“Tesla veio criar uma disrupção no mercado automóvel. Onde está a Tesla da Europa?”

Francisco Veloso, reitor do INSEAD, está preocupado com o impacto de uma possível vitória de Donald Trump para a Europa, mas considera que pode "criar um ímpeto reformista".

Incapaz de “surfar a fronteira de algumas das novas áreas de inovação”, a Europa está obrigada a reinventar-se, afirma Francisco Veloso, reitor do INSEAD. “Tivemos a Tesla a entrar nos Estados Unidos, a criar disrupção no mercado automóvel americano e a criar alguma dinâmica de movimentação. Onde é que está a nossa Tesla?”, questiona em entrevista ao ECO.

Francisco Veloso, que vem a Portugal para participar nas Conferências do Estoril, que decorrem esta quinta e sexta-feira no campus da Nova SBE, em Carcavelos, considera que a eletrificação automóvel “será um bom barómetro para perceber a capacidade da indústria europeia “se renovar e adotar novos modelos e novas abordagens que sejam capazes de vingar”.

O aumento das tarifas aduaneiras à China pode permitir ganhar algum tempo, mas “pensar que é isso vai resolver o problema é totalmente errado”, considera o antigo reitor da Imperial College Business School e da Católica Lisbon School of Business & Economics.

Francisco Veloso mostra preocupação com uma possível vitória de Donald Trump, mas admite que se a Europa sentir que já não pode contar com os EUA, isso pode criar “um ímpeto reformista e uma dinâmica de inovação, que não tem sido capaz de ter até agora”.

“As empresas portuguesas devem continuar a tentar inovar e a tentar novos caminhos, que se abrem no contexto das alterações significativas [em curso], seja devido à IA, à sustentabilidade, à reorganização das cadeias de valor”, defende.

Tivemos uma pandemia e o regresso da guerra à Europa, depois uma forte subida da inflação e agora um conflito no Médio Oriente e um crescimento do protecionismo entre os principais blocos. É um tempo especialmente difícil para ser gestor?

Estamos a comparar com o quê. Se pensarmos na Segunda Guerra ou na Guerra Fria… São tempos diferentes, com uma combinação destes fatores. Não é fácil ser gestor hoje em dia, precisamente porque há muito mais volatilidade à nossa volta. Falamos daquele mundo VUCA [sigla em inglês para volatilidade, incerteza, complexidade e ambiguidade]. Qualquer rastilho ateia, de repente, um enorme novo foco de fogo significativo e as coisas mudam rapidamente. Depois são amplificadas a nível global por causa do efeito das redes sociais.

Para quem está a tomar decisões e quem tem responsabilidades de custódia de uma organização, uma empresa, uma universidade é um grande desafio lidar com estas incertezas e mudanças rápidas. Mesmo a inflação, que como disse subiu de forma significativa, havia muita gente a dizer “isto vai andar aqui durante um tempo” e, de repente, está-se a falar outra vez de inflação abaixo de 2%.

A Europa não tem sido capaz de surfar a fronteira de algumas destas novas áreas de de inovação.

Este contexto abre, ainda assim oportunidades para as empresas. Como é que as empresas portuguesas se deviam posicionar?

Abre porque há uma maior fragmentação das cadeias de valor. Havia uma concentração de cadeias de valor em algumas partes do mundo, que algumas delas traziam efeitos adversos para o nosso tecido económico, por não ser um ser tecido com um nível de competitividade económica, nível de produtividade e nível de sofisticação dos nossos produtos que permitisse competir a determinado tipo de escalas. Neste momento, com algumas empresas a pensarem como é têm cadeias de valor num contexto regional, para poder lidar melhor com esta volatilidade mundial, isso abre algumas oportunidades para empresas portuguesas.

