Em entrevista à Advocatus, Agostinho Pereira de Miranda conta como fundou a sua sociedade há mais de 30 anos por necessidade. Agora cessa funções no escritório, mas avisa que vai continuar "por aí".
Agostinho Pereira de Miranda, o homem do petróleo, fala à Advocatus de uma carreira que passa agora à fase da reforma. Porém, assume-se como “irreformável” e diz que vai “andar por aí”. Ambientalista, ciclista, fadista e, claro, advogado e sócio fundador da Miranda, admite que não foi fácil a saída de Rui Amendoeira. Critica ainda João Vieira de Almeida e admite que Angola está melhor politicamente, mas pior economicamente.
Olhando agora para como está a advocacia e comparando-a com a que se praticava há dez anos: os advogados dos grandes escritórios dedicaram-se demasiado a uma advocacia de negócios, onde só interessa a faturação e os números, e largaram o lado mais humano desta área?
Desde a crise do Lehman Brothers e depois em Portugal a crise da Troika, em 2011, o que se passou foi, num primeiro momento, uma retração no volume de trabalho — o que obviamente custou a solidariedade dos advogados, nomeadamente nas sociedades maiores, entre os sócios. Depois há um outro fator que é a pressão dos clientes, com eles obviamente também a procurarem maior rentabilidade para os seus negócios. E, como é costume, quem é que pagou a maior fatura? Não foram os sócios. Em algumas sociedades, as mais decentes diria, foram os sócios que admitiram ganhar menos um terço. Mas, na maioria das sociedades, não foi isso que se verificou. Quem paga a fatura são os associados. Porque, por alguma razão, nessas circunstâncias, as sociedades continuam a aumentar a sua rentabilidade.
Mas a advocacia hoje é um negócio?
Sou totalmente contra a ideia de que isto é um negócio. Um negócio, no meu tempo, era uma mercearia. Isto [a advocacia] não é um negócio, é uma profissão de interesse público, como há outras, como o jornalismo. Vocês procuram a verdade, nós procuramos a justiça. Vocês querem contribuir para a verdade, nós queremos contribuir para a justiça, que é uma outra forma de verdade. São duas disciplinas morais, profissionais, e com uma política que pertence à ciência moral, mas…
Esta é uma atividade em que, quando se tem 300 pessoas cujas remunerações têm de aparecer no fim do mês, tem de estar tudo organizado de uma forma empresarial. Não pode ser de outra maneira. Sem rentabilidade não vamos estar cá daqui a uns meses, se calhar… O que nós temos em Portugal é um défice de organização empresarial e um défice de gestão. Não há nada de errado nisso. O que é errado é pensar nisto como um negócio, que o objetivo último é a rentabilidade. Não pode ser… O objetivo último deve ser a boa advocacia, fazer uma contribuição significativa para a boa justiça.
E acha que isso se perdeu durante esses anos da crise?
Não digo que se tenha perdido, nem pouco mais ou menos. Digo é que houve uma erosão dessa lógica e estamos a um passo de ver uma subversão. Recentemente, li no Público que os caloiros de Direito nos Estados Unidos, quando lhes perguntavam qual era a razão de escolherem o curso, havia ali um certo idealismo. Eles respondiam: “queremos ir para direito para contribuir para uma sociedade mais justa” ou “queremos defender os mais vulneráveis”. Hoje só um terço diz isto, os outros dois dizem: “quero ganhar dinheiro, é uma profissão bem remunerada”. O que, aliás, não é verdade. Os advogados bem remunerados são uma ínfima parte da profissão, como vemos em Portugal. Nos Estados Unidos é a mesma coisa, os advogados de prática individual são praticamente metade: 48%, e não ganham nada bem.
Nós cá temos 1200 sociedades de advogados, mas a verdade é que a maior parte delas não são verdadeiras sociedades de advogados, são pessoas em prática isolada num escritório em que partilham despesas e em que, obviamente, fazem otimização fiscal. O que mudou foi esta ênfase na rentabilidade com, no meu entender, custos para a boa advocacia, custos para a boa administração na justiça e criando nas sociedades uma sensação de falta de controlo sobre o seu dia-a-dia profissional. Porque os associados, e isso aplica-se em particular aos millennials, percebem que uma parte do que fazem hoje — que passa por muito volume e pequeno valor acrescentado — vai-lhes ser retirado num prazo relativamente curto pelas máquinas, por um legal robot. Falo de inteligência artificial, inteligência aumentada, inteligência virtual…
Os associados são os próximos na lista?
