João Graça Gomes, que se tem dedicado à inovação na energia entre a Europa e a China, fala das pontes entre os dois blocos e das ameaças que vê à reindustrialização da Europa e à cadeia das baterias.
João Graça Gomes tem dedicado a sua carreira à inovação no mundo da energia. Trabalhou como engenheiro sénior de Inovação e Desenvolvimento no Instituto de Investigação e Design de Xangai (SIDRI, na sigla em inglês) e no Centro Sino-Português para as Novas Tecnologias de Energia (SCNET, na sigla em inglês), uma joint-venture entre a China Three Gorges Corporation e EDP, estando agora a fazer um doutoramento no Imperial College, em Londres.
Em entrevista ao ECO/Capital Verde, considera que, no que diz respeito à cooperação entre a Europa e a China, estes blocos estão bem posicionados para se juntarem numa espécie de “coliderança global das renováveis”, tirando partido das economias de escala da China e do desenvolvimento da Europa em termos de mercado elétrico. Sobre a recente fricção entre Bruxelas e Pequim, em torno da aplicação de taxas sobre a importação de veículos elétricos chineses, João Graça Gomes afirma defender o mercado livre e a concorrência, mas acredita que deve haver uma pressão europeia para também haver mais fairplay na China, na venda dos produtos e serviços europeus.
João Graça Gomes acredita que “estamos a correr sérios riscos” de que a cadeia de valor das baterias não se chegue a desenvolver na Europa, e alerta que é importante assegurar que a refinação do lítio que será extraído em Portugal seja feita no país.
Em paralelo, tendo em conta o desenvolvimento tecnológico, acredita que uma eventual perda de importância do lítio não será uma preocupação. No entanto, sublinha que, além das novas baterias, Portugal não deve deixar para trás o investimento no armazenamento através de bombagem, nas centrais hídricas.
De que forma podemos avançar mais rápido no desenvolvimento de tecnologia e criação de patentes?
É uma questão sobre a qual tem havido reflexão dentro das empresas. Quando falamos de um departamento de investigação e desenvolvimento – quer seja uma universidade, quer seja uma entidade privada – geralmente, se nós desenvolvemos dentro daquela instituição algo inovador, a patente fica associada à instituição.
Por isso podemos questionar qual é o incentivo que há para quem desenvolve, se a patente fica para a instituição. Nessa linha, pelo menos na China, havia incentivos monetários para quem desenvolvesse a patente. Ou seja, as patentes, por vezes ficavam como propriedade da empresa, uma vez que foram desenvolvidos na empresa, mas no documento fica o nome de quem é que desenvolveu a patente e, mais importante, a pessoa recebe um incentivo, um determinado valor por cada patente publicada.
Isto é uma forma de incentivar a publicar ou produzir conteúdo científico, mas ao mesmo tempo assegurar alguma autoria sobre aquilo que é desenvolvido.
Mas quando se tenta juntar as duas realidades [europeia e chinesa] e partilhar conhecimento, como é que as empresas podem colaborar e estar protegidas, ao mesmo tempo, em relação à propriedade intelectual?
Tem que haver aqui algum pragmatismo e tem que haver sempre acordos legais fortes entre as entidades. Tem que haver também uma análise das instituições para perceber o historial na troca e partilha de informações. E depois também quando queremos cooperar com um país tem que haver também um desenvolvimento de relações.
Não podemos ir logo para o desenvolvimento de uma tecnologia específica. Temos que criar primeiro um historial de confiança, começando com artigos científicos… e aí então avançar para projetos de mais larga escala.
Era importante haver mais cooperação?
Sim. Devia haver uma cultura de mais cooperação, de mais abertura para mais programas de intercâmbio em que nós fôssemos exatamente à China ver o que é que está a ser feito e perceber o que é que daqui pode ser adaptado à nossa realidade.
Temos assistido a um movimento de reindustrialização da Europa. Sobretudo no que diz respeito às tecnologias renováveis, tem havido esse esforço, e isso também vem em resposta ao grande crescimento da China nestes mercados. Como é que vê estas intenções da Europa de reindustrializar, sobretudo nas renováveis? E que benefícios e falhas encontra nesta tentativa de reindustrializar o Velho Continente?
