Manuel Ramirez, o Sr. Conservas que deu “lata” a Matosinhos para conquistar a Europa

O percurso e o legado de Manuel Ramirez, algarvio benfiquista e católico devoto que preparou a mais antiga fábrica de conservas de peixe do mundo, criada em 1853 pelo bisavô, para chegar ao séc. XXII.

Sempre atento aos mercados internacionais de transação de peixe, em dezembro de 2019, quando começaram a surgir as primeiras notícias sobre um novo vírus na China, Manuel Guerreiro Ramirez emitiu uma nota interna para que a empresa comprasse o quádruplo da quantidade habitual de atum, que é importado da América Latina. O responsável de compras até ligou para aferir se não seria um engano, uma vez que o preço estava elevado, mas o empresário confirmou que era mesmo para avançar: “Compra, que vai ficar ainda mais alto”.

Quatro meses depois, em abril de 2020, com a pandemia já decretada e o mundo em confinamento, a procura por conservas disparou – a Ramirez triplicou a produção – e nesse verão houve muitas fábricas de conservas sem matéria-prima para satisfazer as encomendas. Não foi o caso da conserveira sediada em Lavra, no concelho de Matosinhos, graças ao conhecimento do setor e à capacidade de análise e de previsão do proprietário desta empresa centenária, que era conhecido como o Sr. Conservas e que morreu a 8 de março de 2022, com 80 anos de idade.

Este é um dos vários episódios relatados ao ECO por amigos e fontes próximas do empresário que entre as décadas de 1960 e 1970 foi o responsável pelo desenvolvimento e introdução mundial das latas de conservas de peixe tal como são ainda padronizadas: com argola de abertura fácil e sem necessidade de chave. Foi a resposta ao ultimato de um grande importador inglês, que estava farto de receber queixas dos clientes que não conseguiam abrir as embalagens. “Ou resolvemos isto ou deixo de vender conservas”. Percebendo que “aquilo era o futuro”, trouxe o desafio para dentro de portas e durante três anos, a expensas próprias, trabalhou com o Instituto Português de Conservas de Peixe e com outro laboratório até encontrar um ponto de incisão na chapa que equilibrasse robustez, facilidade de abertura e segurança alimentar.

Algarvio, benfiquista e um leitor voraz, que nos últimos anos ficava até às primeiras horas da madrugada a navegar na Internet, Manuel Ramirez era um homem de fé e devoção católica. Apreciava uma boa conversa, que era capaz de alimentar por longas horas. E num setor que no início do século contava 400 fábricas e que está agora reduzido e duas dezenas, todos os industriais se “conhecem e colaboram para manter” este negócio, em comunicação permanente, com José Maria Freitas a recordar como “a personalidade dele esteve sempre muito ligada à empresa e à sua estratégia”.

Manuel Guerreiro Ramirez, fotografado a 22 de abril de 2014JOSÉ COELHO/LUSA

“Era uma presença obrigatória e incontornável. Deixa um enorme contributo para a imagem e o posicionamento da indústria de conservas a nível internacional. A Ramirez tem marca e presença no atum, mas o reconhecimento internacional vem sobretudo da sardinha, que foi o que deu às conservas portuguesas o renome e uma imagem de qualidade no mercado externo. Tem marcas de prestígio enorme no centro e norte da Europa. Foi muito forte e presente num produto que é a imagem da indústria nacional lá fora”, descreve o presidente da Associação Nacional dos Industriais de Conservas de Peixe (ANICP).

José Maria Freitas descreve “um homem que acreditava plenamente nas suas ideias e que as trazia para a mesa das reuniões e das negociações de uma forma entusiasta, muito clara e incisiva”. Nos anos mais recentes, em que o setor enfrentou um “problema gravíssimo” relacionado com o stock da sardinha, de grande preocupação para as conserveiras, Manuel Ramirez “foi sempre uma voz viva na defesa da necessidade de matéria-prima para a indústria poder sobreviver”. A começar nas reuniões associativas e a acabar nos gabinetes ministeriais. “Tinha, de facto, uma voz que era uma presença permanente nas entidades governativas ligadas ao nosso setor. Era uma pessoa com acesso fácil [ao poder político], pela dimensão da empresa e pela figura em si”, reconhece o atual líder da associação setorial fundada em 1977.