Sim, os associados sabem que serão eles as próximas vítimas. Isto, não obstante, eu acreditar que há um limite para a inteligência virtual, que assenta em algoritmos, e que até ter os computadores de base quântica são binários. Há muita linguagem, seja ela analítica, seja ela de interesses complexos e contraditórios, que não é redutível aos instrumentos que se conhecem de IA. Os advogados de questões mais complexas nunca poderão ser substituídos.
Foi feito um estudo da Law Society que mostra que até 2030 a penetração da IA conduzirá a pouco mais de 3% de desemprego nos advogados. São coisas demasiadamente complexas para serem reduzidas a linguagem matemática. Portanto, nós o que temos que ter são organizações que favorecem o estudo, o desenvolvimento de competências, para que mais tarde aqueles advogados (designadamente os que trabalham muito em contencioso, que são a maioria deles) possam dar aos clientes as respostas que têm de ser soluções, a partir de situações que são muito difíceis de entender, de sintetizar, se não se tem uma cultura muito avançada. Se a pessoa está limitada aos canais portugueses, a não ler jornais, como o The Economist, é muito difícil no nosso mundo trabalhar com clientes internacionais ou até com os mais sofisticados portugueses, que têm uma vocação internacional.
Sou totalmente contra a ideia de que isto [a advocacia] é um negócio. Um negócio, no meu tempo, era uma mercearia. Não é um negócio, é uma profissão de interesse público.
Disse que se vai reformar este ano e que a partir de janeiro encarará uma nova fase na sua vida. O que é que vai mudar?
Não me vou reformar, eu sou irreformável. Vou é deixar de ter nesta sociedade qualquer função executiva e de direção. Mas sou sócio fundador, vitalício aliás, é o que dizem os elementos contratuais constitutivos da nossa sociedade, portanto, continuo em permanente contacto com os sócios e a encarregar-me de tarefas e projetos que os sócios entendam que são os melhores para a minha limitada energia e para os meus conhecimentos residuais.
Para mim, [deixar as funções] é um exercício moral, primeiro, porque os mais novos têm direito a ser tudo aquilo que eu fui nesta sociedade. Tenho que lhes deixar a possibilidade de exercerem todo o seu potencial, essa é a minha função. Espero, aqui, na sociedade que avancemos para a criação de um centro de conhecimento. Aproveitar os 30 anos de lusofonia, que temos quase standardizada, e partilhá-las não só com os escritórios da Miranda Alliance, mas com instituições. Temos aqui, chamemos-lhe, um centro de conhecimento Miranda, podemos ir a uma universidade na Guiné-Bissau e dizemos “quando vos aparece um investidor estrangeiro há cinco coisas que vocês têm de saber”. Gostava de que este fosse o projeto que os meus sócios me venham a confiar.
Portanto, vai continuar “a andar por aí”, só deixa as funções diárias no escritório.
Exatamente. Vou ter um controlo muito maior sobre o meu tempo, não tão obrigado a cumprir horários. É o que me vai permitir fazer a volta a Portugal em bicicleta, que já está programada!
É a sua veia de ciclista a “falar mais alto”…
Vou levar dois meses, se calhar, mas vou fazê-lo! (risos)
Está no topo da sua lista de coisas a fazer, assim que deixar o escritório?
Absolutamente, é o topo da lista: volta a Portugal em bicicleta.
E outras prioridades para si? A música será uma, suponho.
A música, sim. Vou gravar um disco, neste caso é de fado. Já tenho título, “Fado de Lei”, com originais. Uma das coisas que eu descobri, recentemente, é que também posso ser letrista e ganhar algum dinheiro com isso. Então agora virei letrista, eu que sempre gostei de poesia…!
E quando é que o seu disco estará disponível?
Bom, a ideia é oferecê-lo aos meus amigos já este natal.
Agora em relação à Miranda: o Agostinho fez esta sociedade de raiz. Como é que nasceu a ideia de criar este escritório de advogados? Com quem, exatamente?
