Emília Vieira defende que as obrigações estão longe de serem uma boa solução para os pequenos investidores. Sobretudo para aqueles que querem investir a longo prazo. E a culpa não é só da inflação.
Há 12 anos fazia nascer a Casa de Investimentos da sua cidade de Braga. Hoje, Emília Vieira é responsável por gerir mais de 130 milhões de euros, sendo que quase um terço está aplicado no Casa Global Value PPR/OIVM, um fundo plano poupança-reforma (PPR) que lançou em outubro de 2020.
Admiradora de Warren Buffett e da sua política de investimento, a gestora acredita que as ações são o melhor ativo para potenciar as poupanças dos investidores no longo prazo. Mas para ver resultados é preciso tempo e paciência que, segundo a gestora, a generalidade dos investidores portugueses não tem, talvez porque foram “muito mal tratados” no passado, recorda Emília Vieira, sublinhando os episódios da PT e do BES.
Numa entrevista de mais de uma hora, Emília Vieira aborda a concorrência e os resultados do PPR este ano, a estratégia e a filosofia de investimento da sua gestão e a aposta na China que, com um peso de 7% na carteira do PPR, é a terceira maior exposição geográfica do fundo. (Pode ler toda a entrevista em texto corrido ou saltar para cada um destes temas carregando no link respetivo).
Ninguém espera plantar um carvalho e ter madeira passado cinco anos. Vai demorar tempo. Estamos a falar de negócios a longo prazo. E os bons negócios só precisam de deixar o tempo passar que os resultados aparecem.
A Casa de Investimentos celebrou na terça-feira 12 anos. Quanto já deram a ganhar aos vossos clientes neste tempo?
A rentabilidade anualizada que temos é extraída da gestão discricionária das carteiras de todos os clientes, que hoje é de cerca de 6,5% líquida de todos os custos e comissões, e líquida do pagamento de dividendos.
Qual é o objetivo definido para o longo prazo?
Conseguir o melhor retorno possível com o nível de risco aceitável.
Como é que isso se aplica?
Procuramos fazer o que fazem os melhores investidores do mundo, como o fundo da universidade da Yale, a Cascate de Bill Gates, o que faz Buffett na Berkshire Hathaway e o que faz o fundo soberano da Noruega que, por exemplo, investe até 75% em ações, 25% em obrigações e tem 3% em imobiliário, que é completamente o contrário daquilo que os investidores em Portugal gostam.
Replicam o que esses investidores fazem nas vossas carteiras?
Acreditamos que o que é bom para as melhores famílias e para estas instituições também é bom para clientes individuais particulares. Mas os investidores só devem de investir nestas empresas o dinheiro que não precisam no dia-a-dia, o dinheiro que não precisam no curto prazo. E devem estar preparados para estarem investidos cinco ou mais anos para conseguirem obter bons retornos.
Quem continuar a investir em obrigações de governos vai perder dinheiro, mesmo com emissões de dívida a 3% e 4%. Vai perder dinheiro para a inflação.
Warren Buffett e a sua filosofia de “investimento em valor” são encarados pela Casa como um farol na vossa política de investimento. Buffett tem um recorde de ganhos anuais acima dos 20% nos últimos 50 anos, o dobro do que o mercado ofereceu. Também é esta a vossa meta?
Não será possível manter esse nível de retornos. Ao longo dos últimos 122 anos, as ações deram uma rentabilidade de cerca de 5,3% acima da inflação. Assim, acredito que apontar para uma rentabilidade de 7%, 8%, é possível de alcançar. Mas mais importante que apontar um número é perguntar que alternativas há ao investimento em ações. E quando hoje olhamos, por exemplo, para as obrigações de governos, vemos obrigações a dez anos emitidas há um ano pela Alemanha a caírem 20%, as obrigações a 30 anos do Reino Unido a caírem 48%, e uma obrigação do governo austríaco, com um cupão de 0,8% a 100 anos, emitida na mesma altura que nós lançamos o PPR (junho de 2020), a cair 70%.
É por isso que o PPR da Casa só investe em ações?
Um fundo PPR, que deve ter oito ou mais anos, além de oferecer a flexibilidade de as pessoas o resgatarem quando entenderem, é naturalmente construído com o objetivo de promover um plano de poupança de longo prazo para a reforma, que pode e deve ter ações, que são os ativos que mais rendem no longo prazo.
