O que já se sabe e o que falta saber do caso das offshores
Paulo Núncio e Fernando Rocha Andrade sentam-se hoje no Parlamento para responder sobre o caso das offshores. Antes disso, relembramos os pontos-chave desta história.
É a mais recente polémica da agenda política nacional. A saga começa a 21 de fevereiro, quando o Público (acesso condicionado) noticia que houve declarações de transferências feitas para paraísos fiscais, no valor agregado de perto de 10 mil milhões de euros, que não foram objeto de qualquer tratamento estatístico nem fiscalizadas pela Autoridade Tributária.
Acusação puxa acusação e eis que chegamos ao dia em que os secretários de Estado dos Assuntos Fiscais — o atual e o seu antecessor — vão responder às questões dos deputados sobre este assunto. Paulo Núncio, a primeira baixa deste caso, é ouvido às 10h00, Fernando Rocha Andrade às 12h00. Antes disso, relembrem-se os pontos-chave desta história.
O quê
As instituições financeiras são obrigadas a declarar ao fisco as transferências que fazem para locais que sejam considerados “paraísos fiscais”. Ao longo de quatro anos, houve 20 declarações, cada uma relativa a um conjunto de transferências para estes paraísos fiscais, que foram apresentadas pelos bancos. Este conjunto de transferências totaliza 9,8 mil milhões de euros. Só que essas declarações — enviadas ao Fisco, como manda a lei — não foram objeto de qualquer tratamento estatístico nem foram fiscalizadas pela Autoridade Tributária.
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Como se descobriu isto?
As estatísticas oficiais revelavam, em abril de 2016, um valor de 7.162 milhões de euros transferidos para offshores no período entre 2011 a 2014. Em dezembro de 2016, o valor contabilizado foi mais do dobro: foram 16,9 mil milhões de euros, uma diferença superior a 9.800 milhões de euros de transferências para os paraísos fiscais.
Segundo o Público, os ficheiros chegaram com a informação completa ao fisco. Foi dentro da própria administração fiscal que desapareceu informação de alguns ficheiros. É isso que justifica que os tais 9,8 mil milhões de euros transferidos para offshores não constassem das estatísticas do fisco.
Quem
No período em causa, de 2011 a 2014, o Governo em funções era o Pedro Passos Coelho e o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais era Paulo Núncio. Já o presidente da Autoridade Tributária era José Azevedo Pereira, que esteve à frente da entidade entre setembro de 2007 e julho de 2014.
Quando
Há vários “quandos”.
O primeiro: as 20 declarações em causa foram feitas entre 2011 e 2014.
O segundo: nos anos em que o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais era Paulo Núncio, entre 2011 e 2015, as estatísticas destas transferências deixaram de ser publicadas no Portal das Finanças, como acontecia até ali. Estas estatísticas começaram a ser publicadas em 2010, por ordem de Sérgio Vasques, o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais do governo de José Sócrates. Só em abril de 2016, agora por ordem de Fernando Rocha Andrade, é que estes dados voltaram a ser divulgados no Portal das Finanças.
E o terceiro: as discrepâncias nas estatísticas começam a ser detetadas no ano passado, quando Fernando Rocha Andrade, o atual secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, teve conhecimento de um conjunto de transferências feitas por uma só instituição financeira, em 2014, que não tinham sido devidamente tratadas pela Autoridade Tributária.
Quem diz o quê
No mesmo dia em que o Público avançou a notícia, PS, PCP e Bloco de Esquerda apressaram-se a pedir esclarecimentos sobre os 10 mil milhões que voaram para offshores sem escrutínio da Autoridade Tributária. A oposição manteve-se calada durante um dia, até vir defender que não era precisos dramas. Pelo meio, Paulo Núncio e Azevedo Pereira começam a trocar galhardetes. A discussão culminou com o primeiro a assumir “responsabilidade política”. A direita aplaudiu a “elevação de caráter” de Núncio, a esquerda pediu mais.