Quando vim dos Estados Unidos, todo o dinheiro que tinha foi para comprar uma casa a pronto porque eu não gosto de estar a dever ao banco. Portanto, fiquei sem dinheiro praticamente nenhum e, nessa medida, tornei-me subarrendatário de quatro colegas. Foi assim, eu sozinho e a que ainda hoje é minha secretária, Maria, repartida com mais dois colegas. Comecei no dia 2 de novembro de 1987. Obviamente, trabalhei muito e as coisas correram-me bem. Dali a menos de um ano já tinha uma colaboradora, a Rita Correia, que ainda hoje está connosco e é uma pessoa central para a Miranda.
Os seus colegas eram o Dr. Benjamim…
Sim, os que agora fazem a ABBC, em cujo escritório eu, ao longo de 14 anos, desenvolvi o meu próprio grupo, a minha equipa, que chegou a cerca de 25 pessoas — e foi aí que saímos. Demorei 14 anos a reunir essas 25 pessoas, saímos para um escritório e foi nesse escritório que passámos de 25 a cento e tal. Hoje somos 189.
Mas fi-lo por necessidade. Gostava muito de dizer que tive uma revelação, que um dia quereria liderar a maior sociedade de advogados portuguesa no plano internacional, com presença internacional. Não, não é verdade. Eu simplesmente não tinha as credenciais para trabalhar num [grande] escritório. E não foi por falta de tentativa, mas não tinha, seja por linhagem, que obviamente eu não tenho, seja pela ausência de outras competências sociais, mas ninguém me convidou para me juntar à então António Maria Pereira, depois PLMJ, ou à Morais Leitão… Portugal é como é, e nesse tempo, há 31 anos, para se chegar a essas sociedades isso era necessário.
Contrariamente ao que as pessoas pensam, eu não sou de todo um arrependido de ter colaborado com a indústria petrolífera… Nada disso.
Tinha de se ter um apelido, é isso?
Sim, linhagem. E estrato social, é disso que se trata.
Era uma profissão muito elitista, hoje em dia ainda é…
… Bom, já lá vamos! A minha ideia, até por ter crescido em África e por ter vivido durante seis anos nos Estados Unidos, era que seria possível construir uma sociedade de advogados baseado no mérito e recrutando as pessoas, como eu na altura dizia, num eixo Vila Franca-Montijo. Na verdade, recrutei os meus sócios através de anúncios no jornal, como eu fui recrutado para os Estados Unidos através de um anúncio no Expresso.
Recrutei esses advogados… Alguns foram meus estagiários. Mas não deixei de recrutar pessoas de elite social portuguesa. Estão aqui e basta olhar para os nomes, elas estão cá. Se eu tive algum mérito foi não me deixar ficar preso a um complexo de classe ou a um complexo de género. Agora é preciso dar voz, e era preciso (e eu fiz muito bem, como se viu pelos resultados), àqueles que ainda não tinham voz na advocacia de elite. Se algum mérito um dia me for reconhecido por alguém imparcial, será esse. Bem como o de ter formado várias pessoas — designadamente muitos advogados — na gestão das empresas petrolíferas em Angola, dos bancos em Moçambique…
Qual é para si a sua característica pessoal e profissional que o levou a chegar onde chegou? É sabido que é uma pessoa exigente e atenta ao pormenor.
Sim, é verdade, tenho essa fama. Totalmente justificada! Mas diria que é a tenacidade, o facto de nunca ter desistido. Eu não sou especialmente dotado em nada, mas nunca desisto.
É muito exigente consigo próprio também, não só com os outros.
Sou. Tenho de ser exigente comigo porque sou exigente com as outras pessoas. Esforço, esforço, estudo, estudo… E empatia. Capacidade de ouvir as pessoas e simpatizar com o drama com que estão a viver. Muito cedo eu próprio fui confrontado com o drama, a tragédia. Se sou advogado hoje é porque aos nove anos estive, pela primeira vez, num tribunal. E, portanto, sei que aprendi muito cedo que todos nós temos alguma coisa de nobre e de ignóbil.
Mas porque é que aos nove anos esteve no tribunal?
Prefiro não descrever as circunstâncias, há de vir o tempo certo para o fazer.
Foi cá em Portugal?
Não, foi em Angola. Prefiro não descrever, porque não se ganha muito com a descrição dos pormenores, mas foi uma experiência que me marcou profundamente. Foi por isso que decidi ser advogado logo com essa idade, aos nove anos.
