Do bolso às viagens, crise na Ucrânia já assusta exportadoras portuguesas

Empresários temem impacto financeiro, burocrático e no acesso aos mercados do leste europeu. Em 2021, a Rússia rendeu 178,4 milhões de euros e 369 empresas nacionais exportaram para a Ucrânia.

As más notícias sobre o conflito entre a Rússia e a Ucrânia ainda estão a chegar mais pela televisão e pelos jornais do que através dos canais de negócio e das informações transmitidas pelos distribuidores e pelos clientes naquelas geografias. No entanto, perante a previsível escalada de violência no leste europeu, as exportadoras portuguesas ouvidas pelo ECO antecipam já um avolumar das dificuldades que vão desde a burocracia à fiscalidade, passando pelas finanças e pelo acesso aos mercados.

Para a Quinta do Portal, a Rússia está na lista dos melhores mercados internacionais — as exportações pesam 65% na faturação anual de quatro milhões de euros –, a par dos Estados Unidos da América (EUA), Brasil e Canadá. Tem dois importadores no país liderado por Vladimir Putin, onde há duas décadas começou por vender Vinho do Porto e somou, entretanto, as categorias DOC Douro. Manuel Castro Ribeiro fala num “mercado relevante e crescente”, onde tem “relações estáveis há muitos anos” e, para já, não sentiu alterações.

“Não tivemos qualquer feedback negativo ou comunicação sobre algo que esteja para mudar. Eles vão fazendo encomendas com alguma regularidade – de mês em meio em mês e meio – e o ritmo do Natal e da passagem de ano manteve-se para este ano. Já tivemos encomendas e saíram algumas garrafas em 2022. A partir de agora penso que poderá ser diferente”, relata o diretor-geral, que teme que as sanções que estão a ser discutidas atinjam também esta indústria, piorando as “limitações” que já sentiu nos diferendos comerciais entre a União Europeia e os EUA.

Quinta do Portal exporta vinhos do Porto e DOC Douro para os supermercados russos.

Além da Rússia, a produtora de vinhos sediada no Porto vende também “qualquer coisa para a Ucrânia e para os países ali à volta”, como a Letónia, Lituânia, Azerbaijão e Cazaquistão. O gestor lembra que “a instabilidade será regional” e na memória está ainda fresca a situação ocorrida em meados da última década, provocada pela forte queda do rublo, que afetou a “disponibilidade de divisas para a importação da parte dos russos” e arrastou as vendas para aquele país. “A proposta deles era que vendêssemos a metade do preço e isso não existe”, recorda.

No negócio do vinho, que concorre com outros produtos – incluindo alguns produzidos localmente –, uma desvalorização do rublo é fortemente penalizadora no consumo. O preço na prateleira fica proibitivo.

Manuel Castro Ribeiro

Diretor geral da Quinta do Portal

“Em fases de desvalorização do rublo, sendo os preços internacionais em dólares ou em euros, as importações deles ficam claramente mais caras. E isso teve efeitos significativos. Foram obrigados a colocar os vinhos na prateleira ao dobro do preço. No negócio do vinho, que concorre com outros produtos – incluindo alguns produzidos localmente –, uma desvalorização do rublo é fortemente penalizadora no consumo. O preço na prateleira fica proibitivo”, ilustra Manuel Castro Ribeiro, que lidera uma das 600 empresas nacionais que exportaram para a Rússia entre janeiro e dezembro de 2021.

Outra é a OLI, uma empresa industrial de Aveiro que surge inclusive no top 10 dos exportadores portugueses para aquele país, segundo a lista fornecida pelo INE, e que reconhece que “os impactos são difíceis de prever [e] muito dependerá do que for o desenrolar da situação”. “Naturalmente que a desvalorização do rublo russo e a imposição de taxas alfandegárias podem ter impacto nas nossas exportações para a Rússia. Contudo, como também temos produção no país, essa tornar-se-á mais competitiva e mais acessível”, completa António Ricardo Oliveira.

António Ricardo Oliveira, administrador da OLI

Em 2021, as vendas de autoclismos e mecanismos para cerâmicas na Rússia cresceram 30% em relação ao ano anterior, totalizando 5,5 milhões de euros — o volume global da empresa ascendeu a 70 milhões de euros. O administrador refere que “neste momento ainda não [sentiram] impacto na atividade” relacionada com a instabilidade das últimas semanas e que os parceiros, clientes e fornecedores naquele país “transmitem que continuam tranquilos e a viver num clima de normalidade, apesar do mediatismo da situação”.

