Com a inteligência artificial “novas empresas vão ganhar espaço aos incumbentes”

Novas empresas, que valorizam a inteligência artificial generativa de forma diferente, vão tirar negócio às que hoje dominam o mercado, considera Francisco Veloso, 'dean' do INSEAD.

Francisco Veloso é desde setembro de 2023 o reitor do INSEAD, a prestigiada escola de negócios francesa. Em Portugal para participar nas Conferências do Estoril, que decorrem esta quinta e sexta-feira no campus da Nova SBE, afirma que a inteligência artificial generativa é “um comboio que já saiu da estação, impossível de conter”, mas considera que a tecnologia “vai demorar tempo a ter um impacto económico significativo”, afetando os setores de forma diferente.

O antigo reitor do Imperial College Business School afirma que o maior impacto será “novas organizações e novas empresas a entrarem no espaço económico com modelos completamente diferentes”, começando “a ganhar quota de mercado e espaço” aos incumbentes.

Francisco Veloso diz que as empresas têm de pensar como é que estas novas ferramentas podem ter um impacto estratégico na criação de valor. “Esse é um trabalho que a maior parte das empresas estão a fazer agora e, se não estão a fazer, vão perder competitividade. Outras vão estar a fazê-lo e vão começar a ganhar”.

O novo contexto tecnológico vai exigir novas competências e formas de liderança. “Num contexto em que muitas dessas coisas vão ser digitais e feitas por máquinas, é preciso pensar como é preservada (…) a dimensão humana e de comunidade que existe dentro das organizações. Isso vai exigir ainda mais humanidade por parte dos líderes no futuro”, afirma o reitor do INSEAD, que também já dirigiu a Católica Lisbon School of Business & Economics.

Juntou-se a outras vozes, também considera que é o IRS Jovem não é a solução para reter talento em Portugal. “Não é uma ferramenta que eu acho que vá resolver essa questão”.

O painel em que vai ser orador nas Conferências do Estoril é sobre o impacto da inteligência artificial. No final de novembro, fará dois anos desde que o ChatGPT se tornou acessível ao público e desde então gerou-se um enorme hype, uma moda, à volta da inteligência artificial generativa. É justificado este hype todo ou é muito impulsionado pelas tecnológicas e consultoras que querem vender os seus serviços?

A inteligência artificial generativa vai ter um impacto muito significativo na forma como nós organizamos o trabalho, como nós organizamos o ensino e a investigação. O grande impacto, dada a abrangência da pergunta, é porque democratiza o acesso à inteligência artificial. O acesso à IA era uma coisa que necessitava de um conhecimento técnico bastante significativo, porque me obrigava a ter um software, conhecimentos de programação ou então estava completamente encapsulado dentro de um determinado produto.

A IA generativa democratizou o acesso porque permite usar essas ferramentas usando aquilo que é a nossa forma mais fácil de interagir, que é basicamente linguagem, linguagem corrente. Aliás, já estamos também até na linguagem só falada, que ainda vai democratizar mais, porque é mais fácil. Vejo isso até com as minhas filhas. No outro dia pus a versão 4.0 do ChatGPT com interface de voz e foi um enorme sucesso; a verborreia de perguntas que elas, de repente, quiseram fazer.

Há cada vez menos barreiras no acesso à IA.

Essa democratização tem, de facto, um impacto muito significativo, porque agora todas as pessoas, todas as organizações, têm um acesso relativamente simples. Não há dúvida de que já faz e vai fazer parte da vida de todas as pessoas, todas as organizações, por assim dizer.

A acessibilidade é maior. Isso significa que o impacto vai ser, de facto, muito significativo, como apontam alguns estudos?

Há uma enorme variabilidade nesse impacto. Por exemplo, o Prémio Nobel [da Economia] deste ano, o Daron Acemoglu, é um dos mais céticos relativamente ao impacto económico que a IA terá. Eu acho que vai demorar mais tempo a ter um impacto económico significativo.

Vamos pensar na minha própria organização, que é a universidade, como um sistema económico. Se eu pensar neste sistema educativo como um sistema económico, o que é que a IA generativa vai fazer? Vai reduzir o número de professores? Vai aumentar exponencialmente a minha capacidade para tocar muitos outros alunos e, portanto, permitir gerar muito mais receitas? E aí começam as dúvidas.

