À distância, não é fácil "desligar" do trabalho. Mas ter tempo para descansar é essencial para a saúde física e mental. Ainda sem lei, o teletrabalho pode ser um ponto de partida para debater o tema.
A forma de trabalhar nas empresas, nos vários setores, alterou-se com a Covid-19. A pandemia que tem assolado o mundo nos últimos meses colocou grande parte dos trabalhadores em regime de teletrabalho e alterou hábitos profissionais, transformando as casas em locais de trabalho. Apesar de parecer uma mudança simples, pode tornar-se uma dor de cabeça.
Em alguns setores, a capacidade de “desligar” pode ser mais limitada, mas a exaustão, stress, ansiedade, falta de produtividade e de capacidade de aprendizagem são consequências que não escolhem profissões. Conseguir “desligar” é um desafio acrescido quando o trabalho está dentro de casa. Em Portugal não há uma lei concreta, por isso as organizações ganham mais responsabilidades.
Desligar é proteger a saúde física e mental
Mais horas de trabalho, telefonemas que se estendem por tempo indeterminado ou até reuniões fora do horário habitual parecem ser práticas recorrentes em teletrabalho. Contudo, os efeitos de “não desligar” são reais e podem ter um impacto negativo na saúde física e mental.
“O direito a desligar é fundamental, não só do ponto de vista jurídico mas, sobretudo, do ponto de vista da saúde física e mental. Não é possível as pessoas continuarem a funcionar bem se não desligarem. As tarefas profissionais exigem um esforço cognitivo muito grande, algumas delas um esforço físico também grande, mas é sobretudo a carga mental que tem de ser cuidada“, explica à Advocatus/Pessoas o professor Samuel Antunes, diretor do Programa de Promoção da Saúde Mental nos Locais de Trabalho da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP).
Não raras vezes, muita legislação não é sinónimo de legislação eficiente.
“Muitas vezes, quando desligamos, continuamos a trabalhar no nosso tempo de lazer. O cérebro não descansa, o cérebro não se regenera e fica difícil continuar a ter capacidade para dar respostas com qualidade às exigências da vida profissional“, acrescenta.
Para muitos, o trabalho remoto pode significar, em simultâneo, cuidar e dar apoio aos filhos, ou ter tarefas domésticas acrescidas. E a privação do sono pode ter impactos reais na saúde mental: aumenta os níveis de ansiedade, stress, de irritabilidade, diminui a tolerância à frustração e a capacidade emocional para lidar com a adversidade, lembra o especialista.
Responder fora de horas? Não é obrigatório, mas há exceções
O teletrabalho obrigatório termina no primeiro dia de junho, mas o primeiro-ministro já considerou que pode vir a continuar. Quando é que é possível “desligar” do trabalho? Caso um trabalhador seja contactado fora do horário de trabalho, será que tem a obrigação de atender? A resposta é não, mas ainda assim existem exceções, defendem três especialistas de direito do trabalho que falaram com a Advocatus/Pessoas.
Muitas vezes, quando desligamos, continuamos a trabalhar no nosso tempo de lazer. O cérebro não descansa, o cérebro não se regenera e fica difícil continuar a ter capacidades para dar respostas com qualidade às exigências da vida profissional.
“Não há uma obrigação de atender ou responder a qualquer contacto que ocorra fora do horário de trabalho mas, devido à inexistência de um direito (expresso) à desconexão, há um sentimento de obrigatoriedade, por parte dos trabalhadores, em atender ou responder às chamadas do empregador, agudizando-se este sentimento quando os meios tecnológicos são fornecidos pela entidade empregadora. Noto, no entanto, que caso o trabalhador opte por atender ou responder, esse tempo deverá ser contabilizado como trabalho suplementar“, explica Estela Guerra, advogada associada da Macedo Vitorino & Associados.
Por outro lado, Joana Almeida, advogada sénior da Morais Leitão, considera que existem setores de atividade específicos — como os da saúde e da aviação –, em que “faz parte da natureza da contratualização de regimes particulares como a prevenção que o trabalhador se mantenha e contactável e disponível”. Ainda assim, a advogada considera que, em termos gerais, esses telefonemas serão considerados trabalho suplementar sendo que, “por uma questão de boa-fé, o empregador deve limitar os contactos em períodos de descanso ao estritamente necessário”.
Novos tempos, novas mudanças tecnológicas e novas mentalidades permitiram uma alteração da forma de laborar e introduziram novos mecanismos de trabalho, como o teletrabalho, o crowdwork ou o stand-by time. “Não devemos cair no erro de pensar que horários flexíveis, teletrabalho ou trabalho remoto correspondem sempre a ‘prejuízo para os trabalhadores’. Temos muito essa reação no nosso país, o que não deixa de ser manifestação de conservadorismo”, assegura Pedro Botelho Gomes, sócio coordenador da JPAB-José Pedro Aguiar-Branco Advogados.
