E é nessa expectativa que trabalhamos.
Usando as expressões do primeiro-ministro, onde está o compromisso entre o “cheque em branco” e a “nova troika”?
Não é um cheque em branco visto que não se tratar de dar dinheiro, seja a quem for, para poder gastar à vontade. Este dinheiro é nosso, de nós todos, resulta de um empréstimo que a Comissão Europeia vai contrair, em nosso nome, e que todos nós teremos de pagar em condições muito mais favoráveis do que teríamos se cada um fosse ao mercado isoladamente, em matéria de maturidade, de juros, de moratória para o início do pagamento da amortização do empréstimo. Mas vamos pagar. Portanto, não é um cheque em branco. Todos sabemos que estes recursos financeiros, que estarão disponíveis para todos os Estados membros, só podem ser utilizados em planos de investimento e reformas que cada Estado-membro apresentará e negociará com a Comissão Europeia e que devem estar comprometidos com as prioridades da UE: como a transição digital, climática, a reindustrialização da Europa, a soberania económica da Europa, o reforço dos sistemas de saúde, etc.
Mas não é uma troika visto que as condições não são definidas por uma entidade externa a cada Estado. É cada Estado que vai construir o seu próprio plano de recuperação e resiliência, segundo os seus objetivos, as suas linhas de investimentos de acordo com as prioridades que todos os líderes europeus definiram, na agenda estratégica da UE 2019-2024 que é o quadro geral em que se inscrevem os planos nacionais. Cada país construirá o seu plano, por isso é que não é uma troika.
O que pode ser determinante para desbloquear um acordo desta natureza?
Muito simples. Racionalidade. Tenho insistido muito, e o primeiro-ministro também, que não estamos a tratar de programas de assistência ou, sobretudo, de questões de solidariedade, mas de um plano de recuperação da economia europeia. O objetivo do plano é repor e preservar o funcionamento do mercado interno – um dos grandes acquis da construção europeia –, favorecer a recuperação da economia europeia devastada pelas consequência da pandemia, basta olhar para as projeções publicadas pela Comissão Europeia a semana passada, para compreender bem e que se destina a apoiar o esforço da UE para passar com sucesso três provas muito importantes: a transformação digital das economias, a ação climática e a reindustrialização. Não é uma questão moral, mas de racionalidade económica. É um plano de que vão beneficiar Alemanha e Portugal, França e Grécia, Irlanda e Holanda, Hungria e Suécia. Todos beneficiam.
Dito assim parece muito simples, mas as negociações vão-se arrastando…
Vão-se arrastando porque faz parte da lógica negocial. Cada país vai afirmando as suas posições para ganhar, não digo vantagem negocial, mas argumentos negociais. Se todos os países fizessem isso, evidentemente que não haveria. Felizmente, a larguíssima maioria dos países, entre os quais Alemanha, Portugal e França, e tantos outros, já manifestaram a sua vontade de chegar a um compromisso e já mostraram concretamente como pode ser obtido. A proposta da CE e a caixa negocial do presidente do Conselho Europeu vão nesse sentido da possibilidade de um compromisso. É evidente que há países que têm uma orientação muito restritiva em matéria de europeização da política económica que resistem bastante a este esforço de criar um plano económico europeu. Na nossa opinião, esses países estão a ver mal a coisa.
Entre a proposta da Comissão e da Charles Michel, para Portugal é mais vantajoso que a chave da distribuição assente na quebra do PIB em 2020 e 2021 ou a evolução do desemprego entre 2015 e 2019?
Compreendemos a lógica da proposta apresentada pelo presidente do Conselho Europeu. Basicamente, significa decidir uma afetação dos recursos pelos Estado membros, num montante equivalente a 70% do total de recursos a que teriam acesso agora, em função de indicadores passados, e reservar 30% para, num momento mais tarde, afetar esses 30% de acordo com um critério fundamental que é a evolução económica dos diferentes países em 2020 e 2021. Percebemos essa lógica. A proposta tem, contudo, um senão. Se decidirmos afetar agora só 70%, e não os 100%, diminuindo a capacidade de cada país planear já a totalidade do seu programa, sendo certo que este é muito front loaded, muito concentrado nos primeiros anos. Esta proposta de Charles Michel tem aspetos positivos e aspetos, não diria negativos, mas menos positivos. É um esforço para que haja aproximação de posições. Contribui para isso bem, esperemos que o faça.
Esta proposta de Charles Michel tem aspetos positivos e aspetos, não diria negativos, mas menos positivos. É um esforço para que haja aproximação de posições. Contribui para isso bem, esperemos que o faça.
Se esta for a proposta que os frugais aceitem, não é uma linha vermelha para Portugal?
