Há forma de se saber o lixo que cada lar produz, ajustando a taxa de resíduos à quantidade de lixo não reciclado. A CEO da SPV, Ana Isabel Trigo Morais identifica os problemas mais prementes do setor.
A CEO da Sociedade Ponto Verde (SPV), Ana Isabel Trigo Morais, alerta que é urgente acelerar na transformação do setor dos resíduos. Uma das primeiras alterações que fala é o sistema de faturação: a taxa de resíduos deve deixar de estar associada ao consumo de água e passar a refletir o que efetivamente cada lar produz de lixo indiferenciado, para promover a reciclagem.
No que diz respeito a metas, as embalagens estão bem encaminhadas, superando até alguns objetivos, mas os biorresíduos e resíduos eletrónicos apresentam maiores desafios. E, com os “aterros a chegar ao fim”, é cada vez mais urgente uma nova ordem no setor, com mais atores e mais ação. A expectativa é que os novos planos para o setor, que devem ser conhecidos ainda este ano, definam melhor o papel de cada um e as fontes de financiamento para se executarem as respetivas tarefas.
Tendo em conta as campanhas que têm feito ao longo dos anos, qual é a forma mais eficaz de promover a reciclagem?
São 25 anos de sensibilização ambiental, mas há alguns comportamentos que são sempre validados, inquérito após inquérito. O primeiro é que as crianças têm um forte papel na determinação do comportamento em casa. São as crianças que apelam ao bom comportamento dos pais no que diz respeito à separação das embalagens a aplicação nos ecopontos. Por isso, decidimos expandir a sensibilização para crianças de três anos.
Levamos às creches e aos professores instrumentos para usar em aulas, fazerem desenhos, ensinarem na creche onde é que eles podem já colocar os pacotinhos do leite, os copinhos que usam e as caixinhas de cereais. Aos três anos as crianças já consomem embalagens. Depois, são as mulheres que têm um grande papel, que organizam a vida no lar, e continuam a ser os nossos grandes recomendadores da prática da reciclagem.
Cerca de 25 anos depois do início da atividade da SPV, quais os próximos passos?
Não só é promover hábitos de separação, de reciclagem. Nós já temos 70.000 ecopontos em Portugal. Já temos modelos de recolha novos que estão a ser ensaiados. É preciso trabalhar também na cadeia de valor, convocando aqui inovação, para que se desenhe melhor as embalagens, para ser mais compatível com os processos de reciclagem. Desenvolvemos um conjunto de serviços de abordagem à indústria produtora de bens de grande consumo e utilizadora de embalagem, exatamente para que eles possam transformar os seus processos produtivos.
Há uma grande transformação do tema junto das próprias marcas. Têm vindo a fazer investimentos grandes nos seus processos, concentrando-se na embalagem. Isto também porque os consumidores tornaram-se mais conhecedores e mais exigentes no que diz respeito ao impacto ambiental e à sustentabilidade do que estão a comprar. Quanto mais unimaterial for a embalagem, melhor produto gera no final do processo da reciclagem. E orientamos para a utilização de materiais que sejam altamente recicláveis como são o vidro, o plástico, o papel, o cartão, o alumínio e as madeiras.
A indústria do plástico defende que este material já teve grandes evoluções em termos da capacidade de reciclagem, enquanto substitutos do plástico que agora estão a ser usados não servem da mesma forma para reciclar. Houve um passo atrás com as restrições ao plástico?
Não considero que tenha havido aqui passos para trás, embora também temos que ser rigorosos e perceber que não pode haver condescendências com o greenwashing. As empresas têm que garantir que os materiais que estão a utilizar são realmente materiais mais sustentáveis e diminuem a pegada ambiental, e elas querem ter a prova científica e que lhes dê a segurança de que estão a ir na direção certa. Dos nossos 8200 clientes, já cerca de 30% adotaram medidas de melhoria da embalagem. O que se está a fazer é usar melhor plástico, ou seja, o plástico mais compatível com o processo da reciclagem.
Temos também assistido à redução do tamanho da embalagem. O plástico é cada vez mais fino nas garrafas, diminuindo a matéria-prima que se está a utilizar. Portanto há muitas medidas que nós já temos até certificadas pela SPV, para haver essa segurança de estar no caminho certo. E isso é um caminho em que estamos mas também precisa de ser acelerado, tendo em conta aquilo que são, por um lado, o aumento muito relevante do custo das matérias primas. Sobretudo porque toda a gestão dos resíduos e a reciclagem das embalagens e os processos visam, obviamente, criar matéria-prima secundária que vai entrar no processo produtivo.
