“O que se pretende e é desejável alcançar é a igualdade de géneros, não a supremacia de uns sobre outros”

Rita Aleixo Gregório, consultora sénior da PLMJ, analisou o estado da advocacia no que concerne ao papel da mulher. Acredita que tem-se assistido a uma crescente abertura para as questões de género.

Rita Aleixo Gregório, consultora sénior da área de concorrência da PLMJ, esteve à conversa com a Advocatus e analisou o estado da advocacia no que concerne ao papel da mulher. Sobre o dia internacional da mulher, admite que “em vez de se defenderem direitos humanos, distribuem-se rosas”.

A advogada acredita que nos últimos anos tem-se assistido a uma crescente abertura e sensibilização para as questões de género.

Acha que ainda faz sentido, em 2023, existir o Dia da Mulher?

Não, não acho que faça sentido existir o Dia da Mulher, nem em 2023, nem nunca. Infelizmente, é um dia que deve e tem (e sublinho o “deve” e o “tem”) de continuar a existir. E deve e tem de continuar a existir por aquilo que na sua essência pretende lembrar e continuar a sensibilizar e educar, em prol de um mundo menos preconceituoso e menos discriminatório. Não é preciso irmos muito longe para vermos os (maiores ou menores) atropelos que ainda hoje existem, ancorados na questão do género – já agora, acrescente-se, seja ele qual for.

Infelizmente, também, é um Dia amplamente ignorado na sua essência e transformado numa celebração superficial, vazia ou até mesmo ridicularizadora daquilo que deveria estimular e proteger. Em vez de se defenderem direitos humanos, distribuem-se rosas…

Qual a sua perspetiva de ser advogada mulher? Vantagens, desvantagens?

Julgo que, tal como para qualquer advogado de um outro género, a perspetiva de exercer advocacia é a perspetiva individual, do sujeito. As vantagens e as desvantagens dependem de cada um e das suas circunstâncias, assim como do meio (mais ou menos discriminatório) em que estão inseridos.

O que mudou nos últimos anos?

Nos últimos anos tem-se assistido a uma crescente abertura e sensibilização para as questões de género, procurando abordagens que permitam alcançar um maior equilíbrio entre todos, com as suas diferenças (que, como é óbvio, existem), ao invés de se insistir em nivelar todos pela mesma bitola.

É certo que esse movimento de maior abertura e sensibilização tem sido acompanhado de um crescendo na exteriorização de vozes dissonantes ou mesmo de manifestações comportamentais discordantes, muitas vezes violentas. Parece haver um menor pudor em fazê-lo, como se houvesse uma necessidade premente de “calar” esse movimento.

Assim como é certo que há muito ainda por fazer. As mentalidades, os hábitos e os costumes demoram tempo a evoluir. Não me parece é que determinadas posições mais extremistas ou extremadas nesta matéria – que, como se sabe, bem as há – contribuam de forma construtiva para esses avanços. Em alguns casos, julgo mesmo que servem apenas para acentuar estereótipos e, por isso mesmo, essas posições acabam por ser contraproducentes. O que se pretende e é desejável alcançar é a igualdade de géneros, não a supremacia de uns sobre outros.

Diga três coisas que mudaria, no que toca ao estatuto da mulher num escritório de advogados?

Estatuto? Tanto quanto é do meu conhecimento, em nenhum escritório onde estive ou estou houve ou há um “estatuto da mulher” ou de qualquer outro género. O que neles havia e há são políticas de recursos humanos elaboradas e implementadas por um conjunto de pessoas, cada uma com a sua forma de pensar, de sentir e de estar e que compõem o meio em que, num dado momento, nos inserimos. Essas políticas são gerais, isto é, aplicam-se independentemente do género, sem prejuízo de algumas especificidades que, naturalmente, existem.

Se mudaria alguma coisa nessas políticas? Sim, há sempre espaço para melhoria, como por exemplo ao nível da parentalidade. Justificar-se-á a diferenciação entre os direitos de maternidade e os direitos de paternidade após o nascimento ou adoção, por exemplo? Isso não contribuirá para acentuar o papel estereotipado de cada género?

Ainda há poucas mulheres em cargos de topo de gestão, tal como managing partners em sociedades de advogadas. O que fazer para mudar?

Atualmente já se começa a ver mais mulheres a assumir cargos de topo de gestão em sociedade de advogados, não só como managing partners, mas também com assento no Conselho de Administração das sociedades de advogados ou em outros importantes cargos de direção. É uma realidade que começa a normalizar e que, acredito, cada vez menos será um tema.