A reindustrialização da Europa é essencial. É verdade que a Europa, nas últimas duas décadas, se calhar se focou mais no setor dos serviços. Houve países que se focaram muito no turismo, mas agora começa-se a perceber que nós não podemos fazer outsourcing industrial, não podemos mandar as nossas fábricas para a Ásia porque, tal como aconteceu na altura da Covid-19, provou-se que não podemos ter a nossa cadeia de fornecimento totalmente dependente de outros países.
Mas a Europa tem um setor que tem tido alguns pontos positivos e que podem ser inspiradores nesta política de desenvolvimento industrial: nas eólicas, nós temos quatro das dez maiores empresas de turbinas, a Vestas, Siemens, Enercon, Nordex. No entanto, a concorrência é intensa e a China está a investir bastante em eólicas. Por isso até aqui temos de ser cautelosos.
Mais cautelosos significa o quê, mais exatamente?
Mais ambiciosos.
Isso significa apoiar de alguma forma estas indústrias?
O maior apoio que se pode dar a estas indústrias é mesmo uma maior flexibilização legal, ou seja, menos regulamentos. No setor eólico, nós temos quatro das dez maiores empresas. No nuclear, temos a EDF, que é muito forte na França e é uma grande empresa estatal. Mas, no entanto, quando olhamos para o setor fotovoltaico, vemos que praticamente não tem expressão.
A Europa deixou morrer o setor fotovoltaico e a China consolidou a sua liderança. Por isso é que nós temos de dar flexibilização legal. Temos o caso de Portugal, que quer desenvolver o seu lítio, tem grandes reservas de lítio, mas já começam a haver conflitos entre as medidas do Governo e também a opinião e os governos locais. Nós temos de tornar isto muito mais flexível. Encontrar aqui o meio-termo de flexibilização que permita um desenvolvimento.
Em paralelo com este movimento de reindustrialização, a Comissão Europeia impôs sanções à China na importação de carros elétricos. Como vê esta iniciativa também? Já se sentem consequências, por exemplo, a nível do trabalho de investigação que está a ser desenvolvido nesta indústria?
Os carros elétricos chineses são produtos muito mais baratos do que os produtos europeus, mas com o mesmo nível de qualidade. Como consumidor, se há um produto que é mais barato e tem a mesma qualidade, vou preferi-lo. Como consumidor, vejo por bem que os carros elétricos chineses apareçam na Europa. Sou um defensor do mercado livre e da concorrência. Vai ser num período inicial difícil para a indústria automóvel europeia.
Por outro lado, numa visão mais abrangente, a verdade é que a Europa não tem tantos setores chave que sejam conhecidos mundialmente e o setor automóvel é um deles. A Europa tem produção automóvel com qualidade e nós temos de produzir a nossa indústria. Mas sendo eu da área da inovação e tecnologia, acho que o melhor é sempre a competição.
O argumento da Comissão Europeia é que a concorrência não está equilibrada a partir do momento que existe uma subsidiação elevada na China.
E há uma subsidiação forte na China. A maioria das empresas são estatais, é o modelo económico. A verdade é que há empresas como a BYD que agora, recentemente, já começaram a querer passar este custo adicional para a sua cadeia de fornecimento. Provavelmente a China vai passar este custo adicional, se calhar para o pequeno consumidor chinês ou pequeno industrial chinês, e o carro depois chega à Europa com a taxa de vinte e tal por cento e o preço continua igual. Há uma tese de que a China pode estar a tentar isso.
Por outro lado, é muito mais fácil uma empresa chinesa abrir uma subsidiária na Europa, na União Europeia, do que uma empresa da União Europeia abrir uma subsidiária na China, sendo 100% autónoma. É quase impossível. Eu acho que esta é que é a questão principal.
Não é tanto a questão de taxas, é chegar a um acordo na China. Se nós temos um mercado livre, que permite a livre circulação de bens e serviços, nós temos que exigir o mesmo da China, porque na China, se eu quiser montar uma empresa, vou enfrentar tremendos regulamentos.
Nesse caso não serve da mesma maneira a reindustrialização da Europa, certo?