Em geral, momentos de incerteza e de turbulência criam sempre oportunidades para novos modelos, para novas abordagens. Isso é tão válido para Portugal como é válido para a China, para a França ou para o Brasil. Se nós olharmos para a grande crise económica de 2008/2009, foi um período de enorme inovação e de muitas empresas novas, incluindo o WhatsApp, o Airbnb, etc. P

As empresas e a economia portuguesa devem continuar a tentar inovar e tentar novos caminhos que se abrem também no contexto destas alterações significativas, seja devido à IA, à sustentabilidade, à reorganização das cadeias de valor, porque todas essas dimensões abrem novas oportunidades.

A economia europeia floresceu durante o período de abertura comercial global, tirando partido da sua capacidade industrial e exportadora, mas deixou-se ficar para trás tecnologicamente face aos EUA e à China e perdeu capacidade competitiva face a estes dois blocos. O modelo económico europeu deixou de ser viável?

Eu não poria as coisas dessa forma. Acho que é um problema em agregado e que é mais visível por causa de algumas dessas mudanças tecnológicas. Nós temos empresas europeias extraordinárias e muito boas. Não temos é empresas globais e visíveis, como uma Google, uma OpenIA, ou uma Baidu, na China, etc, que de facto ganharam uma visibilidade e uma escala significativa.

O facto de não haver mega empresas, por exemplo, nunca impediu que houvesse um estrato de empresas médias na Alemanha, que tem sido a espinha dorsal da economia alemã. Há essa questão a nível tecnológico de ponta, em que a Europa não tem sido capaz de surfar a fronteira de algumas destas novas áreas de de inovação.

Um dos problemas importantes é a capacidade de escalar e de desenvolver empresas a forte velocidade, tendo em conta alguma desta fragmentação do mercado. Com esta configuração política que existe na Europa, conseguir fazer isso não é fácil.

Mas porquê essa incapacidade?

Isso tem mais a ver com a questão do mercado interno, mais do que com a incapacidade de inovação. O que acontece é que muitas das empresas europeias que têm sucesso, quando querem escalar, escalam para os Estados Unidos. Muitas das ideias que o relatório de Mario Draghi trouxe sobre a necessidade de acelerar a integração do mercado europeu são, de facto, muito significativas.

Um dos problemas importantes é a capacidade de escalar e de desenvolver empresas a forte velocidade, tendo em conta alguma desta fragmentação do mercado. Com a configuração política que existe na Europa, conseguir fazer isso não é fácil.

Essa fragmentação política vai ser o grande obstáculo a que muitas medidas, por exemplo as sugeridas no relatório Draghi, vejam a luz do dia?

Vai ser uma dificuldade grande, de facto. Agora, a forma como isso vai evoluir vai depender um bocadinho também do que vai acontecer com algumas das indústrias europeias. Uma das áreas onde nós estamos a ver isso de uma forma muito visível é na indústria automóvel. A eletrificação da indústria automóvel e a forma como a Europa for capaz de lidar, ou não, com isso vai ser um bom barómetro para perceber a nossa capacidade de termos a indústria europeia a ser capaz de se renovar e de adotar novos modelos e novas abordagens que sejam capazes de vingar.

Tivemos a Tesla a entrar nos Estados Unidos, a criar disrupção no mercado automóvel americano, e a criar alguma dinâmica de movimentação. Onde é que está a nossa Tesla?

A Europa está a responder com medidas protecionistas, como o aumento das tarifas aduaneiras, nomeadamente à China. O caminho deve ser esse ou é o caminho errado?

O caminho poderia ser esse, se isso for para ganhar algum tempo para deixar que algum do desenvolvimento emergente que esteja a evoluir possa florescer o suficiente para ganhar competitividade. Se for feito para ganhar um bocadinho de tempo, pode ser uma abordagem útil. Agora, pensar que é isso vai resolver o problema, acho que é totalmente errado.