Se calhar vamos dar um ensino muito mais interessante, mais customizado, vamos preparar as pessoas para compreenderem estes fenómenos de uma forma diferente e fazerem alavancar estas ferramentas na sua produtividade individual e na sua organização. Mas o meu sistema económico, que mede inputs e outputs, não é radicalmente alterado e isso é que tem um impacto na produtividade. Isso não é verdade para todas as empresas.

Ao longo do tempo, e isso tem mais a ver já com a minha perspetiva empreendedora, shumpetariana, de destruição criativa, o principal movimento que vai ter um impacto significativo é, de facto, novas organizações e novas empresas a entrarem no espaço económico com modelos completamente diferentes, que valorizam e usam a inteligência artificial de uma forma diferente e esses começarem a ganhar quota de mercado e espaço às tradicionais.

O impacto vai depender da área de atividade.

As empresas que estão nas áreas de customer service, que tinham muitas pessoas que faziam o apoio ao cliente, provavelmente conseguem substituir uma parte significativa dessas pessoas por agentes virtuais e ter um impacto significativo. Há realidades em que haverá um impacto económico mais significativo e outras onde será mais pequeno.

Ao longo do tempo, e isso tem mais a ver já com a minha perspetiva empreendedora, shumpetariana, de destruição criativa, o principal movimento que vai ter um impacto significativo é novas organizações e novas empresas a entrarem no espaço económico com modelos completamente diferentes, que valorizam e usam a inteligência artificial de uma forma diferente, e esses começarem a ganhar quota de mercado e espaço às tradicionais.

Vou dar um exemplo. Tenho ouvido cada vez mais as pessoas dizer que vão usar o Perplexity em vez de usar o Google Search, porque dá uma contextualização muito mais significativa. Claro que o Google está a tentar recuperar utilizando IA dentro das suas ferramentas, mas é um exemplo de alguém que entrou já com uma abordagem completamente diferente e que, de repente, começa a ganhar espaço.

Estas empresas têm de entrar, têm que ganhar escala, têm que substituir os incumbentes, portanto, do ponto de vista económico, não acho que seja um impacto imediato e significativo. Ao longo do tempo vai ser muito significativo.

Sendo a prazo significativo, o que é que as empresas e os países têm que fazer para garantir que não só não perdem o comboio, mas conseguem estar na carruagem na frente?

Há três níveis a considerar. Um tem a ver com criar familiaridade com estas ferramentas e preparar as pessoas para poderem usar estas ferramentas. Neste momento, há muito hype, como referiu, mas há também muita preocupação, muita desconfiança, muito medo até em algumas situações. O comboio já saiu da estação, é impossível de conter, porque a interface é muito fácil e natural para todos, mas é preciso, nesta primeira fase, criar uma certa capacidade das pessoas perceberem, se relacionarem e utilizarem.

E, nesta primeira fase, o uso vai ser qual?

Para a maior parte das pessoas, vai ser usado dentro do contexto de ferramentas que vão ser colocadas. Por exemplo, se nós pensarmos nos principais instrumentos de gestão que uma organização moderna usa hoje em dia, por exemplo, um Customer Relationship Management (CRM) ou um Enterprise Resource Planing, todas elas vão incorporar IA. Sentirem-se confortáveis nessa utilização e perceberem como é que podem alavancar essas oportunidades para melhorar o seu trabalho, é um aspeto importante.

Outro aspeto é a produtividade individual, no sentido de perceber como faço as coisas mais rápidas, seja enviar emails, preparar relatórios ou procurar informação. O impacto na produtividade das organizações – na maior parte delas – está a ser relativamente marginal, porque a utilização é também ela marginal.

O segundo nível tem a ver com as organizações refletirem sobre como é que estas ferramentas podem alterar de uma forma mais significativa a sua oferta e a sua forma de trabalhar. Como é que elas se vão organizar de forma diferente? Como é que elas vão lançar produtos ou serviços diferentes daqueles que era possível fazer sem o acesso a essas ferramentas? O que é que pode ter um impacto estratégico na criação de valor?

Esse é um trabalho que a maior parte das empresas estão a fazer agora e, se não estão a fazer, vão perder competitividade. Outras vão estar a fazê-lo e vão começar a ganhar.

Falou em três níveis. Qual o último?

O ponto final que queria mencionar tem a ver com a parte mais humana. Um dos nossos professores, Phanish Puranam, que vai lançar um livro agora, no próximo mês, que se chama “Rehumanize”, defende que vai haver a necessidade de uma maior capacidade de gestão humana.