A desvalorização do rublo russo e a imposição de taxas alfandegárias podem ter impacto nas nossas exportações para a Rússia. Contudo, como também temos produção no país, essa tornar-se-á mais competitiva e mais acessível.

António Ricardo Oliveira

Administrador da OLI

 

Foram a desvalorização do rublo, os custos logísticos e os constrangimentos alfandegários que em 2016 levaram a empresa aveirense a construir uma fábrica na Rússia, onde já tinha uma filial comercial há dois anos. Aquela que foi a primeira unidade industrial no estrangeiro, instalada junto à capital Moscovo, produziu no ano passado um total de 400 mil mecanismos (+10% do que em 2020) e 30 mil autoclismos interiores, ficando 40% acima do registo homólogo.

A OLI produz dois milhões de autoclismos e três milhões de mecanismos na fábrica de Aveiro

Em 2022, a OLI prevê aumentar as vendas em 30%, para 7,5 milhões de euros, “sustentado por um investimento de cerca de 750 mil euros previsto para o próximo biénio”. E esta situação não pode afetar os planos industriais e a rentabilidade esperada com esse projeto? “Os planos de investimento estão definidos há mais de um ano e não os vamos alterar. Temos compromissos assumidos com os nossos clientes e vamos mantê-los”, respondeu António Ricardo Oliveira.

De acordo com os dados preliminares do INE, relativos ao ano de 2021, Portugal vendeu à Rússia mercadorias no valor de 178,4 milhões de euros, o que significa uma taxa de cobertura pelas importações de 16,7%. Aliás, o desequilíbrio no comércio é visível noutro ranking: é o 13º maior fornecedor do país e apenas 37º principal cliente. Na lista dos bens mais vendidos para aquele destino destacam-se os produtos agrícolas e alimentares, a cortiça e a maquinaria industrial.

Era precisamente máquinas, sobretudo direcionadas para padaria e pastelaria, que a Felino vendia para a Rússia até o importador falir no ano em que começou a pandemia. Agora, com a chegada de uma nova era pós-Covid, a fabricante de Ermesinde (distrito do Porto) contava aproveitar o regresso das viagens e das feiras para retomar o contacto com aquele mercado. No entanto, este conflito no leste europeu vai impedir a empresa nortenha de “retomar a ação comercial e desenvolver os primeiros passos para os novos produtos”.

Estava nos nossos planos a participação em feiras da especialidade. Com estas notícias, tudo vai ao ar. A mim não me apanham lá até esta coisa se resolver.

Manuel Braga Lino

Administrador da Felino

“Lançámos um novo produto (salamandras a pellets) e depositávamos grandes esperanças no mercado russo. Já sabemos como nos movimentar lá, já temos referências de outras máquinas Felino e um país com 11 fusos horários e frio tem clientes de sobra para este produto, de gama média/alta. Estava nos nossos planos a participação em feiras da especialidade. Com estas notícias, tudo vai ao ar. A mim não me apanham lá até esta coisa se resolver”, confessa o administrador, Manuel Braga Lino.

369 empresas portuguesas exportam para a Ucrânia

No caso das trocas comerciais com a Ucrânia, o saldo da balança é ainda mais deficitário, com a taxa de cobertura das exportações pelas importações a ficar-se pelos 12,1% no ano passado. As vendas de bens nacionais para aquele país até aumentaram de 30,7 milhões em 2020 para 35,9 milhões de euros em 2021, mas, em sentido inverso, as compras naquele território progrediram de maneira ainda mais forte: passaram de 205,9 para 296,5 milhões de euros.

Cortiça, bebidas e maquinaria estão no pódio dos artigos mais exportados pelas 369 empresas portuguesas que fizeram vendas para o mercado ucraniano no ano passado — ligeiramente abaixo das 374 de 2020 –, como mostram os números preliminares do Instituto Nacional de Estatística. Já os dados da AICEP, liderada por Luís Castro Henriques, apontam que é apenas o 58º destino para as mercadorias nacionais (valeu 0,06% do total de 2021) e ocupa a posição 30 na lista de fornecedores de Portugal.

A ameaça à estabilidade no território ucraniano é cada vez maior e as maiores exportadoras portuguesas preferem manter o silêncio, quando questionadas pelo ECO sobre os relatos que chegam dos parceiros locais e sobre a possível ameaça ao negócio. Foi o caso da Corticeira Amorim, da produtora de dispositivos médicos Fapomed, que tem sede em Felgueiras e uma fábrica na Ucrânia, ou da Nestlé Portugal, que transmitiu apenas a posição global de que “o foco está na segurança e na proteção dos seus colaboradores” naquele país.

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