Por partes:
Esquerda pede audições…
O PS pediu a audição de Fernando Rocha Andrade para que o mesmo prestasse “todos os esclarecimentos sobre as transferências para offshores que, durante o Governo do PSD/CDS, não foram controladas pelo Fisco”.
Bloco de Esquerda e PCP foram mais longe e pediram a audição também de Paulo Núncio. “A revisão destes valores que não foram publicados pelo anterior Governo não levantaria grande questão política caso os montantes em causa não correspondessem a quase dez mil milhões de euros, mais do que duplicando os anteriormente conhecidos”, referiu o PCP.
“O combate à fuga e evasão fiscal, sem prejuízo da necessidade de acabar com os offshores, passa pelo esforço de cada Estado impor garantias de transparência sobre estas operações. A explicação dos motivos desta fuga de dez mil milhões de euros, por parte dos atuais e anteriores responsáveis pela política fiscal, é seguramente parte da exigência”, sublinharam os bloquistas no seu requerimento, disseram, por seu lado, os bloquistas.
… Direita pede calma
O PSD demorou um dia a pronunciar-se, para dizer que não era caso para dramas. “Há explicações a serem dadas, e sem dramas”, disse o deputado Duarte Pacheco. Porquê? Porque “é legal as pessoas transferirem dinheiro para outros sítios, desde que paguem aqui os impostos sob o rendimento que gerou esse dinheiro”. Ora, não é ainda certo que os 10 mil milhões em causa estejam sujeitos a tributação.
Só mais tarde é que o maior partido da oposição decidiu avançar com um requerimento para pedir a audição de todos os responsáveis do fisco desde 2011.
Em nome do anterior Governo falou Pedro Passos Coelho, que disse ser “impensável” a ideia de que o Executivo que liderava tenha dado instruções à Autoridade Tributária para deixar transferir, sem controlo, os 10 mil milhões de euros para offshores.
Núncio aponta dedo a Azevedo Pereira…
Seguiu-se uma troca de acusações entre Paulo Núncio e Azevedo Pereira.
O antigo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais deu o pontapé de saída. “A divulgação das estatísticas nada tem a ver com o tratamento e a utilização da informação sobre transferências para paraísos fiscais para efeitos de inspeção da Autoridade Tributária”, disse ao ECO.
E apontou armas à Autoridade Tributária: “Não tive conhecimento da situação descrita relativamente ao não tratamento de parte das declarações dos bancos pela Autoridade Tributária. E acho muito bem que, caso tenha havido parte da informação fornecida pelos bancos à AT que não foi devidamente analisada, que a IGF apure o porquê de tal facto”.
… Azevedo Pereira aponta dedo a Núncio…
Azevedo Pereira respondeu a Núncio no dia seguinte. “A Autoridade Tributária efetuou, em devido tempo, quer o tratamento e o acompanhamento inspetivo que lhe competia, quer a preparação dos elementos necessários à efetiva divulgação pública dos elementos em causa”, disse, em declarações ao ECO.
O pingue-pongue continuou por mais dois dias. Ao Diário de Notícias, fonte da Autoridade Tributária disse que, em 2012, propôs a Núncio a publicação dos dados em causa, mas o governante terá apenas escrito “visto” no despacho emitido. A AT interpretou, então, que o Governo não queria continua a publicar os dados e deixou de fazer o pedido nos três anos consequentes.
Paulo Núncio tem uma versão diferente e atirou as culpas de volta para a AT. Segundo o antigo secretário de Estado, a ordem de publicação dada pelo seu antecessor mantinha-se, pelo que a AT continuava obrigada a divulgar as estatísticas na sua página. “Essa divulgação não estava dependente de uma aprovação expressa“, garantiu Núncio ao DN.
