Draghi salvou o euro. Mas conseguirá “Super Mario” tirar Itália da crise?
Ex-presidente do BCE, Mario Draghi é o nome escolhido para o próximo governo italiano. A credibilidade joga a seu favor, mas Roma já mostrou não conviver bem com tecnocratas. O que se segue?
Enquanto presidente do Banco Central Europeu (BCE), entre 2011 e 2019, Mario Draghi desempenhou um papel vital na defesa da Zona Euro durante a crise das dívidas soberanas que ameaçou seriamente o projeto da moeda única.
Não tendo um perfil propriamente político, foi justamente com a sua capacidade de persuasão junto dos líderes da Zona Euro, nomeadamente da Alemanha, que Draghi levou adiante a sua política de compra de dívida pública sem precedentes para resgatar a moeda única da crise para a qual mergulhava. Estão já gravadas na história do euro as palavras que proferiu numa conferência em Londres, em julho de 2012: “O BCE está pronto a fazer tudo o que for preciso para preservar o euro. E, acreditem em mim, será suficiente”. E “Super Mario” foi.
Desta vez, à frente do Governo italiano, Mario Draghi não vai dispor de tantos instrumentos no seu gabinete em Roma como aqueles teve em Frankfurt para acudir o país face à situação da crise da pandemia do coronavírus e à outra pandemia que a Covid-19 veio agravar: a elevada dívida pública e o fraco crescimento daquela que é a terceira maior economia da região.
Até final do ano, as previsões oficiais apontam para uma quebra acumulada de quase 12% do Produto Interno Bruto (PIB) desde a crise financeira de 2008. São dados que refletem uma economia que tarda em vingar, mostram que os problemas são mais estruturais e que vão além da circunstância da pandemia, e que hipotecam as perspetivas futuras de uma população mais dividida.
As restrições económicas por causa da pandemia trouxeram mais problemas sociais. O desemprego voltou a crescer, atingindo os 9% no final do ano passado, bem acima da média da Zona Euro. Entre os mais jovens, a taxa é de quase 30%.
Por outro lado, com a dívida pública a atingir uns preocupantes 157,2% do PIB no final deste ano (1,6 biliões de euros), mais 37,5 pontos percentuais face a 2011, Mario Draghi terá os pés e mãos atadas em relação a uma maior ambição do ponto de vista orçamental para gerir o país em tempos de emergência.
Itália tem a segunda maior dívida pública
“A Itália continua a ser o doente da Zona Euro”, diz Fabio Pammolli, professor de economia de uma universidade de Milão, citado pela agência AFP.
Para já, a indicação de Draghi, um economista de 73 anos e que já estava com um pé na reforma, para tentar formar governo italiano foi bem acolhida pelos mercados, num importante sinal de confiança dos investidores em relação ao país.
Os juros da dívida italiana a 10 anos caíram e os investidores na principal bolsa de Milão animaram-se com a perspetiva de ter o ex-presidente do BCE à frente do governo.
Credenciais testam estabilidade
Antes do BCE, o italiano contou com passagens pelo Banco de Itália, Tesouro italiano, Goldman Sachs, entre outros cargos. Mario Draghi é um tecnocrata e o seu elenco governativo deverá refletir esse perfil.
Embora a história italiana não jogue a favor de executivos fora da esfera da política, o currículo de Mario Draghi poderá contrariar as odds desfavoráveis. “Os governos tecnocratas em Itália têm a tradição de serem eficazes do ponto de vista económico, mas fracos politicamente”, dizia Antonio Armellini, ex-diplomata italiano e vice-presidente da associação de cooperação Itália-Índia num artigo publicado no think tank OMFIF.
Face ao impasse governativo em que Roma mergulhou, essa característica de independência face ao poder político, com provas dadas na cena internacional, poderá agora ser um fator de estabilidade num cenário político de profundas divergências.
Draghi é a solução do Presidente Sergio Mattarella depois de o governo de Giuseppe Conte ter caído com a perda da maioria no parlamento assim que o partido Viva Italia abandonou a coligação que suportava o executivo, em objeção à forma como a pandemia tem sido gerida, não só na frente da saúde mas também na frente económica.
