O advogado sénior da Morais Leitão, Duarte Santana Lopes, diz que a ideia pública de que existe um “juiz bom” e um “juiz mau” têm consequências para a justiça penal e afetam a confiança das pessoas.
Duarte Santana Lopes, advogado sénior da Morais Leitão, esteve à conversa com a Advocatus e admitiu que responsabilidade e exigência são os maiores desafios que enfrenta no seu percurso profissional.
Segundo o advogado, a ideia pública que existe de um “juiz bom” e um “juiz mau” têm consequências para a justiça penal e afetam a confiança das pessoas nas decisões desses juízes de instrução. Acredita ainda que o bom e célere funcionamento da justiça são fatores essenciais para o desenvolvimento de qualquer país.
Que balanço faz da sua carreira de 15 anos?
De uma perspetiva (de sucesso) profissional, não devo ser eu a fazer essa avaliação, pelo menos publicamente. Posso, contudo, dizer que tenho tido o privilégio de estar envolvido em processos criminais e contraordenacionais de elevada complexidade e relevância, com um resultado global que considero positivo, bem como de trabalhar com diversos clientes em projetos muito interessantes de criação e implementação de mecanismos de gestão dos seus riscos de compliance. Mais importante ainda, tenho a sorte de trabalhar numa equipa excecional, tanto em termos humanos como profissionais, que reúne, a meu ver, alguns dos melhores advogados do país.
De uma perspetiva (de realização) pessoal, o balanço é bastante positivo, ainda que pelo caminho me tenha deparado com algumas dúvidas e incertezas, que foram contribuindo, ao longo dos anos, para sedimentar a minha escolha. Tenho pena, por várias razões, de não ter experimentado outras vocações, mas posso hoje afirmar que me sinto realizado e em paz com o meu percurso profissional.
Qual foi o maior desafio que enfrentou no seu percurso até ao momento?
Ser advogado, em especial advogado de contencioso e ainda mais de contencioso penal e contraordenacional, é, acima de tudo, uma enorme responsabilidade. Quando assumimos o patrocínio de um cliente num processo-crime ou num processo contraordenacional (aqui, em particular, no mundo das “grandes contraordenações”), temos de ter a consciência de que os clientes nos estão a confiar a defesa da sua liberdade, da sua reputação, da sua profissão, do seu património e, muitas vezes, da sua dignidade. A essa responsabilidade está inevitavelmente associada uma enorme exigência de rigor e de qualidade no trabalho que executamos. Essas responsabilidades e exigências são, sem sombra de dúvida, os maiores desafios que enfrentei e continuo a enfrentar no meu percurso profissional, mas são também as características desta profissão que mais me motivam e fascinam.
Sempre pertenceu à equipa da Morais Leitão. Nunca ponderou mudar de sociedade de advogados?
Sempre foi muito claro para mim que não queria fazer um percurso “normal” num escritório de advogados e que idealmente a distinção passaria por uma experiência internacional. Consegui concretizar a minha intenção entre 2013 e 2016, período em que vivi e trabalhei em Macau, num escritório que, à data, fazia parte do Legal Circle da Morais Leitão e no qual desempenhei não apenas funções de advogado mas também de representante internacional da Morais Leitão na Ásia. Esta experiência contribuiu para, entre o mais, saciar a minha curiosidade profissional.
Acresce que, apesar de não conhecer as realidades internas de outros escritórios portugueses, vejo com grande dificuldade que algum deles reúna melhores condições humanas e profissionais do que a Morais Leitão e, em particular, a equipa de Direito Criminal, Contraordenacional e Compliance em que estou inserido.
Considero que o bom e célere funcionamento da justiça são fatores essenciais para o desenvolvimento de qualquer país, pelo que a demora na resolução de processos judiciais, que infelizmente se verifica em algumas franjas do nosso sistema judicial, constitui um entrave a esse desenvolvimento.
Sente que o escritório onde está, pela estrutura que tem, dá menos valor ao contencioso e mais a uma advocacia de negócios?
Na Morais Leitão, todos os departamentos e áreas de prática foram sempre tratados com a mesma importância e com o mesmo valor, não obstante o seu maior ou menor peso para a dimensão do escritório ou fatores conjunturais que pudessem afetar o seu desempenho num determinado período.
Contudo, tenho a ideia, e talvez seja esse o sentido da pergunta, de que alguns escritórios concorrentes estarão a caminhar num sentido que passa por alguma ostracização do contencioso penal. Não é, seguramente, o caso da Morais Leitão, até porque, se bem vejo, trata-se de uma tendência puramente reativa a um conjunto de circunstâncias e casos concretos, com pouco ou nenhum substrato.
Na Morais Leitão, as áreas de contencioso e de corporate convivem pacificamente e complementam-se, sendo que o contencioso, além de dar apoio a outras áreas em termos de análise de risco, representa uma parte muito relevante da nossa atividade, que muito enriquece a sociedade e os serviços full service que presta.