E Azevedo Pereira voltou a responder, desta vez numa carta de nove pontos. “Caso tivesse sido intenção do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, da altura, disponibilizar publicamente a informação produzida, teria tido a possibilidade de, em qualquer momento, ao longo dos quatro anos seguintes (com o ex-Diretor-Geral que escreve estas linhas, ou com qualquer dos que se lhe seguiram) anular o suposto ‘erro de perceção’, mediante a emissão de uma indicação, formal ou informal, de natureza contrária aquela que na altura foi transmitida à AT”, escreveu Azevedo Pereira.
… E Núncio cai
No fim, foi Núncio o primeiro a cair. Depois de ter responsabilizado a Autoridade Tributária, o antigo secretário de Estado assumiu a “responsabilidade política” e abandonou as funções que mantinha no CDS-PP. Na reação, Assunção Cristas, líder do partido, aplaudiu a “elevação de caráter” de Núncio e frisou que, até prova em contrário, “não há nenhuma verba perdida” em termos de receitas fiscais.
Quem não ficou tão convencida foi a esquerda. Bloco de Esquerda diz que ficou por esclarecer o mais importante: “como foi que dez mil milhões desapareceram das listas de transferências para offshores”; e defendeu que Vítor Gaspar e Maria Luís de Albuquerque deviam seguir o exemplo de Núncio na admissão de responsabilidade.
Já o PCP considerou que a “confissão” de Núncio “confirma a responsabilidade do PSD e do CDS, mas também a política de dois pesos e duas medidas do Governo PSD/CDS”.
O que falta saber
Há muitas perguntas que ainda estão por responder. Haverá mais, mas estas são as principais:
- Quem foi o responsável pela omissão das estatísticas sobre a transferência de contas nacionais para contas em paraísos fiscais entre 2011 e 2015? Na carta onde assume a responsabilidade política, Paulo Núncio deixa uma pista: “Tendo tido agora a oportunidade de revisitar os documentos que têm sido noticiados, nomeadamente os apresentados pelos serviços para publicação de informação estatística das transferências transfronteiriças, considero legítima a interpretação dos serviços que levou à não publicação das estatísticas no portal das Finanças”.
- As transferências comunicadas ao Fisco foram, ou não, alvo de tratamento fiscal? Ou seja, os contribuintes que transferiram este dinheiro pagaram os devidos impostos? A verdade é que ainda não é certo que as operações em causa sejam sequer alvo de tributação. Se forem, há uma boa notícia: o prazo de caducidade dos direitos de liquidação de impostos que decorram de transações com offshores é de 12 anos, pelo que ainda há tempo para cobrar estes impostos, se não tiverem já sido cobrados.
- Quem são os contribuintes que fizeram estas transferências? E quem foram os destinatários do dinheiro? E qual é a instituição que originou as suspeitas de Rocha Andrade? Para estas perguntas, não há quaisquer respostas.
- Houve ordem superior para não incluir nas estatísticas estas 20 declarações em particular? Passos Coelho já disse que “é impensável” dizer que tenha havido ordem superior. Mas as estatísticas não deixaram de ser feitas, só deixaram de ser publicadas. E, quando voltaram a sê-lo, o que se notou foi que apareceram 20 declarações de transferências que, dantes, não apareciam nas estatísticas. Porquê estas 20 em particular?
- Porque é que Rocha Andrade não falou mais cedo? No requerimento que fez para que seja feita uma audição a Fernando Rocha Andrade o PS dizia o seguinte: “no final de 2015 (…), o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, ao retomar o trabalho de divulgação das transferências, deteta que os bancos, entre 2011 e 2014, mantiveram o seu trabalho de reporte das transferências ocorridas para offshore, mas que o mesmo não foi alvo de qualquer escrutínio por parte da Autoridade Tributária e Aduaneira”. Esta declaração acusa, obviamente, o anterior Governo. Mas também coloca em cheque Fernando Rocha Andrade. Se o atual secretário de Estado detetou as irregularidades no final de 2015, porque é que só sabemos disso agora?
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