Contrarrelógio para portugueses e britânicos nomearem representante fiscal
A obrigação apanhou cidadãos e profissionais de surpresa, pois a questão não está a ser comunicada pelos consulados ou pela Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas.
Dezenas de milhares de portugueses residentes no Reino Unido, incluindo crianças, e britânicos com segundas residências em Portugal terão de nomear um representante fiscal nos próximos 90 dias ou arriscam uma coima de até 7.500 euros.
A obrigação, uma consequência da saída do Reino Unido da União Europeia (UE), processo conhecido por ‘Brexit’, apanhou cidadãos e profissionais de surpresa, pois a questão não está a ser comunicada pelos consulados ou pela Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas.
Silvia de Sousa, radicada em York, no nordeste de Inglaterra desde 2003, queixa-se de que há falta de informação e considerou que a obrigação de nomear um terceiro como representante é absurdo numa altura em que existem incentivos ao relacionamento com a administração pública remotamente, pela Internet.
“Não faz sentido num mundo digital em que a administração fiscal faz notificação por ‘email’. Além de que eu sempre recebi cartas das Finanças aqui em casa no Reino Unido, não percebo o que é que impede que continuem”, disse Silvia de Sousa à agência Lusa.
Proprietária de um imóvel que recebeu como herança, esta economista explicou que não tem familiares nem amigos a quem quer passar esta responsabilidade. No seu caso, a mãe, octagenária, sofre da doença de Parkinson e por isso está incapaz de tomar conta da correspondência. Outra solução seria contratar o serviço a um advogado, mas o custo anual pode variar entre 50 a 600 euros, segundo vários escritórios consultados pela Lusa.
Esta despesa pode ser multiplicada pelos membros do agregado familiar, já que a obrigação aplica-se a todos os titulares de número de identificação fiscal (NIF), emitido automaticamente com o cartão de cidadão, incluindo menores de idade.
“Esta nova realidade para o residente no Reino Unido poderá levar a situações de abusos. A larga maioria das pessoas detentoras de número de identificação fiscal, não tendo assuntos tributários, não deveriam ter de pagar valores tão elevados só para ter um representante fiscal”, afirmou à Lusa a advogada Sandra Carito, que tem atividade nos dois países.
Na sua opinião, o valor cobrado deveria ser ajustado às necessidades do cliente, sendo normal pagar mais em casos que requerem um serviço específico, ou menos, como uma pessoa que só tenha uma conta bancária em Portugal e não seja titular de bens.
“Por exemplo, em processos sucessórios com vendas subsequentes de imóveis ou contratos de arrendamento, tal implica declarar e pagar mais-valias ou impostos junto da Autoridade Tributária. Nestes casos, o recomendável é que o representante seja um contabilista pois é do âmbito de atividades destes profissionais”, acrescentou.
A falta de designação de representante fiscal, além de uma coima que pode variar entre 75 e 7.500 euros, deixa as pessoas sem possibilidade de reclamar, recorrer ou impugnar uma ordem fiscal, com consequências práticas.
“Se se esquecer de pagar o IMI [Imposto Municipal sobre Imóveis], pode ser executado e a casa ser penhorada e vendida em hasta pública sem ser notificado porque não tem representante fiscal. O banco também pode bloquear a conta, no quadro dos processos de regularização”, explicou à Lusa o advogado Miguel Reis.
A nomeação de representante fiscal é obrigatória para os titulares de NIF com residência fiscal noutro país ou que se ausentem de território português por mais durante seis meses, mas é opcional para os residentes em países da UE ou do Espaço Económico Europeu, que inclui Noruega, Islândia e Liechtenstein.
O Governo português estima que a comunidade portuguesa no Reino Unido ronde as 400 mil pessoas, tendo em conta os cerca de 375 mil inscritos nos consulados e os cerca de 335 mil que têm morada britânica no cartão do cidadão.
Pode ser representante fiscal qualquer pessoa ou entidade em Portugal, que passa a ser o elo de ligação entre o não residente e a Autoridade Tributária (AT). É responsável por receber e guardar correspondência relacionada com rendimentos e contribuições e comunicá-las ao não residente, mas não tem responsabilidade pelo pagamento.
Em 23 de dezembro, a oito dias do fim do período transitório pós-‘Brexit’, o Governo publicou um despacho declarando que “os cidadãos e pessoas coletivas que se encontrem registados na base de dados” da AT teriam seis meses, até 30 de junho, para fazer a nomeação, independentemente da existência de rendimentos ou bens em Portugal.
Apesar de a figura de representante fiscal já existir na Lei Geral Tributária desde 1998 e aplicar-se a todos os titulares de NIF residentes em países terceiros, como no Brasil, desde 2013, não foi dado destaque ao impacto do ‘Brexit’ nesta situação.
Segundo a AT, o Acordo de Comércio e Cooperação dos 27 com o Reino Unido contempla cooperação administrativa e na luta contra a fraude fiscal, mas não isenta os cidadãos desta obrigação, que também vai afetar milhares de britânicos com segundas residências em Portugal.
“Não fazendo o Reino Unido parte do Espaço Económico Europeu, a existência de cooperação administrativa no âmbito da fiscalidade não será aplicável. Importa referir que a figura do representante fiscal foi criada em face da necessidade de assegurar um contacto permanente entre a administração tributária e os sujeitos passivos”, esclareceu a AT à Lusa.
Sandra Carito acredita que os não residentes britânicos vão reclamar porque, na maioria das vezes, vão pagar a uma pessoa por simplesmente receber as cartas de pagamento do IMI. “Quando um residente do Reino Unido muda para o estrangeiro, apenas tem a obrigação de informar a autoridade HMRC, mas fá-lo de forma direta, não lhe é exigido um representante fiscal”, disse.
O assunto já foi levantado por leitores que escreveram ao portal “Portugal Resident”, dirigido à comunidade britânica, indignados com a despesa adicional tendo em conta as contribuições que já fazem para a economia local e nacional.
Christina Hippisley, diretora-geral da Câmara de Comércio Portuguesa no Reino Unido, que realiza regularmente eventos de investimento imobiliário em Portugal, admitiu que a questão tem sido enfatizada e que muitos proprietários britânicos de segundas residências em Portugal já têm representante fiscal, especialmente se fazem arrendamento.
“No entanto, alguns proprietários de segundas residências em ‘resort’ ou condomínio ou que só servem para uso próprio podem ainda não ter cumprido as novas obrigações legais. Estimamos que até 15.000 proprietários britânicos de uma segunda casa em Portugal possam ser afetados”, referiu à Lusa.
Indignada com o impacto desta medida e a falta de resposta às inúmeras cartas ao Governo, Presidente da República e a todos os grupos parlamentares, Sílvia de Sousa pretende iniciar uma queixa ao provedor de Justiça. “Como considero ser esta obrigatoriedade completamente ridícula, pondero mesmo arriscar a multa e continuar a tentar mudar a escrita da lei. O que me ‘irrita’ ainda mais é que não fomos informados de como o ‘Brexit’ nos afeta em território nacional”, concluiu.
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