Ainda não se sabe se Draghi conseguirá obter o apoio para formar governo, com as conversas com os partidos a terminarem apenas este sábado. Depois disso, ainda terá ainda reuniões com os principais sindicatos do país.
O Partido Democrático, o Italia Viva (de Matteo Renzi) e o partido Livre e Igual deverão dar apoio, mas Draghi não consegue uma maioria parlamentar apenas com estes partidos.
A direita mais dura terá assim uma palavra a dizer. O 5 Estrelas não deverá apoiar, mas a divisão no seio do partido poderá fazer a diferença no que se seguirá. Uma das figuras proeminentes deste movimento, Alessandro Di Battisti, descreveu Draghi como um “apóstolo de elite”. A Liga italiana deixou a porta aberta, embora o seu líder, Matteo Salvini, tenha dito há dias que “a soberania pertence ao povo”. Sobra o Fratelli d’Italia (Irmãos de Itália), que será o único partido da direita a sair beneficiado com eleições antecipadas, de acordo com as sondagens.
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Se conseguir ultrapassar este primeiro obstáculo, os analistas do banco ING acreditam que Draghi completará o mandato até ao fim, isto é, até 2023. “É improvável que o Presidente Mattarella vá despender capital político em designar uma figura com elevado perfil [como o de Draghi] apenas para fazer face a uma emergência e levar o país a eleições antecipadas no final da primavera deste ano”, vaticinam.
Cinto de segurança
Ainda estava a tentar formar governo e Mario Draghi já revelava quais seriam as suas prioridades de governação, as quais também já indiciam que ele pretende manter-se nos destinos do país por algum tempo: vencer a luta contra a pandemia, completar a campanha de vacinação o mais rapidamente possível e, depois, avançar com o relançamento da economia do país para “responder aos problemas dos italianos”.
“Temos a oportunidade de fazer muito pelo nosso país, com um olhar cuidado para o futuro das gerações mais jovens e para o reforço da coesão social”, disse após ter aceitado o repto do Presidente.
Um dos principais objetivos de Draghi será organizar o país para receber cerca de 200 mil milhões de euros em empréstimos e subvenções disponíveis no âmbito do fundo de recuperação de 750 mil milhões de euros para o combate à pandemia da União Europeia.
Draghi classificou-os de “recursos extraordinários”. Não é para menos. O dinheiro a receber da UE ao longo dos próximos cinco anos equivale a 10% do PIB italiano. Nenhum outro país receberá tanto (em termos absolutos) como a Itália.
Dele se espera que venha a implementar políticas mais reformistas, combater a burocracia e aumentar a produtividade ou avançar com uma reforma do sistema judicial, segundo os especialistas.
O governo de Conte teve dificuldades em apresentar um plano para o que fazer com estes 200 mil milhões da Europa e com as reformas necessárias para convencer Bruxelas a aprová-lo. Aliás, o seu executivo caiu por causa da descrença na sua capacidade na gestão da bazuca europeia.
Com Draghi, muitas das dúvidas sobre a capacidade de o governo gerir adequadamente este dinheiro poderão ser dissipadas.
“A Itália é um país que tem muito dinheiro para gastar”, disse Matteo Renzi, recentemente. “Poderíamos ter deitado tudo a perder ou teríamos arriscado a gastá-lo mal”, acrescentou, explicando por que abandonou a coligação. Em vez disso, “Mario Draghi significa confiança e esta é a primeira regra da economia. Com Draghi, viajamos com cinto de segurança”, assinalou.
Quando foi nomeado para presidente do BCE, em 2011, o jornal alemão Bild não poupou no estereótipo italiano para mostrar o ceticismo que Draghi soube contrariar: “Mamma mia! Para os italianos, a inflação é um estilo de vida, como é o spaghetti com molho de tomate”. Dez anos depois, poderá estar de regresso para acabar com a sombra económica que paira sob Itália.
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