Justiça dos EUA fez mira à Google. Agora, puxou o gatilho

Mais de um ano depois do início da investigação, a justiça dos EUA acusou a Google de proteger ilegalmente o seu domínio nas pesquisas online. O caso vira uma página na história da empresa.

A Google está formalmente na mira da Justiça. O Departamento de Justiça dos EUA acusou a multinacional de proteger ilegalmente um monopólio nas pesquisas digitais e na publicidade que lhe é associada. O processo resulta de uma investigação em curso há mais de um ano e é a maior ação judicial contra uma grande empresa de tecnologia desde a acusação à Microsoft nos anos 90.

No centro do processo está a forma como a Google promove o conhecido motor de busca homónimo, que processa cerca de seis mil milhões de pedidos a cada dia. A justiça federal alega que a Google tem cimentado um monopólio através de contratos exclusivos com fabricantes de telemóveis, operadoras de telecomunicações e browsers. Atualmente, a Google processa cerca de 87% das pesquisas feitas em todo o mundo e detém 90% do mercado global de anúncios apresentados nos resultados.

O Departamento de Justiça considera que a atitude da empresa ao longo dos anos tem impedido o sucesso de concorrentes neste negócio. Exemplo disso é o famoso contrato entre a Google e a Apple para que o Google.com seja o motor de busca predefinido no browser Safari. É graças a ele que largas dezenas de milhões de pesquisas nos iPhones são canalizadas para o motor de busca da Google, que usa este tráfego para vender publicidade e continuar a garantir acordos do mesmo tipo com outros distribuidores, dando continuidade ao ciclo de domínio da empresa sobre estes mercados.

Apesar de não existirem números oficiais, o The Wall Street Journal estima que a Google pague à Apple perto de 11 mil milhões de dólares (9,3 mil milhões de euros) por ano para ser o motor de busca de eleição no iOS. É um terço dos lucros anuais da Alphabet, dona da Google, e representa entre 15% e 20% dos lucros da Apple no mesmo período. Mais surpreendente é a alegação de que o volume de tráfego garantido pela fabricante do iPhone corresponde a metade de todo o tráfego do Google.com. Em jeito de curiosidade, o jornal conta que a possibilidade do fim deste contrato é apelidada internamente na Google com o nome “Code Red” (código vermelho, em português).

Numa reação à acusação judicial, Kent Walker, administrador legal da empresa, escreveu que “a ação do Departamento de Justiça é profundamente defeituosa”. “As pessoas utilizam o Google porque querem, não porque são forçadas ou porque não conseguem encontrar alternativas. Este processo não vai fazer nada para ajudar os consumidores. Pelo contrário, pode artificialmente promover alternativas de pesquisa de baixa qualidade, aumentar os preços dos telemóveis e tornar mais difícil para as pessoas obterem os serviços que querem usar”, criticou o responsável.

Para Walker, a acusação da Justiça dos EUA “assenta em argumentos anticoncorrenciais dúbios para criticar” o “esforço da empresa para tornar as pesquisas do Google facilmente acessíveis às pessoas”. “Sim, como inúmeros outros negócios, pagamos para promover os nossos serviços, tal como uma marca de cereais pode pagar a um supermercado para colocar os seus produtos no fim de uma fila ou na estante ao nível dos olhos”, justificou.

Sundar Pichai, presidente executivo da Alphabet, durante uma audição virtual no Congresso dos EUA este ano.EPA/MANDEL NGAN / POOL

Não é só o acordo da Apple que preocupa os procuradores. O processo estende-se também à forma como a aplicação de pesquisa da Google é instalada de origem em diversos modelos de telemóveis Android. A app vem de origem nos aparelhos e, geralmente, não pode ser apagada. O Google.com é também o motor de busca predefinido no browser proprietário da Google, o Chrome, que tem uma quota de 69%, por exemplo.

É expectável que um processo desta natureza se alastre por vários anos. A imprensa norte-americana indica também que, dada a raridade de um caso desta dimensão, o resultado servirá de jurisprudência para diversos outros casos de menores dimensões que venham a surgir no futuro, qualquer que ele seja. Foi o que aconteceu também com o histórico processo contra a Microsoft, interposto em 1998. Por coincidência, o ano de nascimento da Google.