Como é que a PLMJ encara a questão da igualdade de género?

A questão da igualdade de género é encarada com muita seriedade na PLMJ. Estamos focados numa cultura de talento e mérito e têm sido estes os critérios que nos têm trazido os melhores resultados de sempre, ano após ano. Quando olhamos para a nossa evolução em termos do peso das mulheres na organização – dado que é este género que está a ser o foco das questões colocadas –, fica claro que temos feito um caminho assinalável de equilíbrio em todas as categorias. Mas o que mais releva deste caminho é que o temos conseguido fazer a partir dos critérios talento e mérito, o que o torna particularmente sustentável e bem-sucedido.

Dito isto, a organização teve e tem um papel muito importante na identificação de eventuais barreiras à progressão e foi muito feliz no desenho e implementação de medidas concretas que permitem o desenvolvimento pessoal e profissional, independentemente de circunstâncias específicas de género.

Em termos salariais não há discriminação?

Não. Não seria, aliás, possível imaginarmos que, num escritório com a história, dimensão e posicionamento da PLMJ ainda estivéssemos a falar de discriminação salarial, seja entre géneros, seja por que motivo for.

Há muito que o escritório adotou um modelo em que a componente fixa da remuneração está ligada exclusivamente à função e experiência de cada um. Note-se que este modelo se aplica a todos os advogados e à equipa de gestão.

A diferenciação na remuneração ocorre na componente variável (vulgo “prémio de desempenho”), que serve precisamente para distinguir e reconhecer o desempenho de cada um. E, sob este prisma, a PLMJ fez uma forte aposta num processo de avaliação mais transparente e assente em critérios bem definidos e divulgados para cada fase da carreira, a fim de minimizar eventuais assimetrias. Ainda com esse intuito, a avaliação assenta no feedback recolhido junto de um conjunto diversificado de pessoas e é assegurada por um comité alargado (e não somente pelo líder direto). Tudo isto contribui para uma menor subjetividade do resultado final e para evitar o mais possível a sua eventual contaminação por outras questões que não aquelas que importa avaliar.

Estamos atualmente numa crise na União Europeia, no que toca ao Estado de direito?

Esta é uma pergunta para a qual não há uma resposta fácil, linear. Temos assistido a muitos bons exemplos de que ninguém está acima da lei e vemos as instituições a funcionarem, a investigarem e a sancionarem, se for o caso, os desvios às normas. É certo que, também aqui, há muito ainda por fazer. Mas é crucial estar-se ciente do muito que se tem feito, sob pena de se cair em julgamentos fáceis e oportunistas, que tanto enfraquecem o Estado de direito.

Enfraquecedor do Estado de direito é também a enorme crise de valores a que temos assistido nos últimos anos. A permissão ou tolerância que tem sido dada a alguns Estados Membros para imporem a sua agenda em detrimento de valores que há muito se julgavam consolidados na União Europeia é disso um exemplo paradigmático. Também as diferentes respostas que têm sido adotadas na União Europeia perante as sucessivas crises humanitárias, económicas e financeiras revelam bem essa crise de valores.

Como avalia o atual estado do direito da Concorrência em Portugal?

Em Portugal, o direito da Concorrência tem vindo a assumir uma importância crescente, em grande medida impulsionada pela investigação e pelo sancionamento mais agressivos adotados pela Autoridade da Concorrência. Essa importância crescente é também o resultado da adoção de políticas internas de compliance que começaram por ser ditadas, numa primeira fase, por empresas estrangeiras de grupos multinacionais com presença no nosso país e que agora têm proliferado.

Ainda que muitas vezes existam dúvidas sobre se existirá ou não alguma questão que deva ser apreciada à luz do direito da Concorrência, verifica-se já um maior cuidado em tentar despistar o tema atempadamente.

Porque escolheu esta área?

Acima de tudo, foi por gosto. Gosto pelas matérias, pela sua diversidade, novidade e complexidade. Gosto em procurar soluções criativas, em pensar de forma estratégica, em estudar e aprofundar conhecimentos. Gosto pela necessária articulação com outras áreas de direito. Gosto pelo contacto com diversos setores de atividade. Gosto pelas interações com diversos interlocutores institucionais. Gosto pela vertente internacional. Em suma, nesta área cada caso é um caso, não há monotonia.

