O caso GameStop e o jogo das cadeiras. Depois da música, a regulação?

  • Eduardo Paulino
  • 24 Fevereiro 2021

Para além da habitual volatilidade nas cotações, o recente ‘caso GameStop’ trouxe também volatilidade aos corações dos comentadores e demais curiosos.

Quando penso na volatilidade dos mercados, em especial quando se anuncia o “rebentar de bolhas”, vem-me ao espírito o jogo das cadeiras. Sei que também o conhecem: dois jogadores, uma cadeira e música a tocar. Quando a música deixa de tocar, um ganhou e o outro perdeu. Tal como neste jogo, todos intuem que em algum momento a música vai parar. O prémio fica para quem melhor intuir quando chega essa hora.

Para além da habitual volatilidade nas cotações, o recente ‘caso GameStop’ trouxe também volatilidade aos corações dos comentadores e demais curiosos. Durante anos, os investidores que apostavam na desvalorização dos ativos bolsistas eram encarados com desconfiança e desprezo generalizado por parte dos observadores. Poucos aceitavam com leveza a ideia de haver quem investisse com a mira na desvalorização e no lucro com perdas alheias, no desencanto dos que desistiam da miragem da valorização. Muitos eram os que clamavam pela proibição, sem mais, desta prática.

Esta perceção mudou um pouco no início deste século. Reconheceu-se que estes investidores podiam contribuir com racionalidade para os mercados, sendo dos primeiros a clamar que “o rei vai nu”, alertando os incautos e colocando os grandes bancos de investimento em sentido. Um retrato colorido do papel central que estas práticas tiveram no precipitar do fim da bolha no mercado imobiliário norte americano assente em crédito subprime foi desenhado por Michael Lewis em The Big Short (também levado à grande tela num filme protagonizado por Christian Bale). Os shorters eram agora vistos como pequenos e corajosos investidores lutando contra os grandes bancos de investimento.

O caso GameStop precipitou nova viragem no ânimo dos comentadores curiosos: os short sellers voltam a ser associados a poderosos e obscuros hedge funds destruidores de empresas, poderosos especuladores, opressores dos pequenos negócios, neste caso até inimigos dos pequenos investidores.

Eventos deste tipo renovam pressões sobre o legislador e o regulador. De uma perspetiva regulatória, recomenda-se cautela e foco no essencial: a estabilidade do sistema, a qualidade da informação e a repressão de comportamentos criminosos.

Nesse sentido, justifica-se continuar a restringir práticas de naked short selling, em que um investidor apresenta uma ordem de venda sem garantia de dispor das ações que permitam concretizar a operação, gerando falhas na liquidação, perdas financeiras nas contrapartes e perda de confiança no mercado. É, por exemplo, necessário assegurar que os corretores estão em condições de executar as ordens que trazem ao mercado, apresentando as garantias de solidez financeira necessária e sendo impedidos de negociar quando tal não se verifica, mesmo que isso desagrade a uma turba ululante (e ignorante). Importa também continuar a colaborar com as entidades que gerem as infraestruturas de mercado e dar-lhes condições para continuar a promover a inovação e acompanhar o desenvolvimento tecnológico que por vezes as parece ultrapassar. Num mundo digital, com ferramentas de blockchain e outras à disposição das gestoras de mercados, ainda se justifica um ciclo de liquidação tão longo, em que as operações realizadas hoje demoram em regra dois dias de negociação a liquidar?

Impõe-se continuar a promover práticas de transparência e qualidade (que é bem diferente de quantidade) da informação disponibilizada aos investidores pelos emitentes e pelos reguladores. É a informação de qualidade que permite aos investidores formarem de modo livre e informado as suas convicções de investimento (acreditando na valorização a prazo) ou de desinvestimento (apostando na descida da cotação).

Por fim, importa sancionar quem atua no mercado com vista a manipular artificialmente a cotação das ações, independentemente de qualquer nobreza classista dos motivos. Uma ação coletiva, coordenada, que vise fazer subir ou baixar artificialmente a cotação de um instrumento financeiro é suscetível de ser penalmente punível e, nesse caso, deve ser reprimida. Alguém duvida que, quando rebentou a bolha do short squeeze, quem suportou grande parte das perdas da desvalorização das ações foram os pequenos investidores que, inspirados pelo que leram no Reddit ou na imprensa, correram a tirar partido da subida da cotação sem perceberem verdadeiramente o que se estava a passar e o risco que estavam a assumir?

Exageros linguísticos à parte, é evidente que neste jogo não existem bons e maus, nem estratégias de investimento mais ou menos recomendáveis de uma perspetiva moral. Pedir dinheiro emprestado para comprar ações, esperando que valorizem e possam ser vendidas por um preço que permita liquidar o crédito e ficar com a diferença é mais recomendável do que pedir ações emprestadas para as vender, esperando que desvalorizem e possam ser recompradas por um preço que permita liquidar o empréstimo e ficar com a diferença? É menos arriscado, mas só isso. Quem investe comprando ações sabe qual o limite para a sua perda potencial: 100% do valor investido. Não se passa assim com quem pede ações emprestadas para investir, vendendo-as: teoricamente, não existe um limite para a subida da cotação das ações e as perdas podem ser tremendas, como se viu recentemente.

Só há uma certeza: quando a música parar, um ganha e o outro perde.

  • Eduardo Paulino
  • Sócio da Morais Leitão

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