Solução proposta pelo Estado para despesas do teletrabalho pode não ser viável
Solução recomendada pelo Estado para o pagamento das despesas do teletrabalho nos casos em que há vários trabalhadores na mesma morada pode não ser viável, avisam advogados ouvidos pelo ECO.
As dúvidas em torno do pagamento das despesas do teletrabalho no caso em que há vários trabalhadores na mesma morada persistem. O Estado recomenda a celebração de acordos entre os vários empregadores desses teletrabalhadores, mas os advogados ouvidos pelo ECO garantem que isso será difícil de pôr em prática e corre mesmo o risco de ser problemático, no que diz respeito à proteção de dados.
A 1 de janeiro deste ano, as regras do teletrabalho mudaram, com a entrada em vigor da lei aprovada pela Assembleia da República, que estabelece, nomeadamente, a obrigação dos empregadores compensarem integralmente os trabalhadores por todas as despesas adicionais que comprovadamente decorram da aquisição ou uso dos equipamentos e sistemas informáticos ou telemáticos necessários à realização do trabalho à distância, incluindo os acréscimos dos custos de energia e da internet.
O cálculo desses valores tem gerado, contudo, polémica, uma vez que o Código do Trabalho somente diz que deve ser feito com base na comparação com as despesas homólogas do trabalhador, no mesmo mês do último ano anterior à adoção do teletrabalho. Ou seja, a lei laboral não explica, por exemplo, como apurar o montante a pagar nas situações em que vários membros do mesmo agregado familiar estão a exercer as suas funções profissionais de modo remoto.
Perante estas dificuldades, e tendo em conta que nas primeiras duas semanas do ano a adoção do teletrabalho foi obrigatória, o Estado, através da Direção-Geral da Administração e do Emprego Público (DGAEP), divulgou uma série de esclarecimentos que deverão servir agora de orientação para os trabalhadores públicos, na aplicação da nova lei.
Nessas perguntas e respostas, explica-se que, nos casos em que dois ou mais coabitantes se encontrem em teletrabalho, a análise das despesas do teletrabalho “terá de ser feita casuisticamente“, de modo a evitar a duplicação da compensação destas despesas. “Para efeitos da repartição das despesas adicionais pela eventual pluralidade de empregadores envolvidos deverá atender-se ao período normal de trabalho diário de cada teletrabalhador, às necessidades de utilização da rede que o teletrabalho de cada um em concreto exige (capacidade, velocidade, etc.), entre outros fatores que só em concreto são possíveis de concretizar”, detalha a DGAEP.
E acrescenta que, nestes casos, e “por uma razão de certeza e segurança jurídica“, é aconselhável que seja “preestabelecido um acordo de pagamento entre os vários empregadores e os respetivo trabalhadores“.
Esta solução não parece, no entanto, viável aos advogados ouvidos pelo ECO, que dizem que poderá ser mesmo problemática, do ponto de vista da proteção de dados dos trabalhadores.
“A fixação de um acordo entre os vários potenciais empregadores envolvidos não só nos parece de difícil execução, como se nos afigura irrelevante para efeitos da relação laboral em causa, que é estabelecida com o concreto trabalhador, obrigando por isso ao envolvimento do mesmo e não dos demais empregadores“, sublinha Sérgio de Mesquita Dinis, da Comissão de Direito Laboral da Associação Internacional de Jovens Advogados de Língua Portuguesa e advogado da Eversheds Sutherland FCB.
E não está sozinho. Isabel Araújo Costa, associada sénior do Departamento de Direito do Trabalho e Segurança Social da Antas da Cunha Ecija & Associados, salienta que o “Estado lançou o repto”, mas não ofereceu as “ferramentas ou meios mais idóneos para que este acordo que recomenda entre vários empregadores seja exequível, na prática“.
A advogada enfatiza, além disso, que “não resulta da lei a imposição ou imperatividade da troca de informação entre a potencial pluralidade de empregadores que terão de pagar as justas despesas analisadas em concreto” e avança que, a equacionar-se a repartição das despesas entre empresas, a partilha de informação poderia “no limite conflituar com o dever de sigilo a que o empregador está obrigado e com a proteção de dados”.
“Veja-se, o artigo 6.º do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados prevê que o tratamento de dados é lícito se estiver em causa o cumprimento de uma obrigação legal. Ou seja, se for entendido que a partilha destes dados tem como objetivo cumprir obrigações legais no âmbito de legislação imperativa de direito do trabalho, talvez possa encontrar-se aqui um caminho“, admite Isabel Araújo Costa.
