As negociações do acordo sobre competitividade e rendimentos estão em "retrocesso". Quem o diz é o secretário-geral da CGTP, em entrevista ao ECO.
Arménio Carlos tem encontro marcado, esta quarta-feira, com Ana Mendes Godinho e Pedro Siza Vieira. Será a quarta vez que os parceiros sociais se sentam à mesa com o Executivo de António Costa para negociar o acordo sobre competitividade e rendimentos. Um acordo que, a incluir referenciais para a evolução dos rendimentos, poderá levar à “cartelização” das remunerações, diz o secretário-geral da CGTP, em entrevista ao ECO.
Para o histórico sindicalista, está em causa um processo “completamente desequilibrado”, que entrou mesmo “em retrocesso” e cujo final dificilmente coincidirá com o prazo delineado pelo Governo. Será “quase impossível” fechar este acordo até março, defende Arménio Carlos. E acrescenta que ou esta negociação dá “uma grande volta” ou poderá mesmo não trazer “nada de especial para os trabalhadores”.
O sindicalista insiste, além disso, que, sem revogar a norma da caducidade da contratação coletiva, o potencial entendimento conseguido em sede de concertação social terá, de resto, poucos reflexos práticos, faltando-lhe a “estrutura sólida” que permitiria aos trabalhadores levar a cabo a luta sem sofrer “chantagem” por parte dos empregadores.
Estamos a menos de dois meses do prazo estabelecido pelo Governo para fechar o acordo sobre competitividade e rendimentos. Ainda há espaço e tempo para chegar a um entendimento?
Creio que a proposta que o Governo nos apresenta de fechar o processo até ao final de março não só é ambiciosa, como também é quase impossível de concretizar. Mas independentemente disso, o que nos importa é a questão dos conteúdos e relativamente a essa matéria, o que nós temos é uma subversão da negociação dos salários para o setor privado. Desde logo, porque o Governo, inicialmente, negociou um acordo de rendimentos, mas três semanas depois veio anunciar um acordo de competitividade e rendimentos.
Aqui começou-se a distorcer todo o processo, porque o Governo está a tentar aproveitar a discussão desta proposta de acordo para financiar, através do Orçamento do Estado, as empresas. Verificámos pela primeira vez uma situação a que nunca tínhamos assistido: Ainda nem há qualquer tipo de compromisso ou acordo firmado, mas o Orçamento do Estado já contempla um conjunto vasto de propostas reivindicados por parte das empresas. Ora, isto não faz sentido e não faz sentido que seja o Orçamento do Estado a financiar as empresas para aumentar os salários. O que está aqui em cima da mesa é um processo que está de retrocesso.
O que nós verificamos é que este é um processo que está completamente desequilibrado.
Sobre as “contrapartidas” dadas pelo Governo aos patrões no Orçamento do Estado. Não entende que esse foi um sinal, uma espécie de contributo do Executivo para as empresas para que fosse possível chegar a acordo?
Se o Governo quer discutir apoios às empresas, não tem de os envolver na questão dos salários. Os salários decorrem da relação de trabalho.
As empresas dizem que têm de ter condições de produtividade e competitividade para aumentar os salários…
Sim, mas as empresas vivem no mercado. Quando têm lucros, dividem-nos pelos acionistas. Por que razão é que agora os nossos impostos haveriam de estar a financiar as empresas para aumentar salários? Não faz sentido.
Portanto, este deveria ser um acordo sobre rendimentos e não sobre competitividade e rendimentos?
[Um acordo] de salários, exatamente. Tudo o que está relacionado com apoios ao investimento nas empresas é uma coisa à parte, não se tem de misturar. O que verificamos é que este é um processo que está completamente desequilibrado.
Dito isso, acha difícil chegar a acordo mesmo que o tal prazo seja estendido?
Para nós, os acordos têm sempre uma relação direta com os conteúdos. Os conteúdos daquilo que nos está a ser apresentado não respondem às nossas necessidades e muito menos respondem àquilo que o Governo se comprometeu. Bem podem dizer que querem dinamizar a contratação coletiva, mas enquanto as entidades patronais tiveram a norma da caducidade vão continuar a chantagear os sindicatos no sentido de que estes sejam obrigados a aceitar normas inferiores àquilo que a lei estabelece como mínimos. Enquanto este problema não for resolvido, não temos solução para a contratação coletiva. E até podem assinar acordos, mas não se podem esquecer de uma coisa: uma coisa é a assinar um acordo em que está lá a assinatura da CGTP, outra coisa é assinar um acordo sem ela. E já deviam ter percebido isso.