Eu estive na China a semana passada. Pode haver subsídios estatais, mas eu estive numa sessão em que estava uma empresa de produção de veículos automóveis chineses a dizer que já chegaram a um milhão de veículos. Não é nenhuma das empresas que conhecemos aqui.

Há um grande dinamismo.

Uma enorme inovação a acontecer e novos entrantes a fazerem coisas. Tivemos a Tesla a entrar nos Estados Unidos, a criar disrupção no mercado automóvel americano, e a criar alguma dinâmica de movimentação. Onde é que está a nossa Tesla? Onde é que está a nossa BYD, a nossa Gilly a investir significativamente? E o que nós ouvimos continua a ser: “Lá está, não sei se vamos conseguir fazer a transição, etc”. E onde está o novo entrante?

A falta de crescimento pode vir a criar um problema existencial para o projeto europeu?

Não acho que seja um problema existencial. Tem mais a ver com alguma perda de proeminência global, porque deixamos de ser um ator com o mesmo nível de relevância que tivemos no passado. Vamos lá ver, nós vamos continuar a ter empresas excelentes. Se nós olharmos, por exemplo, para o mercado de luxo francês, nunca teve tanta força. Nós conseguimos ter algumas indústrias e empresas com uma enorme capacidade a nível global e vamos continuar a ter.

Ainda assim, de alguma forma têm de se reinventar.

Tem que haver essa reinvenção continua, esse aspeto é bastante importante. A Europa estava a fazer uma aposta ao nível, por exemplo, da transição para uma lógica sustentável mais significativa e mais visível a nível europeu. A tentar liderar nesse espaço. E agora abrem-se questões e perguntas. Seria uma oportunidade perdida.

Seria pelo menos uma área onde claramente a Europa poderia estar, e ainda está em muitas dimensões, na fronteira, e poder continuar a pressionar para ser uma das dimensões em torno da qual há essa renovação, essa inovação, esse dinamismo se poderia materializar.

Uma vitória de Donald Trump nas eleições norte americanas pode complicar as coisas para a Europa.

Não é o resultado que eu penso que seria o melhor para o mundo, mas o impacto na Europa é difícil de prever. Será que se a Europa sentisse que não conta com os Estados Unidos, com uma série de respaldos económicos, até militares, não iria criar aqui um ímpeto reformista, de dinâmica de inovação, que não tem sido capaz de ter até agora. Não há dúuvida que, do ponto de vista imediato, os efeitos são preocupantes.

Estamos a falar de uma ligação histórica e de uma confiança que existe entre estes dois blocos, que poderia ser de alguma forma ameaçada ou afetada por um posicionamento mais isolacionista dos Estados Unidos, que Trump poderia voltar a trazer para cima da mesa. Do ponto de vista da segurança mundial, da segurança da Europa, não acho que seja um bom desenvolvimento.

Sobre a parte do efeito económico, acho que é difícil de prever exatamente como é que a médio prazo se poderia manifestar na Europa. Depende da forma como a Europa reagir e tentar fazer de uma situação difícil uma oportunidade para acelerar algumas das suas dinâmicas de reforma e de inovação.

Vimos recentemente o prémio Nobel da Economia ser atribuído a três economistas pelo trabalho académico realizado sobre o tema de desigualdade entre países e a importância das instituições políticas e económicas. Uma vitória de Donald Trump pode resultar num enfraquecimento das instituições americanas?

O sistema universitário americano é um sistema muito robusto e com uma enorme capacidade e resiliência. Não temo pelas instituições americanas, do ponto de vista da sua robustez e capacidade de viverem quatro anos de uma lógica económica e política se calhar com alguma adversidade em relação ao papel das universidades.

O impacto que pode vir a ter é diminuir a atratividade da América para a atração de talento, porque as pessoas vão sentir a América como sendo uma coisa mais distante, mais beligerante e, portanto, menos atrativa como local para viver. Isto do ponto de vista até das elites mais intelectuais. Vai afetar, mas não de uma forma absolutamente preocupante.

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