Ainda assim, deixa a questão: “Existirá outra forma de garantir o cumprimento [do pagamento das despesas do teletrabalho]? Isto porque, não havendo, é justificável, em teoria, enquadrar a licitude do tratamento para cumprimento. A ser assim, poderá o tratamento de dados ser considerado legitimado“.
Por outro lado, a advogada sublinha que poderá haver empresas que não concordem com essa interpretação e recusem fornecer dados aos outros empregadores envolvidos, porque entendem que não o podem fazer ao abrigo do RGPD.
Além disso, observa que continua por esclarecer como devem ser divididas as despesas entre os empregadores. “Vão os empregadores pagar metade/metade? Onde fica a equidade? Ou até pode ter de se aumentar o serviço [de internet] por ‘culpa’ de um dos elementos do casal e o empregador do outro elemento vai acarretar também esse custo? São inúmeras as perguntas sem resposta ainda, o que já não devia acontecer nesta fase“, lamenta.
A estas questões, Tiago Marcelino Marques, advogado coordenador do Núcleo de Laboral e Segurança Social da RSA-LP, vem acrescentar ainda outra: “Como é a minha entidade patronal vai fazer para saber se estou sozinho em casa ou se mais alguém do meu agregado também está em casa a trabalhar? Contacta a empresa do conjunge? Não me parece viável. A acrescer, há aqui questões de RGPD que rapidamente se podem levantar, nomeadamente estar a pedir dados pessoais de pessoas que não fazem parte da empresa“.
Também para este advogado, o acordo entre empregadores sugerido pelo Estado não parece viável. “As empresas, passe-se a expressão, ‘ficam com o menino no colo’ e terão de arranjar uma solução em concertação para o pagamento destas despesas, que eventualmente terá de passar por uma indicação da própria Comissão Nacional de Proteção de Dados“, afirma.
Na mesma linha, Madalena Caldeira, sócia contratada na Abreu Advogados, sublinha que a solução proposta pelo Estado (de acordo entre os empregadores) não só não é exequível, como é uma “absoluta fantasia“. “É uma forma de remediar uma norma e um regime que estão mal feitos“, afirma a advogada especialista em Direito Laboral. ” É absolutamente estapafúrdia esta forma de resolver” a questão das despesas do teletrabalho para teletrabalhadores que partilham uma morada, enfatiza.
Madalena Caldeira vai mais longe e defende que, no seu todo, o regime aprovado pela Assembleia da República está mal feito, não sendo, portanto, sequer facilmente remediável com a eventual regulamentação a ser emitida pelo Governo.
Já para João Pedro Anacoreta, sócio na PLMJ, “nada impede que vários empregadores estabeleçam um acordo para repartir esse acréscimo de custos fixos”, mas o advogado alerta que, para isso, “os trabalhadores teriam de partilhar a situação laboral dos restantes membros do agregado familiar, o que é pouco provável que venha a acontecer de forma frequente”.
Segundo adiantou ao ECO o Ministério da Modernização do Estado e da Administração Pública, os funcionários do Estado deverão receber o pagamento das despesas suportadas no início do ano — no período em que o teletrabalho foi obrigatório, por causa da pandemia — em fevereiro. O gabinete de Alexandra Leitão adiantou também que a 15 de dezembro (altura em que o teletrabalho era somente recomendado e ainda não obrigatório) havia 25 mil trabalhadores públicos em teletrabalho“.
O ECO perguntou, então, ao Governo quantos acordos com outros empregadores já tinha feito para as situações em que os teletrabalhadores públicos dividem casa com trabalhadores ao serviço de outros empregadores, mas ainda não obteve resposta.
No privado, conforme indicou ao ECO a bastonária da Ordem dos Contabilistas Certificados, Paula Franco, há empresas que, perante estas dificuldades, decidiram atribuir um valor fixo aos teletrabalhadores para cobrir as despesas adicionais, mas também há outras que, até agora, não pagaram qualquer valor aos trabalhadores, porque estes não conseguiram comprovar o acréscimo de custos.
A ministra do Trabalho, Ana Mendes Godinho, também já foi questionada sobre estas dúvidas, mas adiantou que não está prevista a publicação de regulamentação para esclarecer esta questão das despesas do teletrabalho. Disse apenas que seriam “clarificadas a cada momento as dúvidas que vão surgindo”, mas até ao momento nenhum esclarecimento saiu da Praça de Londres, nem através da Direção-Geral do Emprego e das Relações de Trabalho (DGERT), nem através da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT).
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