O primeiro-ministro tem dito que não temos linhas vermelhas nesta discussão. Não é, aliás, uma característica portuguesa. Não somos um dos países que ameaçam com vetos. Somos dos países que constroem pontes. Também devemos, nesta altura, quando falamos a horas da realização do Conselho Europeu, evitar uma discussão demasiado nacional. O que está aqui em causa é chegarmos a um acordo que permita à economia europeia ter condições de recuperação rápida e forte. Daí a ideia de resiliência para além de recuperação. Uma recuperação rápida e que nos torne mais fortes perante novas ameaças. Essa é a nossa preocupação essencial. Se chegarmos a acordo, ganhamos todos. Se não chegarmos, perdemos todos. Neste momento, o importante é chegar a acordo que permita que os recursos financeiros de que a recuperação da economia europeia precisa sejam mobilizados o mais depressa possível. Isto tem uma lógica sequência.
Quer explicar?
Num primeiro momento, tivemos os Estados membros a investir os seus próprios recursos orçamentais para conter a pandemia, reforçar os sistemas de saúde, apoiar as empresas, os trabalhadores, os rendimentos das famílias. Um após outro, os Estados foram apresentando novos orçamentos suplementares, foram aos mercados endividar-se mais, aprovaram nos seus Parlamentos tetos de endividamento mais altos. Isso foi feito.
Entretanto, o Banco Central Europeu interveio no sentido de impedir ataques especulativos nos mercados sobre as dívidas soberanas e isso tem resultado muitíssimo bem. Entretanto, o Eurogrupo construiu depois dois instrumentos de resposta imediata: o SURE para apoiar os Estados-membros através de empréstimos para despesas com emprego, lay-off, formação, saúde. Esse instrumento está aprovado e estamos à espera só que todos os Estados-membros aprovem as respetivas garantias — no caso português isso ficou aprovado no Orçamento Suplementar — para que o SURE seja imediatamente mobilizado pelos Estados.
Depois a Comissão Europeia propôs um instrumento de reforço do atual Quadro Financeiro Plurianual que é o ReactEU que significa termos mais recursos financeiros que possamos aplicar ainda este ano. E estamos a trabalhar para que, em 2021, possamos ter não só um novo um novo QFP como termos acoplado a ele um poderosíssimo surplus, um acréscimo de recursos financeiros que é o tal plano de recuperação. Isto tem uma sequência lógica. Atrasos nesta sequência são muito indesejáveis.
Se não houver acordo para já…
Não gosto que me façam perguntas começadas por «se».
Na perspetiva de que haja atrasos como é que isso poderá afetar a intenção do Governo português de apresentar o seu plano de recuperação?
Portugal está tão envolvido em contribuir para que haja um acordo, em apoiar os esforços do presidente do Conselho Europeu, da Comissão Europeia, de França e da Alemanha para se chegar a um acordo, porque é que iríamos estar aqui a congeminar sobre o que sucederia se esse acordo não existisse. Concentremo-nos sobre o que é possível fazer.
António Costa está a assumir um papel de liderança nesta tentativa de desbloquear um acordo, usando a tradição portuguesa de fazer pontes?
Não diria liderança porque faço parte do Governo e não me parece que seja ao Governo português que compita elogiar-se a si próprio. Agora que é um dos protagonistas principais deste processo de aproximação de posições, de negociação, de construção de um compromisso, isso parece-me evidente. E digo mais. O exemplo português foi muito importante para que a iniciativa franco-alemã e a proposta da Comissão Europeia fossem possíveis, porque o exemplo português mostrou que não havia nenhuma fatalidade associada ao Sul, que um país do sul poderia pôr em prática as políticas que livremente escolheu, as políticas que o seu Parlamento sufragou e cumprir, aliás, por excesso, os objetivos dos critérios de Maastricht, os objetivos quer de crescimento económico quer de consolidação orçamental, que se fixou, e as suas obrigações como Estado-membro da zona euro. Desse ponto de vista, acho que se pode falar de um duplo protagonismo de Portugal, pelo exemplo e pelo capital, prestígio que o seu primeiro-ministro foi acumulando e pela forma empenhada como se tem envolvido na procura das melhores soluções para a Europa.
Acho que se pode falar de um duplo protagonismo de Portugal, pelo exemplo e pelo capital, prestígio que o seu primeiro-ministro foi acumulando e pela forma empenhada como se tem envolvido na procura das melhores soluções para a Europa.
No final do encontro com o homólogo holandês, António Costa disse que haverá um ponto em que deixarão de ser os 23 países a ceder sempre às exigências dos países frugais e serão eles a dizer não. Onde se pode traçar essa linha ténue de viragem?
Já houve momentos em que isso aconteceu. Quando a presidência finlandesa apresentou a sua proposta de quadro negocial no fim do ano passado, a larguíssima maioria dos Estados membros disse “isto não é aceitável” e essa proposta morreu. Depois, o presidente do Conselho Europeu apresentou a sua e a Comissão também. Por vezes isso acontece, o primeiro-ministro disse uma coisa óbvia. Os 27 é que decidem por consenso o futuro da união Europeia. Não são quatro que podem decidir em vez dos 27.
