Podem os enfermeiros fazer crowdfunding para financiar uma greve?
- Ana Sofia Franco
- 9 Fevereiro 2019
Os enfermeiros têm sustentado as suas greves através de crowdfunding. Agora, Marcelo Rebelo de Sousa alertou para a sua possível inconstitucionalidade. Mas o que diz a lei afinal?
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- Ana Sofia Franco
- 9 Fevereiro 2019
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O que é o crowdfunding?
O crowdfunding, também conhecido como financiamento colaborativo, é um sistema utilizado para a angariação de apoio financeiro para um projeto ou uma iniciativa, geralmente através da internet. Uma vez partilhada a ideia, várias pessoas podem contribuir para essa iniciativa através de doações anónimas.
Segundo a lei n.º 102/2015, que define o seu regime jurídico, o financiamento colaborativo é “o tipo de financiamento de entidades, ou das suas atividades e projetos, através do seu registo em plataformas eletrónicas acessíveis através da Internet, a partir das quais procedem à angariação de parcelas de investimento provenientes de um ou vários investidores individuais”.
Proxima Pergunta: Como funciona?
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Como funciona?
Existem quatro modalidades de crowdfunding, definidas pelo artigo 3.º da lei n.º 102/2015:
- O financiamento colaborativo através de donativo: aqui, a entidade financiada recebe um donativo, com ou sem a entrega de uma contrapartida não pecuniária;
- O financiamento colaborativo com recompensa: em que a entidade financiada fica obrigada à prestação do produto ou serviço financiado, em contrapartida pelo financiamento obtido;
- O financiamento colaborativo de capital: a entidade financiada remunera o financiamento obtido através de uma participação no respetivo capital social, distribuição de dividendos ou partilha de lucros;
- O financiamento colaborativo por empréstimo: a entidade financiada remunera o financiamento obtido através do pagamento de juros fixados no momento da angariação.
As plataformas que se servem de mais do que uma modalidade de financiamento colaborativo ficam vinculadas aos requisitos específicos aplicáveis a cada modalidade. Quer pessoas coletivas, quer estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada, podem ser titulares de plataformas de financiamento colaborativo.
Em Portugal existem, pelo menos, cinco plataformas de crowdfunding: a PPL, mais ligada ao empreendedorismo; a Crowdfunder, vocacionada para empresas, e ainda a Kickstarter, a Indiegogo e a MassiveMov.
No caso dos enfermeiros, estes recorreram ao financiamento colaborativo através de donativo, sem entrega de contrapartida pecuniária, através da plataforma PPL, para as duas greves cirúrgicas:
- A primeira iniciativa, intitulada de “Greve cirúrgica”, terminou o seu financiamento a 19 de novembro de 2018. Tinha como meta os 300.000 euros, mas chegou a angariar, no final, mais de 360.000 euros;
- A segunda foi intitulada de “Greve cirúrgica 2”, com uma meta pretendida de 400.000 euros, chegou aos 423.945 euros no total, já no fim de janeiro deste ano.
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Quem pode fazer crowdfunding?
Quanto aos beneficiários, tanto pessoas singulares como coletivas, nacionais ou estrangeiras, que estejam “interessadas na angariação de fundos para as suas atividades ou projetos”, podem recorrer a esta modalidade de financiamento. Devem comunicar e manter atualizados os seus dados (identificação, natureza jurídica, contactos, sede ou domicílio) junto da plataforma com a qual estabeleçam relação contratual.
Os beneficiários do financiamento colaborativo devem ainda comunicar às plataformas a descrição da atividade ou produto a financiar, os fins do financiamento, o montante e o prazo para a angariação e ainda o preço dos valores de cada unidade a subscrever, para informação aos investidores.
No caso do movimento cívico de enfermeiros que criou as duas campanhas de angariação na PPL, o objetivo foi “criar um fundo solidário de apoio aos enfermeiros dos blocos operatórios que adiram à greve cirúrgica, uma vez que esses profissionais não asseguram cuidados mínimos (excetuando urgências) e por isso têm perda total do seu vencimento”.
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Na parte em que descriminam o orçamento e calendarização da iniciativa, o movimento salienta mesmo: “Tentámos encontrar soluções mais económicas para fazer a angariação de fundos, mas esta foi a forma mais transparente, económica e prática que conseguimos encontrar“.
Proxima Pergunta: Qual é a polémica que envolve os enfermeiros com o crowdfunding?
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Qual é a polémica que envolve os enfermeiros com o crowdfunding?
Uma vez que as pessoas coletivas podem recorrer ao financiamento colaborativo, e dado que na lista de pessoas coletivas estão dispostos os sindicatos, pode concluir-se que sindicatos ligados aos enfermeiros podem, de facto, recorrer ao crowdfunding para angariar apoios. Mas, neste caso, foi um movimento cívico de enfermeiros que recorreu a este financiamento por duas vezes, como lembrou o Presidente da República, e é esse ponto que tem motivado tanto debate e dúvida.
Além disso, o facto de o financiamento a este grupo não provir de fundos de sindicatos, mas sim de doações anónimas, também tem levantado questões sobre a origem do apoio financeiro angariado que, somado, já ultrapassa os 780 mil euros.
Marcelo Rebelo de Sousa declarou mesmo, esta quinta-feira, que “um movimento cívico não pode declarar greve” e não se pode substituir aos sindicatos. “Primeiro quem promove o crowdfunding é um movimento cívico que não pode declarar greve. O crowdfunding é legalmente previsto para alguém reunir fundos para desenvolver uma certa atividade. Legalmente não pode substituir-se a um sindicato”, salientou.