Em novembro, o Governo levou à concertação social uma espécie de referencial para os salários, que indicava uma subida de 2,7% em 2020. Agora já não fala neste número…
Antes, havia referenciais para a evolução dos salários, que agora desapareceram. O último documento que nos foi entregue apenas e só refere generalidades e remete para a parte setorial toda a discussão. É o próprio documento do Governo que confirma que, nos últimos anos, a produtividade aumentou 17% e os salários reais 5% e na última década a produtividade aumentou 7% e os salários reais caíram 3%. Isto quer dizer que, das duas, uma: ou se resolve o problema de fundo da contratação coletiva, que está na norma da caducidade que se mantém e que impede a negociação; Ou, não se resolvendo este problema, bem se pode discutir negociações em termos gerais porque na prática as associações patronais continuam a dispor desta norma que condiciona a negociação coletiva.
Portanto, para partir para uma discussão sobre os salários é preciso fazer uma avaliação sobre a evolução da contratação coletiva e os impactos que esta teve na atualização dos salários. Esta é uma avaliação que dá uma nota negativa ao que está a ser feito. Para corrigir a situação, [é preciso] revogar a norma da caducidade e ter liberdade sindical. São estas as questões que nos levam a dizer que este acordo ou é construído, logo a priori, a partir de uma estrutura sólida ou temos uma simulação de negociação e entendimento.
O Governo diz que temos de nos aproximar do peso dos rendimentos no PIB da União Europeia e até nos apresentou um gráfico, mas não quantifica. Tem de quantificar e, se tiver coragem para o fazer, vai concluir que os valores que apresentou há umas semanas e que agora omitiu ficam muito abaixo daquilo que seria exigível para cumprir as suas próprias metas.
Qual seria o valor exigível para cumprir essas metas?
Temos uma proposta que é de 90 euros, mas não estamos a falar da nossa proposta. Estamos a falar do objetivo que o Governo delineou para atingir até 2023. Os 2,7% que estavam previstos para este ano são profundamente insuficientes e são um recuo, porque em termos médios os salários em Portugal declarados à Segurança Social subiram, em 2019, cerca de 3,5%. Então em 2020 íamos partir de uma base inferior?
Se o Governo quiser tratar [a negociação] com rigor e frontalidade, pelas suas próprias propostas [de aproximar o peso dos rendimentos no PIB da média europeia] isso corresponderia a uma subida de 4,3%. Tudo aquilo que o Governo apresentou em termos de produtividade e inflação, está muito abaixo dessa média, que se poderia atingir até 2023. São os números do Governo, não são os nossos. A CGTP considera que, ou há discussões com rigor e objetividade, ou continuamos a construir a casa num contexto em que os seus alicerces estão profundamente deteriorados.
Em relação à Concertação Social e aos referenciais, passaríamos a ter a cartelização dos salários em que a referência seria a mesma.
Ainda sobre a questão de fixar referenciais por setor. Sem revogar a norma da caducidade, há alguma forma de os pôr em prática com efeitos reais na vida dos trabalhadores?
Qualquer referencial que saia dali surge logo à partida como um teto.
Não uma fasquia mínima?
É claro que nos vão dizer que é uma fasquia mínima, mas depois sabemos qual é a posição de uma grande parte das associações patronais: não se referem à matéria como uma fasquia mínima, mas como o compromisso que foi assumido por todos na concertação social. Este processo, do ponto de vista dos referenciais, faz-me lembrar um outro processo conhecido que é a cartelização. [Olhemos para] o exemplo dos combustíveis. Andamos na autoestrada e, de x em x quilómetros, vemos uma placa. As empresas de combustíveis são diferentes, mas os preços são iguais. Chamamos a isso cartelização de preços. Ou seja, supostamente empresas que deviam estar em concorrência com a apresentação de preços mais baixos nivelam-nos.
Em relação à concertação social e aos referenciais, passaríamos a ter a cartelização dos salários em que a referência seria a mesma. Entendemos que é preciso atingir a média [do peso dos rendimentos no PIB] da União Europeia e como vamos concretizar isso? Pelo compromisso global e depois responsabilizar as associações patronais e as associações sindicais para, no plano dos setores, dinamizar todo o processo para garantir a concretização do compromisso. Não queremos o nivelamento por baixo, queremos uma evolução dos salários para valorizar as profissões e as competências.