Porquê? Porque as pessoas vão utilizar muitas destas ferramentas e isso vai criar mais variabilidade, mais incerteza e mais sensibilidade à dimensão humana e à forma como as pessoas interagem entre elas. Uma parte importante da tese do Phanish é que a parte humana vai ser colocada mais em evidência.

Parece até paradoxal, tendo em conta que nós vamos interagir cada vez mais com chatbots e modelos de IA.

O ponto dele é que as empresas são meios para atingir um determinado tipo de objetivos e termos impacto, mas também são comunidades de ligação, de propósito, de entendimento. Num contexto em que muitas dessas coisas vão ser digitais e feitas por máquinas, é preciso pensar como é que é feito o aspeto curatorial, como é preservada esta dimensão humana e de comunidade que existe dentro das organizações. Isso vai exigir ainda mais humanidade por parte dos líderes das organizações no futuro.

Em Portugal, temos feito muitos diagnósticos sobre o skill gap a nível digital que existe no país e isto só vai acumular com essas dimensões.

Tendo em conta o impacto significativo que a IA vai ter a prazo, o Governo português deveria fazer do investimento na IA uma prioridade?

Isto é uma responsabilidade da maior parte das organizações e das empresas. Ao nível do Governo, acho que estaria mais ao nível daquela primeira parte: maior informação, maior acessibilidade, desenvolvimento de competências. São competências novas que as pessoas não têm. Em Portugal, temos feito muitos diagnósticos sobre o skill gap a nível digital que existe no país e isto só vai acumular com essas dimensões.

A outra parte onde há um trabalho muito importante para todos os Governos, em particular os europeus, em que o sistema de ensino é sobretudo o público, é o impacto significativo na forma como nós ensinamos e na forma como nós aprendemos. Se há uma área onde eu acho que o Governo pode e deve ter um trabalho importante é toda a parte de ensino, porque estas ferramentas permitem a qualquer professor fazer coisas de uma forma significativamente diferente se souberem fazê-lo. Pode permitir mais personalização, mais produtividade, maior impacto.

Se o conhecimento passa a estar à distância de uma pergunta bem feita a um chatbot de inteligência artificial, quais passam a ser as competências críticas que é necessário ensinar?

A decisão fica connosco e, portanto, é necessária uma capacidade de discernimento e de análise crítica muito mais aguda para conseguir perceber qual é o caminho e qual é a informação que é relevante para a decisão. O termo que tenho usado é esta combinação entre critical thinking e judgement, que tenho juntado e chamado critical judgement. É a capacidade de avaliar, de julgar e tomar decisões, as duas coisas em combinação, que acho que vai ser muito mais valorizado. É algo difícil, é algo que também envolve experiência, mas é uma experiência totalmente nova, porque nós agora temos acesso a muito mais informação.

O ano passado, quando estava a dar aulas, disse aos meus alunos para usarem o ChatGPT para fazerem as suas análises e os seus casos. E o que eu percebia era que a diferença estava naqueles que tinham alguma ideia do que queriam analisar e usavam a ferramenta para ajudar essa perspetiva de análise, que vinha da cabeça deles, sobre quais eram as questões-chave que eram realmente relevantes, e depois estas ferramentas ajudavam. Mas aqueles que estavam perdidos, naquilo que era relevante, acabavam por também estar perdidos com o ChatGPT.

Em Portugal tem existido um intenso debate sobre retenção e atração de talento jovem. No Orçamento do Estado para o próximo ano é aprofundado o regime do IRS Jovem, que baixa significativamente os impostos até aos 35 anos. É uma boa medida? Acha que vai fazer a diferença na retenção de talento?

Não acho que seja isso que vai fazer a diferença na retenção de talentos. Acho que a atração e retenção de talentos é feita mais em função da significância da oportunidade económica, da oportunidade de crescimento pessoal e de progressão na carreira. O IRS jovem não é uma ferramenta que eu acho que vá resolver essa questão.

Que medidas seriam eficazes, então?

Mais ao nível da transição económica, da inovação, da transição para a sustentabilidade, das competências, da criação de um contexto de atração. Percebia melhor se esse envelope fiscal fosse usado, por exemplo, na parte da compra de habitação, coisas que têm a ver com as decisões dos jovens, do que uma questão a nível do rendimento. As pessoas fazem essa opção em função da sua carreira e sua carreira vai além dos 35 anos; não me parece que seja isso que vá fazer a diferença no contexto de retenção de talento. Escolheria outro tipo de ferramentas para tentar apoiar os jovens e as suas oportunidades.

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