A proposta de Charles Michel aponta para que a aprovação e controlo das verbas seja feito por unanimidade. Portugal defende a maioria qualificada. Este é um ponto de honra para Portugal?
É um dos pontos essenciais para que possa haver acordo. Para nós, e não é só para nós, para qualquer observador atento há sete pontos críticos no processo de decisão do novo Quadro Financeiro Plurianual e do Plano de recuperação que lhe vem acoplado.
- O volume global de recursos
- O equilíbrio entre subvenções e empréstimos
- A chave de afetação dos recursos aos diferentes Estados-membros
- Qual a baliza temporal de implementação do plano de recuperação
- Diz respeito à condicionalidade que já falámos
- O modelo de governação
- A forma de pagamento do empréstimo que a Comissão Europeia vai contrair se através de novos recursos próprios, de um aumento das contribuições nacionais ou de um mix das duas coisas.
A questão que me coloca é relativa ao sexto ponto, o do modelo de governação. Mas como mostrei há vários pontos em aberto e temos de os fechar todos. A maneira como vamos fechando cada um desses pontos é que vai construindo uma decisão final.
Não poderia deixar de o questionar sobre a abertura de fronteiras e as decisões que os países vão tomando. Todo o ruído em torno desta questão é tão prejudicial como a decisão de não abrir as fronteiras durante 15 dias?
A posição portuguesa é muito simples. Em primeiro lugar, através dos nossos ministros da Administração Interna decidimos que reporíamos a liberdade de circulação no espaço Schengen ao longo do mês de junho. Não conseguimos compreender porque vários Estados-membros, na prática, ainda não cumpriram essa orientação que eles próprios, tal como os outros aprovaram. Segundo, há países que têm procedido a revisões, algumas quase permanentes dos conselhos aos seus viajantes, ou das suas medidas restritivas. Nós não seguimos esse método porque cria uma incerteza e insegurança nas pessoas e nas economias que nos parece muito indesejável.
Em terceiro lugar, registamos que há países que colocaram restrições a viajantes oriundos de Portugal por via aérea. Alguns, entretanto, levantaram as restrições, reviram as decisões, estou a falar da Grécia, da República Checa ou de Malta e alguns reviram parcialmente essas decisões num sentido que, aliás compreendemos.
Quando a Holanda, os Países Baixos como agora se diz, diz que Portugal é destino seguro, mas a região de Lisboa deve ser colocada num sinal amarelo – imaginando um semáforo verde, amarelo e vermelho — compreendemos, porque em Lisboa em nove freguesias ainda nos defrontamos com uma situação epidemiológica difícil e mantemo-las em estado de calamidade. Quando a Bélgica decidiu colocar Portugal na luz verde do seu semáforo exceto essas 19 freguesias de Lisboa, também compreendemos que há aqui uma evolução que tem o seu racional. Vamos acreditando que ao longo das próximas semanas consigamos cumprir aquilo que nós próprios decidimos – a reabertura do espaço Schengen.
Decidimos que reporíamos a liberdade de circulação no espaço Schengen ao longo do mês de junho. Não conseguimos compreender porque vários Estados-membros, na prática, ainda não cumpriram essa orientação que eles próprios aprovaram.
Mas esta abertura ao turismo não pode ser contraproducente do ponto de vista de saúde pública? Vemos imagens de jovens, em festas no Algarve, que se recusam a usar máscaras…
Pois… Isso é a prova de que não é a quarentena que resolve. A questão essencial é: o que resolve a nossa luta contra a pandemia são as regras de distância social, a proteção individual de nós próprios e dos outros, de higienização dos espaços, de proibição de ajuntamentos, de contingentação dos espaços, etc, são essas regras que permitem vencer a pandemia seja aqui, seja do outro lado da fronteira. Decidimos ser uma união caracterizada entre outras coisas por ser um espaço de circulação, sem fronteiras. Devo tratar de um foco numa cidade alemã, espanhola ou portuguesa da mesma maneira.
Não fechando as fronteiras entre Alemanha, Espanha ou Portugal, mas intervindo nesses focos, se necessário até reconfinando as pessoas, voltando atrás nos processos de desconfinamento, impondo outra vez cercas. Nada disto tem sentido ser feito entre países ou por estigmatização recíproca ou por uma lógica cujos fundamentos técnicos não se compreendem. A nossa discussão sobre as quarentenas ou as restrições ao tráfego aéreo não tem a ver com a nossa discussão sobre as medida de saúde pública que é necessário continuar a utilizar para que possamos deixar a pandemia para trás das costas.
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“Portugal não ameaça com vetos. É um país que constrói pontes”, diz Augusto Santos Silva
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