Entende, então, que o acordo não deve ter números, valores concretos, que possam guiar essas negociações?
O acordo deve ter um compromisso de fundo.
Mas sem números, sem uma lista de fasquias por setor?
Não pomos em causa que se definam [linhas relacionadas com] aquilo que para nós é fundamental, que tem a ver com a inflação e a produtividade, mas mesmo isso tem de ser trabalhado. Na produtividade, eles dizem que temos baixos níveis. Mas temos quem? Mas a produtividade depende só do trabalhador? Não depende. A produtividade está diretamente associada a uma conceção de estratégia empresarial que passa pelo perfil produtivo, pelo acréscimo de valor e também pela sua modernização tecnológica e gestão. Depois, temos a parte dos trabalhadores, que também é importante, mas a produtividade não depende só deles.
Então, mais uma vez, o acordo deve ser mesmo sobre essa competitividade e rendimentos…
Ora, mas aqui é que está a questão. Se não se investir mais nas empresas, a produtividade não vai aumentar significativamente. Agora, os trabalhadores não podem ser penalizados no salário que ganham. A culpa não é deles.
A segunda componente é a inflação. É uma das vertentes que têm de estar presentes na negociação, mas na inflação não entra a habitação. E qual é a componente mais significativa nos rendimentos dos trabalhadores e das famílias? A habitação. Sem habitação, a inflação é muito baixa. Ora, isso reflete-se na negociação mais geral. Quando o Governo, na última reunião, apresentou um documento que diz que, nos últimos anos, a produtividade aumentou 17% e os salários 5%, para onde foram os 12 pontos percentuais? Não nos venham dizer que a nossa proposta de 90 euros não é compatível. Não podemos estar só a ver o presente e o futuro, não podemos pôr uma pedra sobre o passado.
Com a retirada do tal referencial de 2,7%, que se seguia pela produtividade e pela inflação, o acordo foi esvaziado de certa forma?
O acordo está a ser esvaziado para os trabalhadores e está a ser enriquecido para as empresas.
Diria mesmo que o acordo está a perder utilidade?
Está a ter uma grande utilidade para as empresas. Está a ter pouco utilidade ou nenhuma para os trabalhadores. Esta negociação ou é suscetível de dar uma grande volta ou estamos perante um quadro que não trará nada de especial para os trabalhadores.
É um embuste, como já chegou a dizer a CGTP?
É, é um embuste. Quando nos dizem que querem dinamizar a contratação coletiva, mas mantêm a mesma lei… Ora, essa lei é responsável pelo bloqueio na contratação coletiva. É um embuste. Enquanto a lei não for alterada não se resolve o problema da distribuição da riqueza, porque a contratação coletiva é determinante para assegurar a atualização anual dos salários.
O Governo pode dizer que não é uma prioridade [rever a Lei Laboral]. Pior que aquele que não vê é aquele que não quer ver.
Sobre a questão da norma da caducidade da contratação coletiva, tal mudança exigiria uma nova revisão da lei. O Governo já disse que alterar o Código do Trabalho não é uma prioridade desta legislatura?
O Governo pode dizer que não é uma prioridade. Pior que aquele que não vê é aquele que não quer ver. Se olhamos à nossa volta, vemos que a contratação coletiva está bloqueada, que a proposta dos salários não corresponde nem de perto nem de longe àquilo que seria exigível, que continuamos a ter níveis de desigualdade gritantes. Como é que se resolve o problema? Aumentando salários. É um problema para as empresas? Não, é um investimento com retorno. Aliás, a vida nos últimos anos demonstrou-o.
No período da troika quando quiseram criar uma outra economia, o que fizeram? Reduziram direitos, reduziram rendimentos, reduziram salários, reduziram pensões. O que é que daí se concluiu? Mais desemprego como nunca tivemos, mais falências, recessão económica e a Segurança Social numa situação mais difícil. Esse processo foi travado. Bastou uma ligeira melhoria dos rendimentos dos trabalhadores para aumentar a procura interna. Conclusão? Muito simples, aumentou a procura interna, aumentou emprego, aumentou volume de negócios das empresas, houve uma evolução do crescimento económico e a Segurança Social acumulou um conjunto de receitas muito importantes para pagar pensões e dar uma perspetiva de futuro àqueles que hoje estão no mercado de trabalho. Quando dizemos que é preciso aumentar os salários, estamos a dizer que é preciso distribuir um bocadinho melhor a riqueza e todos saem beneficiados.
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