Não acredita que as obrigações sejam um bom ativo para investir nos próximos dez anos?
Estamos a ver obrigações de governos a caíram em média 14%. As obrigações a high yield chegaram a cair mais de 20% e um portefólio típico 60/40 está a cair 21%, quase tanto quanto uma carteira global de ações. As obrigações que tinham um rendimento implícito até à maturidade muito baixo, agora até foi alargado, mas em função do atual nível de inflação oferecem um rendimento real negativo. Não é um bom investimento. E quem continuar a investir em obrigações de governos vai perder dinheiro, mesmo com emissões de dívida a 3% e 4%. Vai perder dinheiro para a inflação.
“Temos uma carteira para qualquer mercado”
Cerca de 9,5% dos clientes do fundo PPR são menores de idade, refere Emília. Para a gestora, este é um voto de confiança na equipa de gestão. Porém, não passa despercebido aos investidores que, nos últimos 12 anos, as carteiras de gestão discricionária da Casa de Investimento registaram um desempenho abaixo da média das ações mundiais (MSCI World).
Há no mercado mais de 100 PPR à disposição dos portugueses. O que vos distingue dos vossos pares?
O que nos distingue não é apenas a qualidade da carteira e a certeza que compramos as empresas a desconto. É uma transparência total com os nossos clientes sobre onde investimentos o dinheiro. Passamos-lhes regularmente informação sobre o que fazemos na Casa para perceberem o que estamos a fazer. Acredito profundamente que o conhecimento gera confiança.
Até ao final de outubro, todos os fundos PPR estavam a registar perdas em 2022*. Porém, o PPR da Casa de Investimento foi dos que mais desvalorizou este ano. Porquê?
Estão todos a perder, quer tenham ações ou obrigações. E alguns têm a vantagem de não estarem a perder muito porque têm ativos sem cotação, sem liquidez, e isso faz com que estejam a perder menos.
Sou uma otimista consciente. Mas não sou otimista quando compro empresas. Sou realista. Gosto de comprar a pessimistas para vender a otimistas.
É isso que justifica alguns PPR estarem a perder menos do que o vosso?
Não necessariamente. Há com certeza produtos com mais rentabilidade, mas estamos a medir o curto prazo. Estamos a falar de PPR que investem em papel comercial que nem têm cotação ou que têm uma fatia da carteira em private equity que só saberão quanto verdadeiramente valem dentro de dez anos quando terminarem os contratos. Estar investido em ativos sem liquidez dá extremamente jeito em momentos de crise.
Mas o desempenho passado da carteira da Casa mostra que também estão a perder para o vosso índice de referência, o MSCI World.
Não temos necessidade de fazer o que está a fazer este ou aquele índice. E esperamos que os nossos clientes também não estejam. Esperamos que estejam connosco pela riqueza que conseguimos criar para os próximos cinco a dez anos e não para o próximo ano. A nossa carteira não tem muitos dos setores que estão a ser muito rentáveis no ano. Não temos energia, não temos matérias-primas e não temos bancos.
Sente que isso foi um erro?
Não. É uma opção da gestão. Temos uma carteira para qualquer mercado. Uma carteira altamente preparada para um período de inflação elevada. As empresas que temos em carteira tiveram um crescimento de receitas de 16% por ano nos últimos cinco anos. As empresas do índice MSCI World tiveram, em média, um crescimento de 4%. A margem operacional que as “nossas” empresas tiveram nos últimos cincos anos foi de 24% enquanto as do índice foi de 12%, o que significa que o impacto que a inflação terá nas nossas empresas será muito menor quando comparado com empresas com margens mais reduzidas.
“Gostamos de ter empresas que tenham vantagens competitivas e duráveis”
A carteira do fundo PPR tem atualmente 27 empresas onde se destacam a Amazon, a Alphabet e a LVMH. No último ano, a equipa de gestão da Casa de Investimentos iniciou a aposta em empresas do setor de luxo e afastou-se de empresas mais cíclicas, como a maior fabricante de cervejas mundial, a AB InBev, que deixou de fazer parte do portefólio do fundo.
Como se define enquanto investidora e como gestora de uma carteira de investimentos?