Até que ponto a reciclagem é relevante do ponto de vista económico?
Há também aqui uma dimensão económica ligada à capacidade do país de criar valor através do setor dos resíduos. Diria que não há valor ambiental se ele não tiver também um pilar do valor económico. Não é compatível que estejamos a enviar para aterro ou para queima valor económico que, nas nossas estimativas, em Portugal vale 31 milhões de euros. Ou seja, são recicláveis que não estão a ser entregues à SPV e que estão a ir para outros destinos finais.
E como é que poderíamos passar a captar esse valor económico?
Penso que nós temos que alterar radicalmente o modelo de governança do setor dos resíduos em Portugal. E a primeira alteração radical tem que passar por percebermos claramente o que é que estamos a financiar para gerirmos com eficiência os resíduos em Portugal. Quanto custa? Quem paga a quem? Temos que tornar transparente o setor por exemplo para o cidadão. Nós temos a taxa de gestão de resíduos, que é paga pelos consumidores e pelos cidadãos na fatura da água. Tem que sair da fatura da água, para que as pessoas percebam bem que lhes fica mais caro ser um mau reciclador e a fatura é menor quando é um bom reciclador. Aliás, já está na lei que a taxa dos resíduos tem de ser desligada da fatura da água.
Em que medida fica mais caro ser mau reciclador?
Nós, na fatura da água, pagamos uma taxa de gestão de resíduos urbanos que é cobrada e entregue aos municípios, para eles terem recursos para fazerem a limpeza urbana, para tratarem do lixo indiferenciado. O serviço dos ecopontos e dos recicláveis é pago pela Sociedade Ponto Verde. Termos um modelo tarifário em que as pessoas só pagam aquilo que colocam num contentor cinzento, será sempre o futuro. Quanto menos as pessoas colocarem no contentor os resíduos, menos vão pagar, porque as pessoas vão pagar menos quantidades de resíduos.
Mas então a sugestão é, em vez de a taxa dos resíduos estar acoplada à fatura da água, haver uma fatura individual de resíduos.
Claro. É o que acontece na maior parte dos países da Europa.
Então, hoje, se eu produzo mais lixo e se não reciclo, pago o mesmo que o meu vizinho.
Paga o mesmo que o seu vizinho se consumir a mesma quantidade de água. O montante da taxa de gestão de resíduos que paga na sua fatura é calculado de acordo com os litros de água que consome e não de acordo com os resíduos que deposita no ecoponto cinzento. O indexante, ao não ser claramente percebido por cada um, não transforma o comportamento, e a reciclagem vive do comportamento das pessoas e assim perde esse instrumento para poder promover esse comportamento.
Tem que haver preços transparentes, preços justos para custear o tratamento de resíduos e para financiar as câmaras municipais, que de fato têm uma enorme responsabilidade em ter as cidades limpas, os ecopontos limpos, os caixotes limpos, mas também precisam ser financiadas para oferecerem esse trabalho às suas populações.
Então, como se pode operar essa mudança?
Nós temos que criar um sistema novo de cálculo da tarifa e de faturação. Temos de criar instrumentos de medição para que aquilo que se cobra seja efetivamente o que corresponde aos resíduos produzidos por cada lar, cada unidade comercial, cada café e cada espaço.
É possível medir casa a casa os resíduos que cada um produz?
É possível. Já está agora a acontecer um piloto na Maia e estamos a introduzir modelos novos. Hoje em dia, o país, sobretudo, tem a recolha dos recicláveis e dos resíduos indiferenciados por contentorização, que está colocada na rua, e as pessoas deslocam-se ao contentor. Mas há vilas, cidades, aldeias que têm configurações diferenciadas.
Temos que complementar com a recolha porta a porta. Em muitos casos já temos essa recolha e tudo isso é monitorizável. E a nossa vida é tão digital que essa digitalização vai chegar aos resíduos. Com o telemóvel, o cidadão vai abrir a tampa do caixote dos resíduos, e sabe-se quem é que lá colocou os resíduos. Há muita inovação, muita revolução e transformação a fazer na gestão operacional do setor e que já acontece noutros países.
E mais no curto prazo, qual seria a solução considerando a falta de digitalização que afeta algumas pessoas?
Nós temos o registo mapeado de todos os produtores de resíduos, que são os cidadãos. Somos capazes de dizer quantos lares há por freguesia, então somos capazes de dizer quanto é recolhido em determinada zona. Fazemos toneladas versus números de lares.
