Com o teletrabalho, o "direito a desligar” tem merecido destaque. Especialistas acreditam que a lei é suficiente, mas é importante que as empresas e os trabalhadores saibam salvaguardar esse direito.
O teletrabalho continua a ser a realidade para milhares de portugueses e, em casa, nem sempre é fácil deixar o trabalho de parte. Num espaço pessoal, torna-se mais difícil definir os limites do início e do fim do dia de trabalho porque, muitas vezes, o “escritório” está instalado em lugares da casa que também são de descanso, por isso o “direito a desligar”, ou a ficar offline, é um dos temas que tem merecido destaque e discussão.
A pandemia trouxe vários desafios ao mercado de trabalho e a necessidade de rever as leis que o regulam, por exemplo através do Livro Verde do Trabalho, cujo projeto-plano foi entregue no final do ano passado.
Atualmente, o artigo 169º do Código de Trabalho prevê as mesmas regras de limites do período normal de trabalho para o trabalho presencial e para o trabalho à distância, mas a questão do “direito a desligar” tem merecido cada vez mais destaque. Os advogados que conversaram com a Advocatus/Pessoas, consideram que a lei existente é suficiente.
Contudo, “mais do que legislar sobre o direito a desligar, urge levar a sério o horário de trabalho, o seu registo e controlo, o que é um desafio mais cultural do que legal”, começa por explicar Ângela Afonso, advogada associada da sociedade de advogados SLCM. “Importa recordar que ainda somos um país em que são aceitáveis as pausas para café, para fumar e conversar ou até a utilização da Internet e redes sociais para fins não profissionais, durante o horário de trabalho. Em contrapartida, é socialmente bem visto estar constantemente ligado ao trabalho, contrariamente ao que sucede noutros Estados Europeus”, alerta.
Empresas e trabalhadores devem salvaguardar direito
Apesar do “direito a desligar” estar inerente ao teletrabalho, esta forma de trabalhar trouxe vantagens como a possibilidade de ter maior capacidade de gestão do tempo, mais flexibilidade e facilidade em conciliar a vida pessoal e profissional. Para o mercado laboral, estes benefícios são também desafios para os quais o Livro Verde para o futuro do trabalho deve garantir soluções, defendem os advogados.
De acordo com a lei, o trabalho prestado fora do horário laboral é designado “suplementar”, e só se aplica em casos de exceção, para responder a um aumento súbito e pontual do volume de trabalho ou para prevenir prejuízos graves para a empresa. Mas à distância, as horas de trabalho parecem estender-se, como por exemplo, para quem tem a cargo obrigações familiares. “Neste contexto impõe-se, também, rever os mecanismos de controlo da atividade e dos tempos de trabalho, essenciais para assegurar o respeito pelos tempos de trabalho e de descanso”, sublinha a advogada da SLCM. “Para responder a estes desafios a previsão de um direito a desligar, de conteúdo indefinido, não constitui solução”, realça.
Mais do que legislar sobre o direito a desligar, urge levar a sério o horário de trabalho, o seu registo e controlo, o que é um desafio mais cultural do que legal.
Também de acordo com a lei, o trabalhador não precisa de estar disponível para a prestação de trabalho — por exemplo, para acompanhar e responder a emails ou telefonemas –, fora do seu horário de trabalho e também não pode ser penalizado por, nos seus períodos de descanso, desligar os equipamentos digitais. Estes momentos são considerados “períodos de auto-disponibilidade”. “Existe é certo, espaço para se estabelecerem regras quanto à utilização das ferramentas de comunicação nas empresas, no entanto, tais regras serão tão mais pertinentes quanto mais próximas estiverem dos casos concretos, pelo que se nos afigura que esse deverá ser um espaço preferencial para a negociação coletiva e para os regulamentos de empresa”, realça a advogada.
“Estou convencida que empresas e trabalhadores têm já ao seu dispor os mecanismos necessários para, por um lado, criar regras de organização e funcionamento das estruturas tendentes à materialização daquele direito, quer por outro para sindicar o cumprimento de tais disposições”, destaca a advogada Joana de Sá.
Desafios para quem gere
O teletrabalho veio para ficar e para muitas empresas vai continuar ao longo deste ano, trazendo ainda mais desafios para quem gere pessoas à distância. Em conversa com a Advocatus/Pessoas, diretores de recursos humanos reconhecem a necessidade de se pensar sobre o direito dos trabalhadores em ficar offline — para salvaguardar a conciliação entre a vida pessoal e familiar — e realçam algumas falhas na lei.