Sou uma otimista consciente. Mas não sou otimista quando compro empresas. Sou realista. Gosto de comprar a pessimistas para vender a otimistas. E isso só é possível com uma política de risco muito apertada e pensar a longo prazo. Ninguém espere plantar um pessegueiro e no ano seguinte colher vários pêssegos. Vai demorar quatro ou cinco anos para isso acontecer. Ninguém espera plantar um carvalho e ter madeira passado cinco anos. Vai demorar tempo. Estamos a falar de negócios a longo prazo. E os bons negócios só precisam de deixar o tempo passar que os resultados aparecem.
Significa que é muito possível que dentro de dez anos olhemos para a carteira do fundo e encontremos as mesmas empresas que tem hoje?
Era sinal de que tínhamos acertado em cheio. Mas as empresas e os negócios evoluem e nós temos de acompanhar a dinâmica dessa evolução. Nós tivemos Bank of America durante dez anos e foi um negócio excecional para os nossos clientes. A Alphabet [dona da Google], apesar do recuo que teve, continua a ser um grande investimento para o longo prazo.
Qual foi o melhor investimento que fizeram?
Fizemos uma série de bons investimentos. O Bank of America foi um deles. Fizemos um investimento muito bom em Microsoft quando o comprámos e muito mau quando o vendemos há uns anos; e já voltámos a comprar em março de 2020.
E o pior?
Tivemos a Tesco, que enfrentou um escândalo contabilístico, e que devíamos ter vendido mais cedo. E isso fez-nos ser hoje mais rápidos a atuar. A IBM, que foi um investimento que tivemos por algum tempo. Não tanto por termos vendido com uma rentabilidade negativa mas porque foi um investimento em proporção elevada que tivemos por cinco anos que nos fez não aproveitar a subida do mercado.
Temos olhado para empresas de setores mais defensivos, cuja previsibilidade dos seus cash-flows a longo prazo é muito fácil de identificar. É disso exemplo as empresas do setor da saúde.
De que forma estes maus negócios influenciaram a sua gestão?
Tivemos alguma deriva na carteira entre 2016 e 2018, comprando alguns títulos mais cíclicos, mas sobretudo muito baratos – que se justificava estarem muito baratos, tanto na altura como ainda hoje. E por isso reposicionamos a Casa naquilo que tinha sido o seu início: grandes empresas e marcas muito fortes com grandes vantagens competitivas.
No último ano fizeram uma aposta no mercado do luxo, abrindo posições em empresas como a LVMH e a Estée Lauder, pesando já cerca de 8% da carteira do fundo. Porquê?
Estas empresas estavam a cotar a múltiplos elevados e nós já as seguíamos há uma série de anos. Nunca quisemos pagar múltiplos elevados e tanto uma como outra transacionam sempre a prémio por serem negócios altamente rentáveis. São empresas ainda familiares, muito bem geridas e com um forte portefólio de marcas. Com a guerra na Ucrânia e com a ideia de que estes ativos têm “ventos favoráveis” pelas costas, aproveitámos o período de crise para comprar LVMH entre março e maio, assim como Estée Lauder.
A carteira do PPR tem atualmente 27 empresas de grande capitalização bolsista (menos uma face há um ano). Contam abrir uma nova posição nos próximos seis meses?
Temos olhado para empresas de setores mais defensivos, cuja previsibilidade dos seus cash-flows a longo prazo é muito fácil de identificar. É disso exemplo as empresas do setor da saúde, onde já temos algumas em carteira, mas mais na área da tecnologia, como a Medtronic e a Intuitive Surgical. No entanto, achamos que estas empresas ainda estão a cotar com múltiplos elevados.
Quantas empresas têm neste momento na vossa shortlist?
Oito empresas.
Houve alterações significativas na vossa filosofia de investimento nos últimos meses, em função da evolução da economia?
Temos uma filosofia de investimento de quality value. Queremos ter ativos de grande qualidade. Gostamos de ter empresas que tenham vantagens competitivas e duráveis a prazo, ao mesmo tempo que apresentem balanços muito fortes. Gostamos de rios que correm para mares. No último ano saímos de negócios mais voláteis, mais cíclicos. Procurámos recentrar na qualidade a um preço sensato.