Lembra-se desse momento, de ter essa perceção com essa idade?
Absolutamente. Desde logo porque fui tratado de forma fantástica pelo juiz, que era pai de uma amiga minha e, enfim, adorei aquilo, aquele aparato todo. Depois de um drama que eu tinha vivido, estar no tribunal, em que eu era o centro das atenções… Aquilo venceu-me, completamente. Foi ali que começou a minha redenção, foi naquele tribunal. Era necessário contextualizar toda a situação e uma entrevista não dá para o fazer.
Mas esta ideia de que a natureza humana não é redutível a preto e branco, obviamente os limites são a dignidade de cada um e a moral… Não quero ser demasiadamente filosófico, mas eu consigo trabalhar com toda a gente exceto com pessoas que não se respeitam a si próprias. Para mim, o mais admirável num profissional é a sua entrega ao que está a fazer, não pelo trabalho, mas pela paixão pela coisa bem feita. Felizmente, tenho encontrado isso em muitos profissionais. Não falo em amar o trabalho, mas sim em amar o trabalho bem feito. Porque o trabalho é a melhor maneira de comunicarmos com o outro, de colaborarmos. Se hoje temos a civilização que temos foi porque o instinto de cooperação, comunicação, de colaboração venceu o outro instinto do egoísmo, do prazer imediato. Na nossa sociedade a sobrevivência e a sua relevância é a primeira das necessidades para 10% da humanidade. Para os outros a primeira pulsão é a obtenção de uma vantagem, com um custo para o outro. E isso, como nós temos visto pelos fenómenos populistas que se estão a abater sobre nós, conduz à vitória, como diz um filósofo de que gosto, da entropia. À vitória das forças da dissolução, à vitória da desordem.
O mundo vai melhorando, mas o que acontece é que é uma melhoria totalmente assimétrica. Isso gera ressentimento, humilhação, ódio, guerras… E o que é fazem as pessoas assustadas? Pensam «deem-me um líder».
Fala de exemplos políticos como o que se passa agora no Brasil? E calculo que também sobre Trump, de um país que conhece tão bem…
Sim. Nós subestimamos muito o poder brutal do ódio. O ódio não nasce connosco, resulta da humilhação e de um profundo sentimento de injustiça. Ao longo da história da humanidade morreram muito mais pessoas, muito mais foram vítimas de alguém que se sentiu injustiçado do que alguém que quer a propriedade deles. Este banco de ódio que está a ser utilizado por Trump e Bolsonaro tem razões objetivas e as razões são fundamentalmente no Brasil a fome, na Europa a desigualdade…
A fuga mais fácil em tudo o que é humano, — porque nós temos o mesmo cérebro, ou pelo menos parte do mesmo, do anterior ao homo sapiens, ao homo habilis, ao homo erectus — a tendência é a fuga para o grupo. A tribo, a religião, a nação… Não há salvação possível com soluções em que vamos destruir o outro. Os grandes responsáveis de tudo isto não são os ditos “Bolsonaros”, não. São quem viu, como aconteceu em meados do século XIX, o progresso que se estava a fazer, e que hoje se chama globalização, e não cuidou minimamente em criar estrutura jurídica em que ela se pudesse desenvolver. Em que não fosse, digamos, capturada pelos grandes grupos económicos e pelos grandes líderes de pulsão totalitária, que já lá estavam. Nós tivemos muito tempo, depois do Ieltsin e do Putin, para criar travões a esse avanço do autoritarismo e do ódio pelo outro. Mas não fizemos nada.
O que é que nós fizemos? Foi dizer que os mercados tinham sempre razão, já começámos um bocadinho atrás com as teses da senhora Thatcher e do Reagan, que o que disseram foi “deixem os mercados funcionar”. Isto levou à financeirização de toda a atividade económica.
O mundo não está pior em termos de indicadores sociais, tem melhorado quase continuamente, quase todos os anos: redução da pobreza, aumento da rede mundial sanitária… O mundo tem melhorado. Só no século XX morreram 200 milhões de pessoas não pela guerra, mas pela varíola. O mundo vai melhorando, mas o que acontece é que é uma melhoria totalmente assimétrica, em que 10% da população tem 90% da riqueza e 1% tem mais do que o orçamento de 12 estados. Isso gera ressentimento, humilhação, ódio, guerras… E, pronto, aí está. O que é fazem as pessoas assustadas? Pensam “deem-me um líder”.
