“Ninguém tem intenção de forçar estafetas a serem trabalhadores”

Guilherme Dray entende que Governo de António Costa não foi precipitado ao regular trabalho nas plataformas digitais, ainda que a nível comunitário já estivesse a ser preparada uma diretiva.

A lei do trabalho abre a porta a que os estafetas sejam considerados trabalhadores das plataformas digitais, mas o advogado Guilherme Dray deixa claro que, se estes não tiverem interesse nesse vínculo, devem manter a sua autonomia. Em entrevista ao ECO, o coordenador do livro verde que deu origem às dezenas de alterações feitas à lei do trabalho no último ano defende que o Governo anterior fez bem ao regular aquele tipo de profissão sem ter esperado que a diretiva comunitária estivesse finalizada.

Guilherme Dray adianta também que a questão das despesas do teletrabalho está hoje mais pacificada, ainda que a aplicação da lei possa ter “um ou outro problema“. “Mas não me parece que haja necessidade de ajustamentos em termos legislativos”, atira.

Esta é uma de três partes da entrevista de Guilherme Dray ao ECO. Nas outras duas, fala sobre travão ao outsourcing após despedimentos coletivos e sobre a negociação coletiva em Portugal, deixando claro que é positivo para as empresas haver sindicatos “sólidos e amadurecidos”. Fala também sobre o que vai mudar na lei do trabalho com este Governo.

Guilherme Dray, advogado, em entrevista ao ECO Hugo Amaral/ECO

O Governo mostrou abertura para revisitar as regras do trabalho nas plataformas digitais, que foram criadas há um ano. O que pode vir a mudar? Só devem ser feitos ajustes?

A criação de uma presunção específica para o trabalho nas plataformas digitais é incontornável. Não mais andará para trás, até porque teremos uma diretiva da União Europeia que assim o determina.

O Governo não se terá precipitado na regulamentação do trabalho nas plataformas, tendo em conta que a diretiva já estava a ser trabalhada? Não deveríamos ter esperado pela diretiva?

Não me parece, porque a diretiva estava a ser trabalhada e o legislador português viu a oportunidade de regulamentar esta realidade. E no essencial, se olharmos hoje para a diretiva, tudo o que está lá está na nossa lei. Não me parece que tenha havido alguma precipitação. É bom que Portugal, quando são coisas positivas, seja dos primeiros países a fazê-lo. Recordo-me, por exemplo, que Portugal foi o primeiro país europeu a regular o teletrabalho, em 2003. Avançou quando ainda só havia um framework agreement na União Europeia. Vinte anos volvidos, verificou-se que foi bom que tivéssemos já o regime de teletrabalho.

Se me dizer que, por hipótese, há alguém que só quer trabalhar com total autonomia e liberdade, que não quer ter qualquer tipo de subordinação jurídica. Pois bem, nesse caso, estou em crer que os próprios tribunais apurarão que não há contrato de trabalho.

Guilherme Dray

Advogado

Mas que sentido faz criar um mecanismo de presunção de contratos de trabalho para os estafetas das plataformas digitais, quando uma parte significativa deles, segundo os estudos, não quer essa relação de subordinação?

No âmbito da relação laboral, há tendencialmente um desequilíbrio contratual entre as partes. Se me dizer que, por hipótese, há alguém que só quer trabalhar com total autonomia e liberdade, que não quer ter qualquer tipo de subordinação jurídica. Pois bem, nesse caso, estou em crer que os próprios tribunais, em sede de processo judicial, apurarão que não há contrato de trabalho. Acho que ninguém tem intenção de forçar ninguém a ser trabalhador quando ele não quer. Aquilo que se pretende é que ninguém fique afastado dos mínimos legais, do ponto de vista do direito do trabalho, apenas porque há alguém que diz que o aceita como trabalhador.

Há alguns anos, falava-se em falsos recibos verdes que não queriam ser trabalhadores por conta de outrem, mas corriam o risco de ser reconhecidos como tal. No caso das plataformas digitais, não há, então, esse risco?

Não vejo esse risco. Acho que isso é uma forma que por vezes se utiliza para dizer que se está a ir contra a autonomia privada e a liberdade contratual das partes. No caso do direito do trabalho, deve haver liberdade contratual e autonomia das partes, mas deve haver também uma intervenção mais expressiva para proteger o contraente mais débil, sem pôr em causa, obviamente, a liberdade de gestão das empresas.

Olhemos para o teletrabalho. A Agenda do Trabalho Digno trouxe também novidades em relação a esta matéria, especificamente no que diz respeito às despesas. Neste momento, esta já é uma questão pacífica ou ainda há dificuldades no apuramento?

Está mais pacificada. A aprovação da portaria que determinou o montante máximo até ao qual existe isenção do ponto de vista fiscal das despesas ajudou a clarificar. Há muitas empresas que, neste momento, fazem isso mesmo, isto é, determinam uma compensação dentro dos limites da portaria e a questão está resolvida. Nos outros casos em que não há pagamento de uma compensação, pode ser mais complexo, mas a verdade é que hoje os critérios e bitola do ponto de vista legislativo estão determinados. O trabalhador tem de provar que teve um acréscimo de despesas. A questão está mais clarificada. Pode haver ainda um ou outro problema na aplicação, mas não me parece que haja necessidade de ajustamentos em termos legislativos.

Alguns advogados adiantaram ao ECO que há trabalhadores que nem pedem a compensação das despesas, porque entendem o teletrabalho como um benefício. Não é estar a pagar para trabalhar?

Fiz parte da comissão redatora do Código de Trabalho em 2003, na altura com o saudoso professor Pedro Romano Martinez. Quando legislámos pela primeira vez, no Código do Trabalho, o regime do teletrabalho, fomos acusados de que aquilo não servia para nada. Isto foi há 20 anos e, de então para cá, o teletrabalho foi subindo de forma consistente. Hoje vejo jovens que querem trabalhar no nosso escritório, por exemplo, ou em empresas que põem como requisito terem, pelo menos, um ou dois dias de teletrabalho por semana. O fato de alguns trabalhadores dizerem que até preferem fazer isso sem receber uma compensação, acho que só atesta o lado positivo do teletrabalho.

  • Diogo Simões
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