Então, para já, não conseguiríamos um filtro mais fino, que nos dissesse os resíduos exatamente por lar, mas poderíamos perceber as quantidades por zona.
Sim. Noutros países europeus, já têm sistemas de faturação de resíduos urbanos já muito, muito, muito afinados e também com grande fiscalização para quem não colocar os resíduos no sítio certo.
E quanto tempo é que algo deste género demoraria a implementar aqui em Portugal?
Penso que num ano e meio, dois anos, nós podemos ter isso a funcionar. Mas para que isso aconteça, nós temos de reanalisar as responsabilidades que todos na gestão dos resíduos em Portugal – é também uma questão de governança. Estamos a falar de reavaliar as responsabilidades do Estado, das autoridades administrativas, de quem gere operacionalmente os resíduos (os municípios), e das entidades gestoras, nomeadamente a SPV, no caso das embalagens.
Vamos ter de transformar a forma como integramos a cadeia de valor e definimos as responsabilidades de cada um para atingir metas. Porque ou a infraestrutura que temos evolui com mais atores, ou vamos continuar no global a incumprir a meta de gestão de resíduos produzidos pelas nossas cidades.
Que atores estão a faltar na cadeia?
Trata-se de dotar a Sociedade Ponto Verde da capacidade de operação e de recolha de resíduos complementar aos nossos parceiros. Quando numa região a infraestrutura está a conseguir captar determinados níveis de recicláveis e queremos mais, que nos deixem criar um sistema operacional para ir buscar os recicláveis que a infraestrutura local não consegue recolher, para nós encaminharmos para reciclagem.
Os municípios têm um papel, às vezes não muito reconhecido, que trouxe o país até aqui, mas precisamos de mais e temos que chamar parceiros. Não é substituí-los é, complementarmente, ajudarmos os municípios, a não deixar que os recicláveis vão para aterro.
Os níveis de colocação em aterro são preocupantes?
Em 2035 o país vai ter que ter apenas 10% do total de resíduos urbanos em aterro, e hoje em dia temos 74%. Nós temos pouco mais de dez anos para cumprirmos estas metas. E isso é um problema para o qual não temos conseguido captar atenção suficiente. Daqui a dois ou três anos, vamos assistir ao início do encerramento dos aterros. Os aterros estão a a chegar ao fim.
E quando chegarem ao fim, que alternativas é que existem?
Ou estamos preparados e temos atempadamente um sistema e processo para recolha, não só dos recicláveis, não só embalagens, mas também dos biorresíduos e dos equipamentos elétricos, ou o país vai ter um grande problema. Depois temos de andar à procura de o que é que se faz aos resíduos. Aliás, na Europa há fortes limitações aos movimentos transfronteiriços para resíduos. E ninguém vai querer ser o caixote do lixo de ninguém. Nem pode, pela questão regulatória.
A China foi, durante muitos anos, o destino de muitos resíduos que saíam de todos os Estados-membros da Europa, mas fechou as portas. A economia circular é exatamente o instrumento desenhado a nível europeu para podermos não só captar os recicláveis e matérias primas secundárias, mas para resolver o problema do impacto ambiental que os aterros têm na Europa toda.
Qual é o ponto de situação em Portugal no que toca ao cumprimento de metas? No que diz respeito às embalagens, Portugal tem de assegurar a reciclagem de 65% até 2025 e 70% até 2030. Estamos bem encaminhados?
Para 2022, estimamos terminar o ano a recolher 60% das embalagens colocadas no mercado. Neste momento o fluxo das embalagens é o único fluxo dos resíduos urbanos, que são tipos de resíduos muito variados, que cumpre as metas europeias e as nossas metas nacionais, com exceção do material de vidro. No vidro, a meta que nós deveríamos estar a cumprir é de 70%, e nós, neste momento estamos com 54,4% de taxa de retoma do vidro. Ou seja, de todo o vidro que se coloca no mercado, dos 100%, nós só conseguimos recolher 54,4% para efeitos de valorização e reciclagem.
Já a meta de recolha de recicláveis de papel cartão em Portugal é de 60%. Nós estamos com quase 82%. E, nos plásticos, a meta são 22,5% e nós recolhemos cerca de 52%. Ao mesmo tempo, preocupa-nos muito o facto de estarmos a olhar para 2030 e termos cenários de 80, 85% de cumprimento de metas. Aí vai ser mais complicado. Mas estamos só a falar das embalagens, e as embalagens são apenas 1 milhão de toneladas de resíduos por ano. Temos que tratar dos outros resíduos que não estão a ser tratados e que estão a impedir o país de cumprir as metas.