A acusação inaugura uma nova página na história da Google. Se perder o processo, poderá ser forçada a realizar alterações em partes cruciais do seu negócio. Em contrapartida, uma vitória representaria um revés significativo na crescente onda de escrutínio sobre o domínio das grandes plataformas na economia digital. Com 120 mil milhões de dólares em cash, espera-se também forte litigância por parte de uma companhia capaz de contratar os melhores advogados do mundo. E se o caso da Microsoft serve de algum exemplo, é o de que um acordo entre a Google e os procuradores também é hipótese em cima da mesa.

Mas também existem dúvidas sobre quão significativas poderão ser eventuais alterações introduzidas na Google na sequência deste processo. Na União Europeia, a multinacional está bem mais familiarizada com o escrutínio regulatório, tendo já sido alvo de três multas por violações da concorrência, num valor global superior a oito mil milhões de euros. Em causa, problemas nos serviços Google Shopping e Google AdSense e no sistema operativo Android. Os casos, contudo, não resultaram em alterações substanciais no negócio do grupo.

Desta vez poderá ser diferente. Para além de se ver a braços com a Justiça no seu país de origem, a acusação federal à Google poderá ser seguida de diferentes acusações ao nível estatal. A imprensa norte-americana cita pelo menos mais duas grandes investigações em curso.

À beira da maturidade

A Google foi fundada numa garagem em São Francisco, na Califórnia, por Larry Page e Sergey Brin, dois estudantes da Universidade de Stanford. O ponto de partida foi um algoritmo para pesquisas que esteve na génese do conhecido motor de busca. Mais de duas décadas depois, as ramificações do grupo estendem-se muito para lá das pesquisas e da publicidade, liderando a investigação de tecnologias emergentes, como os carros autónomos e a computação quântica. Os seus serviços digitais vão dos mapas ao correio eletrónico e fazem parte do dia-a-dia de muitos. Calcula-se que mais de quatro mil milhões de pessoas usem regularmente pelo menos um serviço da Google.

Este crescimento trouxe-lhe prestígio. Sob a chancela da Alphabet desde 2015, é atualmente uma das maiores e mais valiosas empresas do mundo. Tem uma capitalização bolsista superior a um bilião de dólares e, para já, os investidores estão a apostar numa saída limpa do processo judicial. No rescaldo da acusação, os títulos da multinacional ganharam valor em bolsa de forma expressiva.

A 30 de julho, a Alphabet apresentou um lucro de 10,13 dólares por ação referente ao segundo trimestre, acima dos 7,94 dólares previstos pelos analistas. As receitas alcançaram 38,3 mil milhões de dólares, uma quebra homóloga de 2% face à pressão exercida pela pandemia no negócio da publicidade. A empresa volta a prestar contas aos investidores no próximo dia 28 de outubro.

Também lhe trouxe responsabilidade. A Google nasceu como uma empresa ágil e flexível. Os funcionários são incentivados a investir 20% do tempo de trabalho em projetos que possam beneficiar a empresa. “Não somos uma empresa convencional, nem queremos ser”, declaravam os fundadores em 2004, pouco antes de a Google entrar na bolsa. Mas a multinacional emprega agora mais de 120 mil pessoas, sem contar com outros tantos trabalhadores temporários. À medida que vai atingindo a maioridade, o mantra é cada mais difícil de manter, argumentou a The Economist no início de agosto.

Sundar Pichai, líder da Google, assumiu a liderança de todo o grupo Alphabet em dezembro, após o afastamento definitivo dos fundadores. Tem agora em mãos a difícil tarefa de navegar por águas cada vez mais revoltas, com o aumento da pressão regulatória sobre as grandes empresas de tecnologia, uma tendência que está a ganhar expressão nos EUA. O processo do Departamento de Justiça já cairá nas mãos de pessoas nomeadas por quem vencer as eleições presidenciais, marcadas para 3 de novembro. Mas mesmo uma vitória de Joe Biden não deverá livrar a Google da batalha judicial que agora se inicia.

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