“Não me sentiria desconfortável em aumentar a exposição à China”
Nos últimos dois anos, a rentabilidade do PPR tem sido fortemente penalizada pela exposição da carteira ao mercado chinês, como resultado da queda de 69% das ações da Alibaba e de 49% da Tencent. Porém, a equipa de gestão não só não vendeu como tem aproveitado para reforçar ambas as posições.
No final de outubro, a carteira do PPR tinha uma exposição de quase 7% ao mercado chinês, era a terceira maior posição geográfica do fundo com apenas dois títulos: Alibaba e Tencent. O que vos leva a estar tão otimistas no mercado chinês e particularmente nestes títulos?
A China pesa 7% no fundo mas na economia mundial pesa 20%.
Isso quer dizer que vão aumentar a exposição à China?
Não. Não queremos expor a carteira do fundo à China ao nível que tem na economia mundial porque há um risco político e há um nível de diversificação que é extremamente importante ter numa carteira de investimentos. Mas, com a informação que temos hoje disponível, não me sentiria desconfortável em aumentar a exposição à China. Não o vamos fazer, mas não me criava qualquer desconforto.
Mas considera a possibilidade de nos próximos dez anos aumentar a exposição do fundo ao mercado chinês?
Nunca iremos ter uma exposição grande em emergentes. Nós gostamos de estar investidos na Europa e nos EUA, sobretudo nos EUA que é como um grande oceano onde há “peixe abundante e grande”. Gostamos do ambiente à volta dos negócios onde é muito mais flexível contratar e despedir e isso é melhor para empresas e para os colaboradores. E sobretudo acho que é um ambiente em que os negócios prosperam melhor. Teremos sempre uma posição muito mais forte nos EUA e na Europa.
Não nos podemos esquecer que os investidores em Portugal foram muito mal tratados no passado. BES e PT, por exemplo, foram muito maus exemplos que fizeram as pessoas perder dinheiro levando-as a criarem dúvidas em relação ao mercado acionista. Hoje ainda é difícil esses investidores confiarem no mercado.
Fala muito da qualidade da gestão como um elemento crucial na escolha das empresas em que investe. Em ambas as empresas chinesas, a gestão dá-lhe confiança?
Tanto a Alibaba como a Tencent são empresas muito bem geridas. A Tencent, por exemplo, é a empresa que liga toda a gente na China através do WeChat. É o maior player de jogos a nível mundial, tem uma gestão absolutamente fantástica e tem um portefólio de investimentos que a tornam num dos maiores venture capitalist do mundo com investimentos em mais de 700 empresas a nível mundial.
No passado, a Casa de Investimentos chegou a ter posições em algumas empresas portuguesas mas a carteira do PPR nunca teve títulos nacionais. Porquê?
Porque queremos poder entrar e sair do mercado num dia sem ter constrangimentos e com a dimensão que temos já não conseguíamos fazê-lo. Da última vez que o fizemos através de um investimento na Sonae, tivemos alguns dias para vender a posição para não termos impacto no preço. E porque também não são negócios com o mesmo perfil de crescimento, com as mesmas rentabilidades e com a mesma capacidade de gestão que vemos noutras geografias.
Mas já viram essas potencialidades no passado.
Já tivemos Sonae, já tivemos EDP na altura da crise da dívida soberana em que mais do que duplicámos o investimento, e já tivemos BPI e BES. Vendemos BES entre janeiro e início de fevereiro de 2014, um negócio que me levou a escrever o artigo “Banca atração fatal” que mostra que um banco ou qualquer instituição não deve adiar a apresentação de contas, que é uma obrigação perante os acionistas e todos os stakeholders. Não nos podemos esquecer que os investidores em Portugal foram muito mal tratados no passado. BES e PT, por exemplo, foram muito maus exemplos que fizeram as pessoas perder dinheiro levando-as a criarem dúvidas em relação ao mercado acionista. Hoje ainda é difícil esses investidores confiarem no mercado.
* A pergunta foi elaborada tendo em conta apenas o desempenho dos fundos dos associados da APFIPP, que agrega a maioria do mercado, deixando de fora outros fundos como o Sixty Degrees PPR/OICVM Flexível, que até outubro era uma exceção com ganhos de 0,55% em 2022. (Informação adicionada a 12 de dezembro de 2022.)
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