Acho que é importante reindustrializar na Europa. Porém, se há a empresa A, europeia, que quer vender turbinas eólicas na China, deve ser tratada exatamente da mesma forma que as empresas chinesas. Deve haver uma pressão europeia para também haver mais fairplay na China, na venda dos nossos produtos e serviços.
É importante que o [desenho] do mercado [elétrico] seja revisto. E há grande investigação a ser feita nessa linha, na Europa. É um ponto que a Europa continua no topo mundial.
Com este tipo de iniciativas por parte da Europa, de aplicação de taxas à China, a que soma agora a reeleição de Donald Trump com historial de guerra comercial com a China. Que papel espera que cada um destes blocos assuma na transição energética?
A China e a Europa estão bem posicionadas para fazer quase uma coliderança global das renováveis. A Europa [pode liderar] nas políticas, no mercado elétrico – em termos de mercado elétrico estamos muito mais avançados do que a China –, e em termos de ligação com a opinião pública, envolvimento dos stakeholders e instituições mais robustas. A China, pelas suas economias de escala.
E temos de ter mais cooperação. Temos de ter empresas europeias a ir à China, termos empresas chinesas a vir cá, temos de ter especialistas europeus a ir à China e vice-versa. E temos de ser pragmáticos: é aproveitar estes preços mais baixos da tecnologia na China e desenvolver na Europa.
Com os Estados Unidos vai ser um tema mais difícil. Mas os Estados Unidos, apesar de governamentalmente terem um discurso mais “anti-renovável“, a verdade é que continuam a investir.
O que entende aqui por mercado elétrico?
O design do mercado elétrico, a forma como os preços são estabelecidos no mercado elétrico. A Europa tem um mercado elétrico muito otimizado. Na China, o mercado elétrico é estabelecido pelo governo, logo há uma grande incerteza de como é que ele é estabelecido.
Na Europa é muito mais transparente e temos bons investigadores que continuam a estudar como o otimizar de forma a assumir que os preços do mercado de eletricidade traduzem exatamente o custo das redes, o custo de implementação e custo de produção.
Mas parece-lhe que o mercado elétrico faz sentido da maneira que está desenhado ou que realmente deveria haver aqui uma evolução?
O mercado elétrico é um mercado marginalista, que foi desenvolvido quando as renováveis eram uma minoria. A maioria eram grandes centrais a carvão, a gás natural e hídricas. Quando as renováveis vão ao mercado, vão a preço zero porque o vento e o sol não têm custo. Enquanto as renováveis são uma minoria isto funciona bem.
Mas quando as renováveis são a maioria, vamos ter horas em que o [preço de] mercado é zero. Se é zero, como é que depois vamos pagar aos produtores? Como é que vamos pagar as redes, como é que vamos fazer que haja aqui um incentivo… Porque nós queremos é que também haja mais renováveis.
Mas se queremos que haja mais renováveis mas são pagas a custo zero no mercado… Então, é importante que o mercado seja revisto. E há grande investigação a ser feita nessa linha, na Europa. É um ponto que a Europa continua no topo mundial.
Temos de assegurar que a refinação é feita em Portugal.
Temos tido aqui alguns alarmes em relação aos problemas financeiros da Northvolt. Aqui em Portugal também houve o cancelamento de uma refinaria de lítio da Galp em parceria com a Northvolt. Considera que há futuro para esta cadeia de valor na Europa ou estamos a correr sérios riscos de ela não se desenvolver?
Estamos a correr sérios riscos. Pegando no exemplo do hidrogénio. Em 2021, a União Europeia era o bloco económico com maiores projetos anunciados, já com planos nacionais de hidrogénio. Tudo previa que o hidrogénio iria ser um setor chave europeu e que a Europa estava na dianteira. Entre 2021 e 2024, China, Austrália e Estados Unidos aceleraram bastante a implementação do hidrogénio.
Quando olhamos para o lítio e falamos nestas refinarias, temos de ser cautelosos. Por um lado, não queremos que Portugal tenha uma economia quase como acontece com os países africanos, em que temos as reservas, elas são exploradas e depois não são refinadas em Portugal, e o grande valor económico acrescentado vai para a economia externas.