Como concilia a sua veia de ambientalista com o facto de ter sido, ao longo da sua carreira, advogado do petróleo?
Sim… Não sou a melhor pessoa para fazer a defesa desse comportamento que pode parecer disfuncional, contraditório. Contrariamente ao que as pessoas pensam, eu não sou de todo um arrependido de ter colaborado com a indústria petrolífera… Nada disso. O que aos meus olhos, e aos da minha consciência, justificam essa aparente contradição — e eu tenho respeito por quem acha isso contraditório — é que, aparentemente, quem luta por causas ambientais acredita na minha sinceridade. Deve ser por isso que sou nada menos do que presidente da assembleia geral da confederação das associações de defesa do ambiente. São 240 associações e que não me veem ali como um vigarista. Para mim, que não sou nada afeto nem à esquerda nem à direita, o que me interessa são soluções que melhorem a vida das pessoas. Soluções que potenciem o bem-estar. É aí que está o futuro da civilização, e eu sei que a descarbonização vai melhorar e, portanto, em última análise, vai existir uma melhor eletrificação.
O carvão há muito que devia estar completamente fora do mix energético e não está, o petróleo vai estar, inevitavelmente, até o gás natural estará um dia. Progredirmos em termos civilizacionais é passar de um mix energético de matriz fóssil, 81% em todo o mundo, para outras formas de energia. Isso é que será a verdadeira transformação energética. Nós estamos numa transição light, mas vamos precisar de uma transformação e, até, provavelmente, precisar de uma transmutação de fusão nuclear, seja o que for. Uma coisa é certa: a solução não é ideológica, a solução é tecnológica. Favorecida pela regulamentação dos governos e o favorecimento de formas alternativas de energia.
Concluindo, não tenho nenhuma má consciência, não vejo que seja contraditório, mas sou muito humilde relativamente aos juízos de valor que foram feitos nesse domínio. Aceito-os e estou disponível para os ouvir.
Falando de Angola, que é um país que lhe diz muito, como é que avalia a transição do poder no país? Mesmo em relação às relações que tem com Portugal.
Angola está numa boa fase política, numa péssima fase económica, financeira e até social. Os problemas agravaram-se neste último ano e o presidente João Lourenço tem dado nota disso mesmo. Todavia, a solução para todas essas questões económicas, financeiras e sociais é política. Claramente este novo poder, com muita dificuldade, está a conseguir dar passos muito seguros no sentido de estado de direito, em primeiro lugar, designadamente em restabelecer as liberdades de reunião, de associação, de informação. Depois, com o processo de desnacionalização, todas aquelas políticas em que primeiro tinha de se ser parceiro angolano e se fosse português, não podia, estão a ser “paulatinamente”, postas de lado, o que é muito bom. Abre um enorme espaço para a cooperação e até a penetração de empresas e outros protagonistas portugueses lá.
Depois, há um outro claríssimo indício de melhoria, e designadamente de promessa de melhoria até naqueles campos económico e financeiro, que é o processo de ampla abertura ao investimento estrangeiro. Angola precisa de que agentes internacionais ajudem o país nesta fase a criar uma infraestrutura produtiva que o país não tem, já que, por exemplo, Angola importa anualmente o equivalente a três mil milhões de dólares de produtos alimentares, isto é dez vezes o que importa a Nigéria, sendo que a Nigéria tem uma população seis vezes superior.
Qual é a solução?
A solução que, aparentemente, Angola encontrou com os parceiros mundiais é uma combinação de grandes empresas internacionais, designadamente multinacionais, e PME como em Portugal, que irão fazer um trabalho complementar dessas grandes empresas. Acho isto uma fórmula ganhadora e estou particularmente entusiasmado com a ideia que foi expressa pelo ministro de Estado, Manuel Nuno Júnior, quando esteve lá o primeiro-ministro António Costa, que Angola quer ser um exemplo para África e tem o sonho de ao menos em certos domínios ser um exemplo para o mundo.
Pode-nos parecer poético, mas é uma grande força. O que eu vi das pessoas mais humildes desde empregados de hotel até motoristas de táxi é que a vida não está boa, isto é, nós temos grandes dificuldades, mas estamos a viver bem.
