O Estado erra… Altera-se a Lei

  • Alexandre Roque
  • 26 Novembro 2021

A solução para os erros ou ineficiências do Estado não pode passar pela redução de direitos dos cidadãos. Não pode ser essa a solução para uma Justiça mais eficiente.

No último mês assistimos a mais um episódio de descredibilização da Justiça – um cidadão português, condenado pelos nossos Tribunais num processo mediático, comunicou publicamente, em jeito desafiador, que não tenciona regressar para cumprir a pena.

Perante esse cenário descredibilizador da Justiça, alguns seus setores, e não só, depressa concluíram (e também divulgaram publicamente), que a responsabilidade por esta fuga era da Lei e que é necessário alterá-la.

Este tipo de reação, que, aliás, tem vindo a constituir uma constante sempre que a Justiça é colocada em causa pela comunicação social, constitui, também ela, um fator de desestabilização e descredibilização da Justiça e é deveras preocupante, desde logo porque a alteração à Lei, visada nessas reações imediatas e imponderadas, é sempre no sentido da diminuição de direitos, liberdades e garantias de (todos) os cidadãos.

Naturalmente, esta reação, de que a culpa é da Lei, desestabiliza e descredibiliza a Justiça pois, se a Lei não está bem, a pergunta que qualquer um legitimamente coloca é porque não foi a Lei já alterada, especialmente num contexto em que se banalizou a alteração da Lei.

Mas, além desse efeito de desestabilização da Justiça, quando a confiança é essencial, é também preocupante a sistemática imediata culpabilização da Lei (ou dos advogados, cujo fim último deve ser a defesa dos cidadãos), por erros do Estado (numa aceção ampla), não se colocando sequer a pergunta se, de facto, a Lei necessita de ser alterada ou sequer se, na verdade, o Estado (naquela aceção ampla, incluindo os Tribunais), errou – a perceção que fica é que esta reação imediata surge num contexto de desresponsabilização, algum corporativismo e vontade de protagonismo mediático (dado que a reação moderada e ponderada, como devia ser apanágio da Justiça, é muito menos atrativa, nessa perspetiva).

E, verdadeiramente preocupante, é, repita-se, que a alteração da Lei, pugnada por aquelas reações imediatas, seja sempre no sentido da diminuição de direitos dos cidadãos e que tal seja aceite acriticamente, nomeadamente ao nível da comunicação social, que, pela sua natureza, seria expectavelmente a primeira a reagir contra esse tipo de propostas ou, pelo menos, a procurar escrutiná-las nos seus efeitos.

Não entrando naquele caso concreto, de quem se encontra em fuga ao cumprimento de pena, cujos contornos desconheço, esta tendência para propostas de alteração legislativa no sentido da redução de direitos dos cidadãos tem sido, frequentemente, indicada como a solução para a maior eficiência dos Tribunais, nomeadamente pelos seus mais elevados responsáveis (não obstante, muitas vezes, seja empolado aquilo que é verdadeiramente proposto, desvirtuando-se as propostas).

Como dito pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, no discurso de tomada de posse do passado mês de junho, “a paz social e a vida em sociedade dependem em larga medida de um sistema de Justiça eficiente, competente e transparente, em que os cidadãos possam confiar”. No entanto, em posterior entrevista ao Observador, o mesmo é citado, em título, como tendo afirmado que “há um excesso de garantias de defesa. Se queremos uma justiça mais rápida, temos de cortar com isso”, realçando-se, também, nesse título, que defende a extinção do Supremo Tribunal Administrativo.

Não obstante o natural empolamento de um título, não podemos acompanhar estas duas propostas como sendo a solução para uma maior eficiência dos Tribunais, em especial porque ambas redundam, mais uma vez, na diminuição de direitos dos cidadãos, supostamente para uma justiça mais célere.

É indiscutível a qualidade e independência dos nossos Tribunais. É também certo que a Justiça tem o seu tempo. Mas, num sistema processual assente em prazos que apenas vinculam os cidadãos e as empresas que recorrem à Justiça, mas não vinculam os Tribunais, fica desde logo a pergunta se parte da solução não estaria aí e não na redução de garantias dos cidadãos. Veja-se que, frequentemente, a razão para o recurso à Justiça Arbitral decorre da garantia de uma decisão célere. E essa garantia prende-se, desde logo, com o facto de existir um prazo para decisão. Também no caso da Justiça Cível e da Justiça Administração a decisão seria certamente mais célere se, no último ato processual antes da decisão, fosse comunicada às partes a data de decisão, tal como no passado era fixada a data da leitura da decisão de facto no final da audiência de julgamento. Certamente deixaríamos de ter casos em que, entre o último ato das partes e a decisão do Tribunal, decorrem anos, como não é assim tão pouco frequente acontecer. E a mesma calendarização fosse comunicada às partes quando um recurso é distribuído num Tribunal Superior. Impõe-se, pelo menos, essa reflexão, antes de se avançar logo para a redução de direitos de (todos) os cidadãos.

No que respeita à Justiça Administrativa, a extinção do Supremo Tribunal Administrativo defendida pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, não é uma ideia nova, mas, como já alertava a Presidente do Supremo Tribunal Administrativo, no seu discurso de tomada de posse, em outubro de 2019, tal situação será potenciadora de uma quebra de qualidade das decisões na Justiça Administrativa e Fiscal, com perigos evidentes para os cidadãos, especialmente “perante uma máquina administrava e fiscal poderosa e fortemente evasiva”. E quem lida com a Justiça Administrativa sabe que assim será, nomeadamente se o que é hoje o Supremo Tribunal Administrativo passar a ser uma mera secção do Supremo Tribunal de Justiça, sem a garantia de ser composta por juízes com sólida experiência e foco na Justiça Administrativa, designadamente com um percurso nos Tribunais Administrativos.

A solução para os erros ou ineficiências do Estado, nomeadamente na afetação de recursos à Justiça, não pode passar pela redução de direitos dos cidadãos. Não pode ser essa a solução para uma Justiça mais eficiente.

  • Alexandre Roque
  • Sócio da SRS Advogados

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