Que resíduos estão a pressionar o cumprimento das metas?
É urgente recolher os biorresíduos separadamente para os encaminhar para valorização e para compostagem para os retirar dos aterros. Em cinco milhões de toneladas de resíduos urbanos que produzimos em média em Portugal, segundo os dados da Agência Portuguesa do Ambiente, dois milhões são biorresíduos. E esses é que estão a pressionar o incumprimento das metas.
Para cumprir metas ainda temos que intervir profundamente nos elétricos eletrónicos, melhorar muito a conveniência do serviço de recolha e, ainda assim, melhorar a reciclagem das embalagens.
O ministro do Ambiente e o secretário de estado da Energia afirmam que ainda este ano vai ser apresentado um plano estratégico para os resíduos urbanos. A Sociedade Ponto Verde tem sido envolvida na elaboração deste plano? Quais as expectativas?
Há dois instrumentos, nesta altura, que impactam diretamente o nosso futuro enquanto consumidores e cidadãos. Um deles é o Plano Estratégico para a Gestão dos Resíduos Urbanos, que estamos à espera que seja colocado em consulta pública. Nós temos já uma versão, e pensamos que essa versão está a ser trabalhada. Acreditamos que será colocado até ao final do ano, portanto esperemos bem que não haja atrasos. Precisamos dele com a maior brevidade, precisamos dessa política pública para nos orientar.
Estamos ainda à espera de um novo plano de ação para a economia circular, também há-de ser colocado em consulta pública em breve, e onde nós somos obviamente parceiros e atores para operacionalizar. A SPV opera uma licença concedida pelo Estado que já terminou no ano passado, e estamos em período de prorrogação, no fundo à espera que esses instrumentos todos sejam tornados públicos, discutidos e aprovados, que para depois podermos, integradamente, fazer o nosso trabalho, numa altura em que as metas são muito ambiciosas e nós não estamos com a velocidade, do meu ponto de vista, que devíamos ter para alcançar essas metas. Temos muito que fazer e temos muito pouco tempo para o fazer. Por isso é com grande expectativa que nós aguardamos as decisões.
Mas do que conhece do Plano Estratégico para os Resíduos Urbanos, Está está bem encaminhado? Falta algo importante no diploma?
Oiço há mais de quatro ou cinco anos que só podemos cumprir metas de reciclagem de resíduos urbanos se tivermos uma rede de recolha de biorresíduos e ainda não aconteceu. Já devia ter acontecido.
Ou seja, isso tem de estar neste plano.
O nosso problema não é fazer planos estratégicos para o setor. Temos tido vários. O nosso problema é operacionalizar e executar os planos.
E como se dá esse salto? É a Sociedade Ponto Verde que pode fazer esse tipo de pressão?
Somos nós e os nossos parceiros todos. Os planos estratégicos, muitas vezes, são feitos com grandes ambições, mas muitas vezes quem está no terreno já sabe que aquilo é incumprível. Porque não há nem tempo nem recursos para financiar. São grandes infraestruturas que têm que se construir no país.
Não é só o que se vê. Não é só o caixote em casa das pessoas. Não é só um camião para recolha, é uma instalação para tratar esses resíduos, é um processo industrial de transformação, é um mercado que tem de se abrir para aquilo que resultar da transformação. Acelera-se a ação com a definição do quadro legal no plano estratégico para cada um dos seus atores saber muito bem o que é que tem que se fazer e no que é que se tem de investir.
Quanto a financiamento, há boas perspetivas em termos do que está previsto no Orçamento do Estado, no PRR [Plano de Recuperação e Resiliência] e outras fontes?
O país vai viver um ciclo de grandes financiamentos. Nós temos obviamente o Fundo Ambiental, que é o fundo que cobra a taxa de gestão de resíduos. Gostaria muito de ver que a receita, que o Fundo Ambiental recolhe por via dessa taxa, fosse reinvestida na melhoria. Se estou a pagar uma taxa que é um castigo para evitar enviar resíduos para aterro, gostaria que essa taxa fosse integralmente investida nesses serviços da infraestrutura, na capacitação das pessoas, e melhoria do desempenho da recolha de recicláveis.
Segundo ponto. Nós temos o Portugal 2030. O próprio trará muito financiamento para o setor, não sei ainda precisar quanto, ainda estamos a perceber o que é que vai sair daí. Uma das grandes expectativas que o setor tem é que o Plano Estratégico de Gestão dos Resíduos Urbanos venha identificar os instrumentos financeiros para o executar.
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