O contencioso já foi mais valorizado do que é?
Pelo contrário. E se alguém assim pensar só pode ser por não estar minimamente atento. Ainda agora, nos dias antes do Natal, os primeiros trinta minutos de qualquer telejornal eram quase exclusivamente dedicados a processos criminais. É inegável que os processos judiciais, nomeadamente os de natureza criminal e contraordenacional, fazem parte da agenda mediática quotidiana, o que é sintomático da sua relevância na sociedade.
Coisa diferente é a aposta que as empresas devem fazer na prevenção do contencioso, ou seja, no compliance. Se for esse o sentido da pergunta, estou de acordo, mas diria de forma diferente: o compliance é, agora, tão ou mais valorizado que o contencioso.
Enquanto professor universitário, o que acha que falta no ensino do direito?
Fiz o curso na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e, desde 2016, co-leciono a cadeira de Prática Jurídica Interdisciplinar na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, ainda que não esteja inserido na carreira académica. Conheço, por isso, bem duas das melhores faculdades de Direito do país. Apesar de essas faculdades terem métodos de ensino distintos, têm um denominador comum, que considero ser a grande virtude de ambas: o ensino do Direito passa, acima de tudo, pelo ensino de uma certa forma de pensar ou de raciocinar. Acho que este é o ponto que distingue as faculdades de Direito de excelência das demais. Dentro da realidade que conheço, acho que o ensino do Direito em Portugal tem uma enorme qualidade, não sendo fonte de qualquer problema ou lacuna que possam existir no exercício da advocacia.
Em muitos casos, a fase de instrução é transformada numa antecipação do julgamento, o que em nada serve os interesses e valores da justiça, nem os direitos dos arguidos.
Considera que os tribunais são um fator de bloqueio do desenvolvimento do país?
Considero que o bom e célere funcionamento da justiça são fatores essenciais para o desenvolvimento de qualquer país, pelo que a demora na resolução de processos judiciais, que infelizmente se verifica em algumas franjas do nosso sistema judicial, constitui um entrave a esse desenvolvimento.
Processos que, na primeira instância, demoram quase dez anos a ser decididos, como ocorre com uma frequência preocupante nos Tribunais Administrativos e Fiscais, e inquéritos criminais que se prolongam por cinco ou dez anos antes sequer de ser proferida uma acusação, como sucede, também de forma preocupante, nos chamados “mega-processos”, e mesmo em alguns que não são assim tão “mega”, são realidades inaceitáveis e que prejudicam gravemente os agentes económicos e as pessoas e empresas que se veem envolvidas nesses litígios.
As empresas portuguesas estão bem preparadas no sistema de compliance?
Quanto ao compliance sancionatório, que é aquele que engloba as normas regulatórias de prevenção de certos crimes e contraordenações, em especial da corrupção, do branqueamento e do financiamento do terrorismo, ao qual dedico parte da minha atividade profissional, considero que, apesar de estarmos ainda numa curva de aprendizagem, a generalidade das empresas portuguesas está muito mais ciente da sua importância e dos riscos (sancionatórios, económicos e reputacionais) associados ao não cumprimento dessas normas. Quanto ao nível de preparação, a realidade varia consoante os setores de atividade, mas diria que, genericamente, estamos no bom caminho.
Concorda com o conteúdo da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção (ENCC)?
O combate da corrupção tem sido feito, em Portugal, através da repressão ou punição dessas condutas. Na minha opinião, a legislação portuguesa contém os crimes e as molduras penais necessárias e adequadas para esse efeito.
Vejo, por isso, com bons olhos que o foco da ENCC seja o combate da corrupção através da imposição, aos principais agentes económicos, públicos e privados, de medidas preventivas, isto é, de medidas de compliance que visam evitar a prática de atos de corrupção e, principalmente, instituir uma cultura de transparência, ética e integridade no tecido empresarial português.
Trata-se de uma nova realidade, semelhante à que já se verifica na prevenção do branqueamento e do financiamento do terrorismo, e que tão bons resultados tem dado, à qual as empresas portuguesas vão ter de se adaptar rapidamente (a lei entra em vigor em junho de 2022), através da elaboração e implementação de normativos internos com procedimentos específicos destinados a evitar a prática de atos de corrupção e de outros crimes conexos.
É inegável que os processos judiciais, nomeadamente os de natureza criminal e contra-ordenacional, fazem parte da agenda mediática quotidiana, o que é sintomático da sua relevância na sociedade.
O que acha que faltou neste pacote?
Por se tratar de uma solução que defendo há bastante tempo e que considero ser não apenas justa mas também extremamente eficaz na prevenção da prática de crimes no contexto empresarial, destaco, pela positiva, a previsão específica de normas que permitem mitigar a responsabilidade penal das empresas pelos atos praticados pelos seus colaboradores quando aquelas demonstrem dispor de políticas e procedimentos de compliance suficientes e adequados para evitar a prática daquele ato criminoso em concreto. Lamento, contudo, que não se tenha ido mais longe, conforme estava inicialmente previsto na ENCC, isto é, que não se tenha chegado ao ponto de a responsabilidade criminal e contraordenacional das pessoas coletivas poder ser excluída naquelas circunstâncias, à semelhança das soluções que vigoram em Espanha e Itália, para citar apenas exemplos de países do espaço europeu.
