Joaquim Shearman de Macedo, sócio co-coordenador de Resolução de Litígios da PLMJ, fala dos desafios da ministra da Justiça, de megaprocessos e do que a justiça necessita para haver uma transformação.
Joaquim Shearman de Macedo, sócio co-coordenador de Resolução de Litígios da PLMJ, tem mais de 20 anos de experiência profissional, tem exercido a sua atividade nas áreas de contencioso civil e comercial e em arbitragem nacional e internacional.
Presta assessoria a clientes em diversos processos judiciais e arbitrais de complexidade e que envolvem múltiplas jurisdições. Possui experiência em litígios comerciais e societários, disputas entre acionistas, construção, seguros, responsabilidade civil contratual e extracontratual. Tem também acompanhado processos-crime relativos a ilícitos económicos e societários.
Pós-graduado em Arbitragem Interna e Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, é, desde 2019, Presidente do Conselho de Deontologia da Associação Portuguesa de Arbitragem e, desde 2017, vice-presidente do conselho executivo do centro de mediação e arbitragem Concórdia. É igualmente Vogal no Comité Directivo del Capítulo Portugués del Club Español e Iberoamericano del Arbitraje (CEIA). Iniciou a sua carreira na PLMJ em 1998, tendo regressado, em 2020, à sociedade após ter integrado a CMS Rui Pena & Arnaut durante dez anos.
Nesta entrevista à Advocatus, fala dos desafios da ministra da Justiça, de megaprocessos e do que a justiça necessita para haver uma verdadeira transformação.
A nova ministra herda uma justiça que é sistematicamente e há décadas criticada por quase sempre o mesmo: a morosidade. Como é que saímos daqui? É um problema exclusivamente da falta de meios?
A morosidade da justiça é um problema. É evidente que não existe um plano ou sequer uma ideia para o resolver quer dos partidos com representação parlamentar, quer dos organismos representativos das diversas profissões judiciárias. Ouvem-se sempre as mesmas propostas: mais funcionários, mais meios, mais digitalização, mais informalidade. Nem isso acontece, nem se acontecesse mudaria o paradigma. Ou seja, sendo claro, se se dessem mais meios e mais pessoal nada de substancial se alterava. Os processos continuariam a demorar anos a fio. Isto acontece porque o problema essencial está ligado à arquitetura processual. Ao desenho do processo. É completamente ineficiente. Isto não surpreende porque na verdade não mudou significativamente desde o século XIX. Continuamos submetidos a um conjunto de ritos processuais muito formais previstos para eras antigas, antes do copy paste, do processamento de texto e da interação virtual. Com múltiplas vias paralelas de reação e com a realização forçada de atos, mesmo se absolutamente irrelevantes para o objeto do processo. A mudança só pode acontecer se ocorrer uma alteração estrutural do processo. Isto vale para os processos civis, administrativos e mesmo para o processo-crime.
Mas também há um tema de agentes da justiça que estão desmoralizados… essa é, aliás, uma das frentes mais exigentes para a atual Ministra.
É preciso criar incentivos para o mérito. Inexistem incentivos destinados a premiar quem se destaca pela qualidade, quantidade e tempo médio das decisões e pela organização e eficiência dos seus processos. A criação de uma política de incentivos justa é imprescindível para a transformação necessária.
Faz agora um ano que vimos um conjunto de juízes, advogados e outros atores da justiça a pedirem mudanças numa coisa que devia ser simples: a dimensão das peças processuais e até a linguagem utilizada.
Isto seria algo que poderia ser facilmente implementado?
Esse, diria, é o primeiro problema. A extensão crescente das peças processuais. Petições, contestações, réplicas, alegações, decisões, sentenças e acusações com várias centenas e por vezes milhares de páginas. Recheadas de copy paste, de repetições, de sínteses de conclusões, de citações de páginas e páginas de livros, gravações, escutas e o que mais. É preciso limitar a extensão das peças processuais – como acontece em vários países e já sucede nas instruções para apresentação de peças no Tribunal de Justiça da União Europeia. 20 ou 30 páginas por exemplo. As citações e reproduções de doutrina ou de prova limitadas ao essencial e à referência feita ao local em que se encontram para serem consultadas. Eliminar as reiterações e repetições do que já se disse para se chegar a um documento que se quer escorreito e sobretudo eficaz.
É preciso criar incentivos para o mérito. Inexistem incentivos destinados a premiar quem se destaca pela qualidade, quantidade e tempo médio das decisões e pela organização e eficiência dos seus processos. A criação de uma política de incentivos justa é imprescindível para a transformação necessária.
Olhando ainda para o processo, onde é que vê outras mudanças com impacto rápido e visível?