Para Estela Guerra, o conceito de relação de trabalho tem vindo a sofrer modificações e tem vindo a adaptar-se à “quase nova geração 5.0”. “Não diria que estas novas modalidades venham ‘burlar’ as fronteiras entre o tempo de trabalho e o tempo de descanso, pois trazem também alguns benefícios aos trabalhadores, desde logo, a possibilidade de, dentro do possível, se conciliar a vida pessoal com a profissional e, por outro lado, o tempo e dinheiro economizados pela não-necessidade de deslocação para o local de trabalho”, nota.
Ainda assim, a advogada associada da Macedo Vitorino reforça que, para que as novas formas de trabalho sejam eficazes, é necessário um esforço dos trabalhadores e empregadores “para que se atinja um work-life balance”.
Empresas podem ajudar a “desligar”
Burnout, stress, diminuição de produtividade, absentismo, menos concentração, menos foco, raciocínio e até menor capacidade de análise, de aprendizagem e de tomada de decisão, são algumas das consequências de não conseguir “desligar”.
“A saúde mental não é um privilégio ou um benefício. A saúde física e mental é um direito das pessoas, e esquecer isto é esquecer um direito fundamental dos trabalhadores. Quem não zela pela saúde dos seus trabalhadores, corre mais riscos“, alerta o também professor de psicologia do ISPA Samuel Antunes. “Quem não cuida da saúde dos seus trabalhadores tem mais prejuízos”, sublinha.
"A saúde mental não é um privilégio ou um benefício. A saúde física e mental é um direito das pessoas, e esquecer isto é esquecer um direito fundamental dos trabalhadores.”
Mas como é que as empresas podem ajudar? “Não pedir tarefas fora do horário de trabalho, ou no tempo de descanso das pessoas. Não é desejável que se deem aos trabalhadores prazos curtos para concluir tarefas que, por vezes, têm uma exigência muito grande. Porque isso aumenta os níveis de stress e altera naturalmente a qualidade de vida no trabalho”, explica.
Para o cérebro se renovar precisa de “descontinuidade”, que se consegue através de pausas e atividades prazerosas e que promovem o bem-estar: brincar com os filhos, estar com a família, interagir com amigos”, sublinha Samuel Antunes.
Flexibilidade e proximidade: as soluções da IKEA e da Microsoft
O teletrabalho trouxe vários desafios às organizações, principalmente aos responsáveis pela gestão de pessoas. Na IKEA, o “direito a desligar” o trabalho remoto é feito através de uma maior gestão do tempo e de maior flexibilidade, explica Cláudio Valente, diretor de recursos humanos da retalhista.
“Procurámos, por exemplo, manter ao máximo o respeito no horário das reuniões agendadas. Incentivámos, também, a autonomia na gestão dos horários. Sabemos que trabalhar com os nossos filhos em casa, muitas vezes a pedirem-nos apoio, pode ser complicado. Para alguns colegas, revelou-se mais positivo fazer, por exemplo, pausas mais longas durante o dia, para poderem acompanhar as crianças, começando o dia mais cedo, para compensar”, explica. Na IKEA foram ainda criadas ações de bem-estar como aulas de pilates virtuais, sessões de mindfullness e ainda um momento de pausa para café, o “FIKA”.
“Procurámos sempre transmitir estabilidade e segurança às pessoas, inspirando-as a dedicarem tempo a elas próprias, fazerem o que gostam e aproveitarem as suas casas”, sublinha Cláudio Valente.
Na Microsoft, a cultura colaborativa, o conceito de paperless e o trabalho por objetivos fizeram com que a transição para o teletrabalho decorresse sem problemas, revela Luiza Isquierdo, diretora de recursos humanos da Microsoft. Ajudar cada trabalhador a criar um ambiente produtivo em casa, apoiar a gestão de expectativas e tentar entender as necessidades de cada elemento das equipas tem sido a estratégia de responsável da tecnológica para ajudar os trabalhadores a gerir o tempo em teletrabalho.
O maior desafio, confessa a diretora de recursos humanos, é conseguir manter-se conectada em teletrabalho. Na Microsoft, os trabalhadores são incentivados a manterem-se ligados aos colegas e aos gestores através das ferramentas virtuais, e a aproveitar esses momentos para relaxar. “Partilhar notícias, fotografias e histórias com os teus colegas como se estivesses num coffee break. E tirar partido da diversidade das tecnologias: experimentar um GIF, um sticker um ou emoji para te expressares”, conta.