Tinha, de facto, uma voz que era uma presença permanente nas entidades governativas ligadas ao nosso setor. Era uma pessoa com acesso fácil [ao poder político], pela dimensão da empresa e pela figura em si.

José Maria Freitas

Presidente da Associação Nacional dos Industriais de Conservas de Peixe

Em democracia e nos últimos anos da ditadura. Para a história entrou outro episódio, desta vez com um ministro de Salazar, com quem teve um desaguisado durante um evento social a propósito do condicionamento industrial, que durante o Estado Novo impedia a livre concorrência e o surgimento de novas empresas sem a concordância das já existentes no setor. Por via dessa legislação restritiva, só as empresas de congelamento é que podiam ter frigoríficos com temperaturas negativas, e as conserveiras queriam para poderem trabalhar em contínuo.

Manuel Ramirez interpelou-o, não gostou da resposta negativa e disse-lhe que então ele nunca mais podia beber whisky com gelo em casa. A verdade é que, passado pouco tempo, o ministro acabou por desbloquear essas restrições. As empresas do ramo alimentar passaram a poder introduzir redes de frio e de congelação, o que revolucionou as próprias relações laborais no setor, permitindo emprego a tempo inteiro (um horário de oito horas), uma vez que antes disso as trabalhadoras só iam para a fábrica quando havia peixe fresco, chamadas por apitos ou por fumos.

Natural de Vila Real de Santo António, onde nasceu a 1 de setembro de 1941, o empresário tomou desde muito cedo contacto com a fábrica fundada em 1853 pelo bisavô Sebastian, que foi a primeira conserveira a operar em Portugal e é a mais antiga indústria de conservas de peixe do mundo em laboração. Aos 15 anos já conhecia as várias unidades produtivas da empresa e aos 21 anos já era gerente de uma delas. À Lusa chegou a recordar o chamado “bosque” (atuns de 200 quilos pendurados no teto da fábrica e que faziam lembrar árvores) e os “misteriosos livros dos mestres conserveiros”. Porém, o que lembrava com mais saudade era o “doce e desaparecido aroma a atum cozido, que invadia as narinas de todos” na fábrica e nas ruas da vila.

Renovação industrial, “a obra da vida”

Atualmente na quinta geração, com Manuel e Vasco Teixeira Marques Ramirez na administração, a empresa matosinhense que começou a exportar ainda no século XIX está presente em cerca de 45 mercados — Bélgica, África do Sul, França, EUA, Inglaterra, Canadá e Brasil são os principais — e produz mais de 55 referências, do atum às sardinhas, passando pela cavala, bacalhau, lulas, polvo, mexilhões ou filetes de anchova. Fatura perto de 30 milhões de euros, emprega 240 pessoas e produz 50 milhões de latas por ano nas 11 linhas da fábrica “Ramirez 1853”, que na altura em que foi inaugurada, em 2015, apresentou como “a obra da [sua] vida”.

Resultado de um investimento de 18 milhões de euros e instalada no concelho para onde o pai Emílio tinha na década de 1940 deslocado a principal fábrica da família, já que o peixe era ali abundante – Manuel Ramirez foi agraciado em dezembro de 2003 com a medalha de honra e o título de cidadão de Matosinhos, pelo seu contributo “para o bem social ou para o bom nome e glória” do município –, é apontada como uma das fábricas mais “verdes” e funcionais do mundo no setor agroalimentar. Esterilização das conservas, pesagem automática das latas, robótica na parte de armazenamento e embalamento são alguns dos processos automatizados e tecnologia de ponta que utiliza. Um colaborador de longa data conta ao ECO que tinha o “sonho de deixar esse legado para os filhos” e era “uma velha aspiração” sua, até porque a empresa não tinha uma nova unidade industrial há 70 anos.

Fábrica “Ramirez 1853”Ricardo Castelo/ECO

Para as novas instalações, que incluem uma creche gratuita para os filhos dos funcionários (cerca de 80% são mulheres) e onde são fabricadas marcas históricas como Ramirez, Cocagne, Berthe, The Queen of the Coast, Tomé, Al Fares ou La Rose, foi transferida a produção que estava em Peniche e em Leça da Palmeira. Outra novidade foi a criação de um museu, alusivo à história empresarial da Ramirez – e onde está exposta, por exemplo, aquela que foi a primeira máquina de descabeçar sardinhas em todo o mundo, criada em parceria com a Baade nos anos 1960. A mudança aumentou a área de laboração de 10 mil para 20 mil metros quadrados, tendo ainda um terreno disponível para voltar a duplicar a superfície. Isto é, pode fazer quatro fábricas com a dimensão das que tinha até há poucos anos.