Quais são os desafios do setor?

Na minha opinião, os principais desafios do setor da advocacia na área de direito da Concorrência – assim como na advocacia em geral – prendem-se sobretudo com a aquisição e retenção de talento e com a adaptação às novas tecnologias, com destaque para a inteligência artificial.

Estes são dois desafios que, apesar de já não serem novos, estão na ordem do dia e dificilmente poderão ser ignorados. Temos, com efeito, assistido a uma evolução disruptiva quer quanto ao modo de estar na vida e de encarar a atividade profissional, quer quanto às ferramentas tecnológicas de que dispomos. “Sobreviverá” quem souber adaptar-se às novas condições, quem com elas evoluir, já Darwin o explicou.

Qual a importância da advocacia preventiva na área da Concorrência?

Diria que a advocacia preventiva na área de direito da Concorrência está para as empresas e para quem nelas exerce cargos de administração ou equiparados e cargos de direção ou de fiscalização como a medicina preventiva está para as pessoas em geral. As empresas que apostam, por exemplo, na formação efetiva dos seus colaboradores, em auditorias internas de prevenção, na adoção de boas práticas contribuem para evitar males maiores e, por vezes, irremediáveis.

Cumpre lembrar que o direito da Concorrência assenta largamente em conceitos indeterminados, densificados com recurso a diversos instrumentos da União Europeia, designadamente à prática jurisprudencial adotada por quem tem competência para julgar estas matérias. É também uma área de direito em que as diversas nuances factuais importam, podendo mesmo determinar a licitude de uma prática que normalmente seria considerada ilícita. Não é, portanto, uma área de direito que seja facilmente compreendida por não juristas. Pode, aliás, ser até contraintuitiva para quem com ela não estiver familiarizado.

Ora, se somarmos a isto os factos de, nos últimos anos, termos assistido à aplicação de coimas por infrações às regras de concorrência muito avultadas (não raras vezes próximas do limite máximo legal permitido), a vontade de incrementar o valor dessas coimas mediante a consideração do volume de negócios do grupo (e não apenas o realizado em Portugal, como se vinha fazendo) e a crescente proliferação de ações de indemnização pelos danos causados em resultado de infrações às regras de concorrência, é fácil perceber o enorme risco de exposição financeira a que as empresas se sujeitam por não apostarem numa advocacia preventiva. A este risco acresce ainda o risco reputacional, para mais num quadro como o atual em que, muito antes de uma decisão condenatória se tornar definitiva, já foi dada ampla divulgação e cobertura mediática à (suposta) infração.

As empresas têm de fazer uma avaliação jurídica atempada e mais cuidadosa das suas práticas de mercado, para evitar situações que possam culminar em investigações?

Sim, sem dúvida, por todas as razões que já referi quanto à importância da advocacia preventiva na área de direito da Concorrência.

Note-se que essa avaliação não se impõe apenas no que respeita às chamadas práticas restritivas da concorrência que possam estar ou vir a ser – ainda que inadvertidamente – adotadas, mas também no que respeita às matérias transacionais. Desse modo poderá ser evitada a realização antecipada de uma operação sujeita a aprovação prévia (expressa ou tácita) da Autoridade da Concorrência, nos casos em que os critérios de notificação da operação estejam preenchidos.

Por fim, como avalia a atuação da Autoridade da Concorrência?

A Autoridade da Concorrência tem assumido um papel muito importante na sensibilização para o direito da concorrência. Tem-no feito mediante, por exemplo, a realização de diversas sessões formativas e webinars junto de variados stakeholders e a adoção de guias temáticos e de boas práticas, estudos e recomendações. Todas estas atividades são uma manifestação da mudança de postura que a Autoridade da Concorrência entendeu, e bem, assumir. Temos agora uma Autoridade menos voltada sobre si mesma e mais aberta ao exterior, aumentando em muito uma cultura de advocacy sobre concorrência.

Entendeu também a Autoridade que deveria assumir uma posição mais aguerrida, mais arrojada, e também inovadora, no combate a determinadas práticas restritivas. A ânsia e o despropósito com que, por vezes, o fez e a menor qualidade das decisões adotadas nesses casos não se coaduna, porém, com uma Autoridade que tem já alguma maturidade. Este aparente “sancionar por sancionar” acaba por traduzir-se num pior serviço prestado ao direito da Concorrência e, por conseguinte, à própria economia nacional e ao bem-estar do consumidor em geral.

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