Temos de assegurar que a refinação é feita em Portugal. Apesar de dizer que sou um liberal económico, acho que faz sentido haver algum apoio estatal. Acho que não há receio de criar entidades governamentais, empresas estatais, para auxiliar esta tecnologia. Não há que ter receio de criar entidades estatais que possam fazer uma parceria público privada. Tem que haver mais projetos.
E nos setores chave faz sentido haver uma participação estatal. Seja no lítio, seja na exploração de gás… Faz sentido que haver aqui um Estado que toma uma posição e cria uma visão geoestratégica para o futuro do país.
Quando diz que o Estado deve estar bastante presente em indústrias como a do lítio, está a falar numa presença em termos de apoios ou em termos mesmo de fazer parte das empresas, como acionista?
Fazer parte. Desde que tenhamos instituições que sejam meritocráticas, que quem está a liderar as instituições tenha competência técnica para as liderar, não há qualquer mal de ser o Estado um dos acionistas da empresa. Quando são setores chave, como é o caso da energia, o Estado deve estar presente, na minha opinião.
Isso vai em contraciclo com aquilo que aconteceu, por exemplo, com a EDP.
Na EDP não vejo mal, porque a maioria do negócio da EDP é produção e comercialização. Honestamente, na REN já tenho uma visão diferente, porque a REN é um operador do sistema de transmissão. O sistema de transmissão deve trabalhar de forma muito coordenada com o planeamento energético nacional.
Logo, ter uma empresa estrangeira ou uma empresa privada a decidir quais é que vão ser os pontos de conexão e quais são os investimentos é controverso. Na EDP, aliás, [a privatização] penso que trouxe alguma otimização à empresa. Mas quando estamos a falar de setores estratégicos, o Estado deve estar presente. Falando da distribuição, EDP Distribuição faz sentido, quando falamos na transmissão, REN faz sentido… Temos que ver muito setor a setor.
Ainda no tema das baterias. Que tecnologia existe no âmbito das baterias elétricas que considere mais promissoras, de momento?
É uma tecnologia emergente. As baterias de iões de lítio são as mais utilizadas. Temos que ver que Portugal tem hidroelétrica com bombagem, o que faz o mesmo papel que uma bateria, quase como se fosse uma bateria de larga escala. Por isso Portugal deve continuar a investir no armazenamento por bombagem. É uma tecnologia mais convencional e com valor. Por isso, antes de ir para baterias, primeiro investir no armazenamento por bombagem de água.
Portugal deve continuar a investir no armazenamento por bombagem.
Não há então o risco de estarmos a apostar no desenvolvimento das baterias de lítio, estarmos a minerar em Portugal também, e no final de contas as baterias sódio fazerem com que não seja um bom investimento?
O lítio vai continuar a ser importante nas próximas décadas. Percebo a questão: será que faz sentido investir numa tecnologia que daqui a cinco anos já não é utilizada? Mas a tendência global diz que não vamos ter essa preocupação.
Dentro das tecnologias que acompanha, que vão desde o armazenamento ao eólico offshore, quais destacaria por serem mais promissoras neste momento? As tecnologias a estar atento, por terem um grande potencial?
Não há aqui uma tecnologia chave. Eu acho que nós temos é que ter um misto de tecnologias. Nós temos que investir tanto em eólica, como em solar, como em hídrica, armazenamento de baterias… Além disso, Portugal tinha a ideia de criar uma interligação com Marrocos. Esse tema morreu. Nunca mais foi falado na opinião pública e eu acho que é essencial.
Por isso diria: temos de ter um misto de produção robusto, mas não podemos esquecer a transmissão e distribuição. E acho que o investimento na rede é importante e em interligações com os países vizinhos. Marrocos tem agora um plano de se interligar com o Reino Unido. Mas Portugal está aqui ao lado e não cria uma ligação com Marrocos. Estamos a importar de Espanha, Espanha importa de Marrocos.
Uma vez que nós funcionamos como um mercado único na Península Ibérica, não é mais otimizado haver apenas uma ligação? Justifica-se outra com Portugal diretamente?
Justifica-se pela geopolítica nacional, nós não podemos estar totalmente perante Espanha. Mas também uma questão técnica que é: e se há um problema na interligação espanhola? Vai afetar o nosso mercado, pode haver um blackout em Portugal.
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China e a Europa “bem posicionadas” para uma “coliderança global nas renováveis”
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