“Foi um indivíduo que puxou esta indústria para cima. A fábrica que construiu mostra isso. Orgulha todo o setor. Quando fez a fábrica foi com visão de poder crescer para as próximas décadas. Fazia questão de manter a fábrica na família, que estava a preparar para os filhos e para os netos. Era um dos grandes orgulhos dele”, destaca Sérgio Real, ex-administrador d’A Poveira, destacando que a concorrência sempre foi “cordial”. Enquanto presidente da ANICP, com passagem também pela vice-presidência do Conselho Geral da CIP, o gestor nortenho recorda como o concorrente “sempre foi ativo” na defesa do setor e “fazia questão de ir a Lisboa”, acompanhando-o nas deslocações que visavam encontros com ministros e secretários de Estado para “resolver assuntos da indústria”.

Quando fez a fábrica foi com visão de poder crescer para as próximas décadas. Fazia questão de manter a fábrica na família, que estava a preparar para os filhos e para os netos.

Sérgio Real

Ex-administrador d’A Poveira e antigo presidente da associação do setor

 

Além de ter presidido à ANICP durante 12 anos, defendendo com sucesso a venda direta do peixe às fábricas, Manuel Guerreiro Ramirez foi também membro e líder da Associação Europeia dos Processadores de Pescado, conseguindo com mestria diplomática que a União Europeia promulgasse a denominação de origem da “sardina pilchardus walbaum” (pescada nas águas portuguesas e usada nas conservas Made in Portugal), em detrimento de outras espécies da América do Sul. Foi ainda diretor da CIP — esteve envolvido no Código de Boas Práticas Comerciais — e cônsul da Finlândia. Recebeu essa responsabilidade do pai, passou-a ao filho Manuel e ainda hoje o consulado continua a funcionar numa sala da fábrica de Matosinhos.

Um episódio famoso é o das latas de atum da Ramirez que foram encontradas no bunker de Adolf Hitler no final da Segunda Guerra Mundial, numa altura em que Portugal exportava muitas conservas para a Europa, quer para a Cruz Vermelha quer para outras entidades que apoiavam as populações vítimas do conflito. Menos conhecido é o facto de um importador do Reino Unido ter comprado essas conservas num leilão, que foi realizado mais de uma dúzia de anos depois do achado, e ter enviado uma delas para o fabricante. Mesmo já tendo passado o prazo de validade – a duração média é de sete anos -, Manuel Ramirez abriu-a e comeu. “Disse que estavam impecáveis. Quis comprovar a eficácia das latas e a qualidade do produto. Sabia a cor que devia ter, a textura, percebeu que estava comestível”, relata um colaborador da empresa.

Além de perceber do seu próprio negócio e produtos, o empresário que falava inglês, francês e alemão, e que foi o responsável pela criação na empresa de um laboratório próprio de controlo de qualidade, granjeou respeito no estrangeiro por dominar todos os dossiês da indústria de conservas, mesmo naquelas espécies que não se trabalham em Portugal. Numa ocasião em que se discutia a nível europeu um problema de legislação relacionado com os arenques, para espanto dos alemães foi o representante português que resolveu essa questão técnica com uma “uma simples sugestão no texto porque conhecia a fundo a questão”.

Em Hamburgo (Alemanha), ainda adolescente, frequentou um curso comercial e trabalhou precisamente numa fábrica que produzia e comercializava conservas de arenques, onde fez “de tudo um pouco”. Esteve também mais de um ano em Inglaterra, a trabalhar na área comercial de um broker da City londrina, tendo seguido depois para Paris (França), onde estudou Engenharia Alimentar, com especialização em conservas. Regressado do estrangeiro em 1962, iniciou um percurso fulgurante nesta empresa familiar e, da fábrica às prateleiras de supermercado, o seu nome ficará para sempre gravado na história da indústria conserveira portuguesa.

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