Uso obrigatório de apps de rastreio contraria OMS e Comissão Europeia
A OMS defende que "a decisão de descarregar e usar uma aplicação que contribua para a vigilância em saúde pública ou para o rastreio digital de proximidade deve ser voluntária e informada".
A Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Comissão Europeia defendem em orientações sobre aplicações de rastreio de contactos para a Covid-19 que o seu uso não deve ser obrigatório, como pretende o Governo português.
O Executivo de António Costa propôs esta semana numa proposta de lei entregue no Parlamento tornar obrigatório o uso da aplicação de rastreio de contactos StayAway Covid em contexto laboral, escolar e académico, bem como nas Forças Armadas, forças de segurança e administração pública, uma proposta controversa cuja constitucionalidade foi questionada.
A proposta de lei do Governo prevê multas até 500 euros por incumprimento, quer do uso da aplicação naqueles contextos, quer do uso de máscara, que o Governo também quer tornar obrigatório no “acesso ou permanência nos espaços e vias públicas”.
A intenção de António Costa, que esta semana declarou querer dar “um abanão” na sociedade portuguesa, entra em contradição com as orientações da OMS, que em maio deste ano publicou várias considerações éticas sobre o assunto, dizendo explicitamente que “a decisão de descarregar e usar uma aplicação que contribua para a vigilância em saúde pública ou para o rastreio digital de proximidade deve ser voluntária e informada”.
“Os Governos não devem tornar obrigatório o uso de uma aplicação” e “uma pessoa deve ser livre de desligar a aplicação quando quiser e deve ser livre para a apagar quando quiser”, defende a agência das Nações Unidas para a saúde.
Em orientações sobre o uso de aplicações de rastreio emitidas em abril deste ano, a Comissão Europeia defendeu que “a instalação de uma aplicação nos dispositivos móveis deve ser voluntária e não deve ter qualquer consequência negativa para a pessoa que decida não descarregar ou usar a aplicação”.
Apesar de não serem orientações vinculativas, estes princípios voltaram em maio a nortear novas orientações da Comissão sobre a compatibilidade destas aplicações entre os diversos Estados-membros, de forma a garantir a sua funcionalidade quando os cidadãos se deslocam: “Devem ser voluntárias, transparentes, temporárias, ciberseguras, usar dados temporários e anónimos, utilizar tecnologia Bluetooth e ser aprovadas pelas autoridades nacionais de saúde”.
Nenhum país europeu tem aplicações obrigatórias. A Eslovénia foi o único país europeu em que se considerou a hipótese de tornar obrigatório o uso da aplicação de rastreio OstaniZdrav’ que começou a ser aplicada em agosto deste ano, pouco antes de a StayAway Covid ser lançada, e foi adaptada da que é utilizada na Alemanha.
Antes de a introduzir, o Governo de Janez Jansa defendeu o seu uso obrigatório para as pessoas infetadas ou em quarentena, o que foi contestado pela oposição no Parlamento esloveno, que acusou o executivo de estar a introduzir lentamente uma ditadura no país.
A China, onde o novo coronavírus surgiu, foi também o primeiro país a adotar aplicações de rastreio de contactos, uma das quais atribuiu aos cidadãos um código de risco de contágio por exposição ao vírus, sem o qual ninguém conseguia entrar ou sair de determinadas regiões do país.
Na Turquia de Recep Tayip Erdogan, quem estiver infetado com o novo coronavírus é obrigado a descarregar a aplicação Hayat Eve Sigar e os seus dados de localização são partilhados pelo ministério da Saúde turco com a polícia. Quem viola a quarentena é primeiro avisado, mas depois pode ser multado ou preso.
Singapura impõe o uso da sua aplicação de rastreio, Tracetogether, a trabalhadores migrantes que considera estarem em situações de risco elevado, como os do setor da construção que partilham dormitórios comunitários ou os que trabalham nos portos.
No Qatar, a aplicação Ehtera’ é obrigatória para quem queira andar na rua e quem se recuse instalá-la pode ser multado ou ficar sujeito a três anos de prisão.
Na Índia, um dos países com mais infetados, desde maio que é obrigatório para todos os trabalhadores dos setores público e privado ou para as pessoas em zonas sob confinamento instalar a aplicação Aarogya Setu, sob pena de multas ou penas de prisão que podem ir até dois anos.
A Comissão Nacional de Proteção de Dados alertou na quarta-feira que o uso obrigatório da StayAway Covid “suscita graves questões relativas à privacidade dos cidadãos” e a Associação D3 já disse que admitia avançar com uma providência cautelar para travar a obrigatoriedade de instalar a aplicação, dizendo que “as apps obrigatórias não pertencem a uma Europa democrática”.
Bloco de Esquerda, PCP, CDS-PP, PAN, Verdes e Chega já se manifestaram contra a obrigatoriedade do uso da aplicação, enquanto o líder do PSD, Rui Rio, manifestou dúvidas em relação à eficácia de tal medida, remetendo a sua análise para a apreciação em comissão parlamentar.
O Presidente da República, afirmou que se persistirem dúvidas de constitucionalidade sobre a lei que obriga à utilização da StayAway Covid’, a enviará para fiscalização preventiva por parte do Tribunal Constitucional.
A aplicação móvel, lançada em 01 de setembro, permite rastrear, de forma rápida e anónima e através da proximidade física entre smartphones, as redes de contágio por Covid-19, informando os utilizadores que estiveram, nos últimos 14 dias, no mesmo espaço de alguém infetado com o novo coronavírus SARS-Cov2.
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