Uma lei sem consenso em Portugal
Na Europa, França foi o primeiro país a avançar com uma lei que tipificasse o direito à desconexão ou direito a desligar. Em Portugal, uma proposta chegou a ser discutida num grupo de trabalho, mas sem sucesso.
“Trata-se de tema complexo e sensível, com contornos ideológicos, que requer um consenso que não é fácil obter. Em meados de 2019, PS, PCP, Bloco de Esquerda e PAN avançaram com propostas sobre o direito do trabalhador a desconectar-se do trabalho. Porém, na altura não se conseguiu a convergência necessária para avançar. Ainda há, por isso, um caminho a percorrer”, assegura Joana Almeida, advogada da Morais Leitão.
Trata-se de tema complexo e sensível, com contornos ideológicos, que requer um consenso que não é fácil obter.
Para Pedro Botelho Gomes, sócio da JPAB, se no pós-pandemia o teletrabalho permanecer em níveis como os verificados nos últimos meses, vai ser preciso discutir uma lei.
Sem um consenso à vista, para já o esforço terá de ser individual. “As pessoas têm de ser capazes de regular o seu horário e a forma como se entregam ao trabalho. Se não houver pausas, a energia vai-se esgotando, e há menos recursos mentais — e até físicos –, para dar resposta ao trabalho”, alerta o professor Samuel Antunes.
Teletrabalho pode ser ponto de partida legislativo
O direito a desligar ou ao desligamento é cada vez mais uma preocupação do trabalhadores e a lei em Portugal é omissa em relação a este ponto. À Advocatus/Pessoas, a advogada Estela Guerra considera que já se esteve mais longe para a formulação de uma lei.
“Considerando as recentes notícias que dão conta da preparação de um relatório de iniciativa legislativa do Parlamento Europeu sobre o direito a desligar, relatório esse que convocará a Comissão Europeia a legislar sobre o tema, penso que teremos, a breve trecho, novidades”, refere a advogada sénior da Macedo Vitorino.
Também o sócio da JPAB, Pedro Botelho Gomes, acredita que com o incremento exponencial do teletrabalho em Portugal, em reação à Covid-19, o direito a desligar será “objeto de estudo mais desenvolvido, e mais divulgado, e que a doutrina produzida virá depois a enformar legislação que possa vir a surgir”.
“O ordenamento jurídico vigente consagra restrições e direitos que, sendo observados, garantiriam ao trabalhador a observância dos períodos máximos de trabalho e o direito fundamental ao repouso. Não raras vezes, muita legislação não é sinónimo de legislação eficiente. A observância das normas vigentes e a fiscalização das práticas adotadas por empresas e, por vezes, trabalhadores deviam ser o primeiro passo. Alcançado este, ver-se-ia da necessidade de colmatar eventuais lacunas com legislação adicional”, explica Joana Almeida.
Tendo em conta as recentes notícias que dão conta da preparação de um relatório de iniciativa legislativa do Parlamento Europeu sobre o direito a desligar, relatório esse que convocará a Comissão Europeia a legislar sobre o tema, penso que teremos, a breve trecho, novidades.
Ainda assim, Estela Guerra admite que urge tipificar este direito no quadro normativo português, uma vez que não podemos continuar a “depender da vontade” das empresas e das convenções coletivas para regular esta matéria. “Inexistindo previsão do direito, haverá sempre a tentação de prevaricar e de, em sede de negociação coletiva, não se fixarem limites à utilização dos meios telemáticos e à disponibilidade laboral do trabalhador”, acrescenta.
Pedro Botelho Gomes, sócio da JPAB, acredita que as matérias relativas aos tempos de trabalho e à compatibilização da vida profissional com a pessoal seriam os alicerces base de uma possível lei sobre esta matéria. Mas, para Estela Guerra, é ainda necessário estabelecer a obrigatoriedade de serem reguladas as “especificidades desta matéria, em função de cada setor de atividade”, e ainda definir-se o regime sancionatório associado, “em especial, se a violação deste direito poder estar relacionada com uma situação de assédio moral”.
Joana Almeida, advogada sénior da Morais Leitão, acredita que o direito a desligar pode, até certo ponto, possibilitar uma situação de conflito de direitos, “que apenas pode ser ajuizada no caso concreto: entre o direito do trabalhador a descansar e o direito do empregador a zelar pela sua organização, deve prevalecer aquele que, no caso concreto, seja mais importante”.
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“Direito a desligar”? Lei ainda não existe mas teletrabalho pode acelerá-la
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