Considera que Portugal está obcecado com a corrupção?
Considero que a atenção que Portugal tem dado à corrupção tem tanto de desejável quanto de necessário. A corrupção é um fenómeno global, com uma incidência relevante no nosso país, e tem um efeito muito negativo na economia e na sociedade, pelo que o seu combate deve ser uma prioridade da Política e da Justiça.
Agora, esse combate não pode ser feito a todo o custo, nomeadamente com atropelo das regras processuais, das exigências de prova, dos direitos de defesa dos arguidos e dos direitos fundamentais dos cidadãos, como infelizmente vemos suceder, não raras vezes, em vários processos criminais, em especial naqueles que merecem a atenção dos media.
Se fosse ministro da Justiça ou estivesse perante o futuro ministro da Justiça, o que elegeria como prioridade?
Vou referir três, todas no domínio penal. Primeiro, conferir caráter obrigatório aos prazos de duração máxima dos inquéritos criminais. Atualmente, tais prazos são considerados meramente indicativos, o que, em teoria, significa que os arguidos podem estar nessa qualidade eternamente, sem nunca serem confrontados com uma acusação; e, na prática, tem resultado em pessoas que são constituídas arguidas, são sujeitas a medidas de coação, veem o seu património ser totalmente apreendido no âmbito de inquéritos que se arrastam por 5, 6, 7 e, nalguns casos, mais de 10 anos, sem que seja sequer proferida uma acusação. Os prazos de duração máxima do inquérito até poderão ser aumentados, dentro da razoabilidade, mas têm de passar a ser obrigatórios. Se, depois de ter iniciado um processo, o Estado não consegue reunir provas suficientes para acusar dentro de um determinado prazo, o processo tem de ser arquivado. A confiança no sistema judicial e, acima de tudo, os direitos fundamentais dos cidadãos assim o impõem.
Segundo, redução do objeto da fase de instrução. Em muitos casos, a fase de instrução é transformada numa antecipação do julgamento, o que em nada serve os interesses e valores da justiça, nem os direitos dos arguidos. A meu ver, a instrução deve ter por objeto essencialmente questões de direito, substantivo e processual, maxime a violação de direitos de defesa dos arguidos, e porventura situações que configurem erros flagrantes na apreciação da prova.
Terceiro, a situação do TCIC tem também de ser uma prioridade. O recente aumento do número de juízes neste Tribunal é um primeiro passo, mas, na minha opinião, o mal tem de ser cortado pela raiz. A ideia pública que existe de um “juiz bom” e um “juiz mau”, ou de um juiz que é a favor do Ministério Público e outro que é contra, independentemente da justiça ou injustiça da mesma, bem como as notícias públicas da competição entre juízes pela titularidade de processos, têm consequências muito nefastas para a justiça penal e afetam, de forma intolerável, a confiança das pessoas nas decisões desses juízes de instrução.
E para a economia, qual será a primeira prioridade que o país necessita do próximo Governo?
Vou referir duas: aumento da produtividade e (muito) maior eficiência na gestão dos dinheiros e recursos públicos, em particular no SNS.
Nas últimas décadas, Portugal tem vivido sob a égide de um Estado com um enorme peso em todos os setores sociais e económicos, e sempre muito dependente do investimento público. Trata-se de uma constatação objetiva, desprovida de carga ideológica. Acho que está na altura de virar a página e de experimentar outro modelo socioeconómico. Do que Portugal precisa neste momento não é de mais infraestruturas, de mais recursos ou de mais dinheiro público injetado na economia e na sociedade. O Estado precisa de encolher, de reduzir drasticamente os seus gastos e, sobretudo, de ser mais eficiente na gestão do dinheiro dos portugueses e dos seus recursos. Este é o investimento público de que o país precisa agora. E com essa redução do Estado e a poupança inerente de dinheiros públicos, o Governo deverá tirar as pessoas e os agentes económicos do sufoco em que vivem há décadas, através de uma redução e de uma simplificação drásticas da carga e do sistema fiscal. Não vejo outra forma de Portugal aumentar rapidamente a sua produtividade, e parece-me que este deve ser o principal desígnio do próximo Governo em termos económicos, na medida em que, por um lado, os nossos índices de produtividade são dos mais baixos da União Europeia, e, por outro, é a única forma de aumentarmos o nível médio salarial – seria, aliás, desejável que o aumento dos salários fosse indexado a esse aumento da produtividade.
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“A atenção que Portugal tem dado à corrupção tem tanto de desejável quanto de necessário”, diz Duarte Santana Lopes
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