É preciso olhar para o tema da prova. As quase ilimitadas possibilidades de incluir nova prova e nova argumentação ao longo do processo. Sem prejuízo de em processo-crime se deverem abrir exceções tendo em conta a gravidade das sanções que podem ser impostas aos condenados, não é admissível que se inicie um processo sem ter reunido prova bastante das alegações efetuadas. A apresentação de toda a prova tem de ser exigida desde o início do processo. Incluir nessa prova a submeter com a primeira peça processual não apenas todos os documentos relevantes, mas também videogramas de depoimentos das testemunhas. Atualmente não há desculpa para isso não ser possível com as capacidades dos computadores e telemóveis de uso comum. Isto significa que o primeiro contacto do juiz com o processo lhe permite ter a visão completa imediata do litígio. A prova documental e testemunhal de ambas as partes fica imediatamente disponível e entregue em suporte da peça processual onde as respetivas alegações são feitas.
Mas continua sempre a haver necessidade de audiências…
É óbvio que existirão questões de necessidade de confrontação de testemunhas ou de testemunhas com depoimentos, designadamente em casos de contradição. Mas as audiências de julgamento destinar-se-iam apenas a resolver esses casos. Tudo o resto já ficava provado. Ou seja, as audiências reduzir-se-iam de meses e semanas por processo a umas horas ou um par de dias.
O primeiro problema na Justiça é a extensão crescente das peças processuais. Petições, contestações, réplicas, alegações, decisões, sentenças e acusações com várias centenas e por vezes milhares de páginas. Recheadas de copy paste, de repetições, de sínteses de conclusões, de citações de páginas e páginas de livros, gravações, escutas e o que mais. É preciso limitar a extensão das peças processuais – como acontece em vários países e já sucede nas instruções para apresentação de peças no Tribunal de Justiça da União Europeia. 20 ou 30 páginas por exemplo.
Na pandemia vimos os tribunais a adaptarem-se extraordinariamente rápido à incorporação de tecnologia no processo, com audiências à distância, por exemplo. Voltámos a andar para trás?
Esse continua a ser um grande problema. Devíamos estar a evitar a realização de audiências presenciais, exceto nos casos de inquirição de testemunhas. Ou seja, com exceção da audiência de julgamento, a realização de diligências e audiências por meios telemáticos devia ser simplesmente obrigatória. Em processos de insolvência, por exemplo, isto seria extraordinariamente eficaz, pois não raras vezes se deslocam ao tribunal dezenas ou mesmo centenas de pessoas, normalmente credores ou trabalhadores, que nem sequer conseguem entrar na sala de audiência. Não seria melhor estarem todos a participar virtualmente? Pedindo a palavra dentro da plataforma e falando quando o juiz assim o determinasse e sem interrupções?
Os megaprocessos dos últimos anos foram decisivos para a má perceção do sistema de justiça por vários motivos, mas um dos principais é certamente o facto de se arrastarem décadas…
A justiça penal tem problemas muito específicos. A fase da instrução demora excessivamente e acaba por ser uma antecipação do julgamento, com inquirição de testemunhas, alegações orais, etc. Deve ser revista significativamente. Deveria passar a ser uma revisão da decisão de acusação por um juiz, sem produção de prova adicional. Outra coisa que faz muito pouco sentido é o facto da prescrição penal continuar a correr na pendência do processo, designadamente porque as suspensões do decurso do respetivo prazo terem limites máximos. Isso deve ser eliminado. Deve suspender-se efetivamente o decurso do prazo da prescrição penal a partir da acusação até a decisão final e definitiva para evitar a impunidade pela demora da justiça e consequente descrédito desta aos olhos dos cidadãos. Em sentido idêntico, deve pensar-se em limitar o efeito suspensivo do recurso das decisões condenatórias ao recurso da sentença de primeira instância, iniciando-se o cumprimento da pena após confirmação desta decisão pela relação (sem prejuízo de se manterem outros recursos, designadamente perante o tribunal constitucional). Criar regras processuais que desincentivem a criação de megaprocessos, facilitando a separação da investigação em diferentes processos que se consigam gerir mais facilmente. Como já referido acima em termos gerais, deve ainda ser limitada a extensão das acusações e sentenças que, nos processos ditos mediáticos, chegam aos milhares de páginas, recheadas de copy pastes de escutas, correspondência eletrónica, promoções, contestações, entre outras “repetições”.
Outra das causas da morosidade da Justiça é tudo o que fica em terra de ninguém, sempre que há uma reforma, seja qual for o âmbito. O que fazer aos processos pendentes antes de uma reforma entrar?
E muitos já duram há anos e anos. Tem de ser estabelecido um prazo máximo para a resolução de litígios, à semelhança das listas de espera dos hospitais, por exemplo três ou quatro anos, com a opção de qualquer das partes iniciar uma arbitragem ou um procedimento de resolução de litígios alternativo após esse período, para promover a eficiência e celeridade. Solução semelhante foi testada no caso da chamada arbitragem de medicamentos, quando se precisava que os genéricos pudessem ter uma via célere para resolver litígios com originadores, usualmente alegações de violação de patentes, e entrar no mercado permitindo poupanças significativas ao Estado e aos cidadãos que precisavam desses medicamentos. Esse mecanismo poderia funcionar com recurso a magistrados jubilados ou reformados e outros profissionais ou jurisconsultos (com garantia de seleção aleatória do juiz) e ser financiado através da alocação das custas processuais.
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“A criação de uma política de incentivos justa é imprescindível para a transformação na Justiça”, diz sócio da PLMJ
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