Foi essa a perceção com que ficou da última vez que viajou lá?
Sim. Há uma adesão muito grande ao poder instituído.
Uma motivação, até…
É aquela coisa da missão, de as pessoas perceberem que estão a sofrer e eu acho que vai para melhor, sem dúvida nenhuma. Aquela lengalenga do costume de que Angola é muito rica… Neste momento, e dentro de poucas semanas, vai ser anunciado por Angola, só para dar um exemplo, o maior projeto de energia renovável de África austral. Isto são resultados e cria muito emprego. Estamos à espera desse anúncio.
Voltando só ao mercado da advocacia. Há três anos e meio a Miranda perdeu um considerável número de advogados, liderados por Rui Amendoeira, que vinha consigo desde o início da carreira dele. O Agostinho é um homem rancoroso?
Bem, não sou rancoroso e não é por virtude. Raramente cultivo a virtude pela virtude, tem de haver uma razão para eu cultivar uma virtude. Não sou rancoroso porque acho que o rancor é aquela coisa de criar um veneno e depois bebê-lo.
Mas como é que resolveu essa questão consigo? Acredito que não tenha sido fácil…
Não, nunca é fácil, mas, primeiro, essa situação não foi o choque que algumas pessoas pensam. Gosto de dizer que muitas vezes o futuro, especialmente os problemas do futuro, existem no presente. É preciso procurá-los. É preciso pôr aquelas pedras de lado e espreitar lá e, portanto, não me surpreendeu de maneira dramática o que aconteceu, e uma coisa é certa: a equipa estava preparada e eu tive de liderar o esforço, digamos, de recomposição, que passou por encontrar um novo talento, recrutá-lo e dar mais oportunidades de ascensão a outras pessoas, a advogados mais jovens. Daí que agora tenhamos no próprio conselho de administração millennials, pessoas nascidas depois de 1980. Portanto, desse ponto de vista, rancor não. Nenhum.
Mas Rui Amendoeira já não é sócio da VdA…
Bom, há pessoas agregadoras — eu gosto de pensar que sou uma delas — e há outras que têm essa capacidade de fazer explodir as situações, talvez por serem demasiado poderosos, não sei, ou terem a mecha muito curta, mas não posso dizer muito mais do que isso sobre os sócios que deixaram a Miranda.
Acha que a Vieira de Almeida é capaz de ser um sítio menos agradável para se trabalhar do que a Miranda?
Recentemente, o João Vieira de Almeida fez umas declarações que eu, aliás, acho que, enfim… Tenho um grande sentido de humor, e aquela ideia de dizer aos seus sócios de que só quando houvesse uma cisão com a Miranda é que iriam cumprir o seu plano estratégico… Atribui aquilo ao seu sentido de humor. Enfim, é difícil levar a sério um sentido estratégico dessa natureza.
Está-se a referir ao facto de João Vieira de Almeida ter dito que só com uma cisão na Miranda eles conseguiriam uma expansão internacional?
Sim, sim. Eu achei que um dito… Não atribui grande importância. Depois houve também uma referência a um processo de negociação com vista a uma fusão, sobre isso também não tenho nada a dizer. Sou de um tempo — o mesmo de Vasco Vieira de Almeida, que conheço desde 1975 — em que certas coisas não se discutem em público. A confidencialidade contratualizada é um valor muito importante da advocacia. Nós não falamos dos negócios dos nossos clientes e, por maioria de razão, não falamos das negociações entre escritórios.
Mas, enfim, são métodos… Não são os meus. Eu tenho muito respeito pelos meus concorrentes, mesmo muito. São eles que me fazem levantar todos os dias para fazer alguma coisa melhor do que eles fazem. Não tenho a tendência para diminuí-los, seja de que forma for. Nós somos o maior, o mais sólido, o mais antigo projeto internacional. Esse projeto, no que significa para a advocacia portuguesa, é muito mobilizador para muitos advogados, e será para todos os que trabalham cá. Temos valores e cultura, que serão um pouco diferentes de outros, com menor ênfase no resultado, mas são os que nós achamos adequados para o projeto.
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Agostinho Pereira de Miranda: “para chegar às grandes sociedades de advogados tinha de se ter apelido ou linhagem”
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