“Certas matérias em termos de direito de trabalho ou fiscal, nomeadamente as que dizem respeito à gestão de tempos no trabalho ou ao local de trabalho, estão muito assentes no modelo do escritório e no registo de tempos. Algumas destas regras têm difícil aplicação nos contextos em que o trabalho pode ser realizado de diferentes locais ou até países”, exemplifica Maurício Marques, diretor de recursos humanos da Natixis que, desde março, tem todos os 1.000 trabalhadores em teletrabalho.
Na CUF, há cerca de 600 colaboradores em teletrabalho nas funções de suporte à rede clínica e hospitalar e o teletrabalho vai continuar este ano. “Há algum tempo que refletimos sobre esta questão [direito a desligar] internamente, pois é muito relevante para o equilíbrio familiar e profissional dos colaboradores, e estamos, por isso, a seguir as práticas de uma empresa familiarmente responsável. Pensamos também que as lideranças têm um papel fundamental nestes temas e que o seu exemplo é crítico”, destaca José Carvalho, diretor de recursos humanos da CUF.
O Livro Verde para o futuro do trabalho deverá esclarecer e reforçar alguns pontos relevantes nomeadamente do ponto de vista da confidencialidade, da disponibilidade, que devem ser respeitadas, assim como o tema da gestão de equipas à distância.
Rita Serrabulho Abecasis, CEO da consultora de comunicação AMP Associates, vê o “direito a desligar” como “uma obrigação” imposta pela crise causada pela pandemia. “Com mais ou menos resistência, todos fomos obrigados a parar ou abrandar, revelando-nos a importância e o valor de outras áreas fundamentais da dimensão humana”, destaca a responsável. “Se queremos ser um sociedade mais equilibrada, mais culta, mais saudável, mais disponível para o desenvolvimento enquanto cidadãos e enquanto coletivo, teremos que ‘aprender a desligar’. E quem valorizou esta experiência, terá naturalmente resistência em voltar a padrões que lhes retirem este equilíbrio”, acrescenta.
Livro Verde para o futuro do trabalho pode abrir caminho a soluções
Para Joana de Sá, partner da Raposo, Sá Miranda & Associados, o reforço da utilização de ferramentas digitais em teletrabalho traz “novas preocupações de regulação da sua atualização”, que estão igualmente relacionadas com o “direito a desligar” e o “reforço da proteção dos mecanismos de conciliação da vida profissional com a vida pessoal”, sublinha.
“Mais do que um direito a desligar o computador e o telemóvel às cinco da tarde, querem sentir-se capazes de organizar melhor o seu tempo de trabalho e tempo livre”, acrescenta sobre o tema Ângela Afonso, que acredita que a regulamentação do direito a desligar corre o risco de responder às atuais necessidades dos trabalhadores. Numa entrevista à Pessoas, em dezembro do ano passado, Guilherme Machado Dray, coordenador do Livro Verde para o Futuro do Trabalho, considerou que não será necessário existir uma lei específica para o teletrabalho, mas há quem defenda que este documento poderá ajudar a esclarecer os desafios do teletrabalho e salvaguardar os direitos dos trabalhadores.
Estou convencida que empresas e trabalhadores têm já ao seu dispor os mecanismos necessários para, por um lado, criar regras de organização e funcionamento das estruturas tendentes à materialização daquele direito, quer por outro para sindicar o cumprimento de tais disposições.
“O que o Livro Verde poderá eventualmente identificar é que uma parte significativa dos trabalhadores poderá ‘não desligar’ por fatores exógenos que nada têm a ver com a lei”, lembra Jorge Silva Marques, of counsel da Broseta Portugal. Para a advogada Ângela Afonso, o documento poderá ser ainda uma forma de colocar por escrito soluções para os desafios atuais do mundo do trabalho, para garantir que há ferramentas para responder às novas formas de organização do tempo de trabalho que permitam uma mais efetiva conciliação entre a vida profissional, pessoal e familiar e o modo de controlar a atividade e os tempos de trabalho neste contexto.
Já para o diretor de recursos humanos da CUF, José Luís Carvalho, este documento poderá ainda abrir caminho para “esclarecer e reforçar alguns pontos relevantes nomeadamente do ponto de vista da confidencialidade, da disponibilidade, que devem ser respeitadas, assim como o tema da gestão de equipas à distância”, refere. Maurício Marques, da Natixis, espera que o documento possa abordar questões como o direito a desligar ou a saúde mental nas organizações. “Em termos formais, ainda nada mudou. Espera-se por isso que deste grupo de trabalho nasçam tópicos que nunca foram discutidos a fundo e legislados por serem, até então, aplicáveis apenas a uma minoria de empresas”, conclui o responsável.
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“Direito a desligar”: Lei é suficiente, mas é preciso cumpri-la
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