"Quem pode declarar a greve — o sindicato — deve fazê-lo com fundos dos seus sindicatos. Como se pode fazer isso se o movimento e os donativos não são identificados?”
“Quem pode declarar a greve — o sindicato — deve fazê-lo com fundos dos seus sindicatos. Como se pode fazer isso se o movimento e os donativos não são identificados?”, questionou o Presidente da República.
Dado que o fim do crowdfunding é para uma greve, esta forma de financiamento utilizada para as “greves cirúrgicas” dos enfermeiros tem levantado ainda algumas questões, nomeadamente, ao nível da origem das doações, que não é conhecida.
A propósito, também esta quinta-feira o Partido Socialista mostrou vontade em iniciar um debate com outras forças políticas sobre a proibição de contribuições monetárias anónimas no crowdfunding. João Paulo Correia, vice-presidente do Grupo Parlamentar do partido, disse mesmo que era essencial que sejam conhecidos “os interesses que existem” subjacentes ao financiamento da “greve cirúrgica” dos enfermeiros.
"Todos os portugueses querem saber se algo ou alguém quer atingir o Serviço Nacional de Saúde (SNS). A grande questão é quem está e como está a pagar esta greve cirúrgica.”
“Todos os portugueses querem saber se algo ou alguém quer atingir o Serviço Nacional de Saúde (SNS). A grande questão é quem está e como está a pagar esta greve cirúrgica”, admitiu ontem.
Interrogado sobre se admite que o setor privado da saúde possa estar a financiar esta greve, o vice-presidente da bancada do PS respondeu: “Essa é uma interrogação que está na cabeça de todos os portugueses”. “Mas, para podermos responder a isso, temos de avançar no nosso propósito de tornar o sistema mais transparente. E vamos fazê-lo, em primeiro lugar em diálogo com os outros partidos com assento parlamentar”, completou.
Proxima Pergunta: Afinal, os enfermeiros podem ou não recorrer a este tipo de financiamento para suportar "greves cirúrgicas"?
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Afinal, os enfermeiros podem ou não recorrer a este tipo de financiamento para suportar "greves cirúrgicas"?
De facto, a questão levantada tanto pelo Presidente da República como pelo vice-presidente da bancada parlamentar dos socialistas tem fundamentos jurídicos que importam clarificar. Será que um movimento cívico pode ou não recorrer a este tipo de financiamento? E o facto de ser para uma greve traz implicações ilegais?
“Um movimento cívico pode, em termos gerais, recorrer ao crowdfunding. O que não poderá é recorrer ao crowdfunding com o intuito de financiar uma greve ou, muito menos, de a declarar“, explica ao ECO Joana Matos Lima, advogada especialista em direito financeiro e comercial da Abreu Advogados. Ou seja, a declaração e o financiamento da greve através deste sistema “poderá vir a ser considerada ilegal”, diz mesmo a jurista.
"Os sindicatos devem financiar as greves através de receitas recebidas dos seus associados. O movimento cívico não tem poderes para a declaração da greve. Assim, esta angariação através do financiamento colaborativo (por donativo) poderá ser declarada ilegal.”
“A declaração e financiamento de uma greve cabe às associações sindicais e, em certas circunstâncias previstas no Código do Trabalho, às assembleias de trabalhadores. Os sindicatos devem financiar as greves através de receitas recebidas dos seus associados. O movimento cívico não tem poderes para a declaração da greve. Assim, esta angariação através do financiamento colaborativo (por donativo) poderá ser declarada ilegal”, explica a jurista.
Assim, o objetivo do crowdfunding poder vir a ser considerado ilegal — por se destinar a uma greve –, pode pôr em causa o próprio processo de angariação de fundos, que “poderá efetivamente vir a ser também considerado ilegal”.
“A greve não pode ser declarada nem financiada pelo movimento, mas sim pelo sindicato”, esclarece a advogada. ” Um dos efeitos da greve é precisamente a suspensão do direito à retribuição do trabalhador aderente. A possibilidade de uma retribuição ao trabalhador grevista, por uma outra entidade em substituição da entidade patronal, poderá levantar questões deontológicas diversas e conflitos de interesse vários“.
Já quanto ao facto de as doações serem anónimas e de poderem ser do setor privado, a jurista remete a responsabilidades para a plataforma de angariação de fundos, neste caso a PPL. Diz a jurista que cabe a estas plataformas assegurar a confidencialidade da informação que recebem dos investidores, e também da informação recebida dos beneficiários do investimento, que não seja de divulgação pública.
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Desta forma, “não será juridicamente possível confirmar que a greve é financiada recorrendo a receitas do sindicato”, o que volta a levantar conflitos e questões deontológicas.
Contudo, a própria plataforma de crowdfunding onde esta campanha decorre “tem o dever de analisar exaustivamente esta questão jurídica antes de colocar qualquer campanha de financiamento online, sob pena de no futuro, em caso de a campanha vir a ser considerada ilegal, poder vir a ser responsabilizada por quaisquer danos causados aos seus investidores”, salienta ainda a advogada.
Antes, António Monteiro Fernandes, professor do ISCTE, já tinha alertado para o caso de terceiros, “por exemplo, um partido político ou uma empresa concorrente”, que se possam aproveitar “dessas greves, no sentido de promoverem a greve ou o seu prolongamento, como será o caso da participação no crowdfunding, isso implica a possibilidade de investigação da identidade dos contribuintes” participantes na recolha de fundos, disse, em declarações à Lusa durante a primeira greve cirúrgica.
“Imagine-se que as empresas detentoras de hospitais e clínicas privados aderiam maciçamente ao crowdfunding. Haveria, sem dúvida, ilegalidade, mas não do lado da greve — do lado das empresas, pela prática de concorrência desleal”, explicou o docente na altura.