Tiago Félix da Costa, sócio da Morais Leitão, considera que os tribunais estão “na mesma” há anos e anos e apelida de 'criminoso' existirem tantos crimes no nosso ordenamento jurídico.
Tiago Félix da Costa está na Morais Leitão desde 2007 e é responsável por uma das equipas de criminal, contraordenações e compliance e pela equipa de data protection. Sem rodeios, o sócio desde 2015 fala da forma como as medidas de coação são aplicadas como ‘um castigo’, considera que os tribunais estão “na mesma” há anos e anos, apelida de ‘criminoso’ existirem tantos crimes no nosso ordenamento jurídico e admite que gostaria muito de poder dialogar com juízes, procuradores e polícias. E faz o aviso: o processo penal não pode funcionar como “corretor social”. Em 2017, recebeu o prémio “40 under Forty Awards” atribuído pela revista Iberian Lawyer e em 2019 foi “Client Choice” na categoria de “Litigation”.
Que diferenças aponta entre advogar agora e há dez anos, na área do contencioso?
Julgo que a crescente banalização do processo e das regras processuais, a pressão a que os magistrados estão sujeitos em termos de performance, de número de decisões e de celeridade, e a crescente generalização da ideia de que o direito, processual ou substantivo, terá de alcançar uma certa justiça em cada caso concreto, obriga a que o advogado de barra acrescente à sua dimensão técnica, dimensões de comunicação e de estratégia. É óbvio que estas dimensões sempre existiram, mas julgo que hoje são mais importantes do que eram. Apesar da ilusão da verdade material, os processos são muitas vezes confrontos de narrativas – a narrativa da acusação e da defesa ou a narrativa do autor e do réu – e essa realidade obriga a que o advogado se adapte: que escreva menos e melhor, que fale mais aos seus interlocutores, que conheça as realidades da indústria ou do setor de atividade dos seus clientes e que consiga fazer a mediação dessas realidades e das suas particularidades para os juízes, procuradores ou autoridades administrativas em processo de contraordenação, que faça mais uso das tecnologias e dos meios de comunicação e, sobretudo, que tenha ideias bem definidas no que respeita à estratégia ou se se quiser à narrativa.
Estar na área de contencioso num escritório como a Morais Leitão (de grande dimensão) traz-lhe limitações devido ao conflito de interesses?
Os nossos limites são os limites saudáveis da deontologia e da nossa forma de estar. Estar no contencioso deste escritório nunca me limitou. Pelo contrário, ganhei um mundo de conhecimentos, de experiências e de relações muito enriquecedoras com os nossos clientes, com os meus sócios, com os nossos advogados e com os nossos colaboradores, mas também com magistrados e outros profissionais do foro.
O direito penal já não é um direito de intervenção mínima?
Todos os advogados aprenderam que sim, mas não me parece que assim seja. É “quase criminoso” existirem tantos crimes no nosso ordenamento jurídico. Mas é muito português resolver questões culturais e sociais com leis e com a criminalização de condutas. Perdeu-se uma visão sistemática e coerente na definição e na proteção calibrada dos bens jurídicos essenciais da comunidade, o que banaliza o direito e o processo penal e desvirtua a sua natureza de ultima ratio.
Qual é a maior crítica que faz ao nosso sistema judicial?
O sistema está a atravessar uma crise de legitimidade e não está a saber lidar com a sua mediatização. Aliás, a crise de legitimidade é crescente e resulta da desvalorização e manipulação recorrente das regras processuais e da sua aplicação em função de um resultado. A decisão judicial deixou de ser o resultado do processo e o processo passou a ser o resultado da decisão judicial, uma vez que as regras processuais vão sendo interpretadas e aplicadas de forma a alcançar uma decisão pré-definida. A ordem dos fatores deve ser sempre a inversa: a decisão judicial é o resultado de um processo e, mais importante, resultado de um processo justo. A ideia fundamental de que um homem só pode julgar outro, um seu igual – privando-o da liberdade ou limitando outros dos seus direitos –, com base nas regras que a comunidade previamente e democraticamente definiu para o efeito, está a ser substituída pela ideia de que é justo o que “eu” considero que é justo ou o que os jornais e a opinião pública “dizem” que é justo.
Ainda mais nos processos mediáticos…
Sobretudo no processo penal, e em particular nos chamados processos mediáticos, assiste-se a uma ideologização sem precedentes, como se o processo penal se destinasse a funcionar como um corretor social, uma fonte de normalização de comportamentos, como se não pudessem existir pessoas que alcançaram sucesso ou fortuna sem praticar crimes de colarinho branco, como se as empresas e o dinheiro que geram fossem algo intrinsecamente errado. A justiça vive muitas vezes numa pretensa clivagem simplista entre bem e mal e cercada por uma voragem sensacionalista, que ou empobrece o procedimento, o processo enquanto fundamento de legitimidade da decisão judicial, ou exige uma coragem e uma abstração sobre-humana aos juízes.
Sobretudo no processo penal, e em particular nos chamados processos mediáticos, assiste-se a uma ideologização sem precedentes, como se o processo penal se destinasse a funcionar como um corretor social, uma fonte de normalização de comportamentos.
E isso implica também com a prova?
Assistimos à vulgarização de meios de obtenção de prova, como buscas e apreensões – com autênticos exercícios de pesca de arrastão digital – e escutas telefónicas, que deveriam ser utilizados em último caso, quando os outros meios de investigação fossem insuficientes. Quando comecei a advogar ainda se vislumbrava um esforço de fundamentação do recurso proporcional a este tipo de meios de obtenção de prova, atualmente há processos que praticamente começam com buscas e escutas, sem que nada, nada em termos técnicos entenda-se, o justifique.
E talvez por isso, essa distorção do processo às mãos de uma ideia privada ou populista de justiça explique que as medidas de coação no processo penal pareçam começar a funcionar como castigo. Castigo para a falta de colaboração do arguido esperada pelos magistrados – como se não fosse um direito fundamental um arguido remeter-se ao silêncio –, castigo que acautele a possibilidade de o arguido vir a ser absolvido porque falta prova, castigo que acautele possibilidade de o juiz de julgamento aplicar uma pena não privativa da liberdade ou ainda a possibilidade, agora cada vez mais remota, de os processos prescreverem.
As medidas de coação no processo penal pareçam começar a funcionar como castigo.
Passou-se da ideia de que os “poderosos safam-se sempre” para a ideia de que “os poderosos não se podem safar custe o que custar”, com enormes custos para o processo enquanto conjunto de atos previamente ordenados delimitados por normas legais e limitados por diversos direitos fundamentais. E assim, em muitos casos, as pessoas estão já condenadas antes de o julgamento começar. Condenadas no processo e fora dele.
Entre o juiz e o arguido, surgiu uma nova figura, que é a dos media como veículo de uma opinião pública exacerbada e muitas vezes distorcida nas e pelas “redes”. Este triângulo vicioso, se triunfar, muda tudo. O pior inimigo da justiça é o justicialismo. A aderência do sistema aos seus princípios fundadores determina-se precisamente nas horas em que a afirmação desses princípios é inconveniente ou impopular.
Como estão os tribunais portugueses, na sua opinião?
Estão essencialmente atolados e perdidos no tempo. Atolados em processos, muitos dos quais deveriam ser resolvidos fora dos tribunais, com recurso a meios alternativos de resolução de litígios ou, pelo menos, em processos judiciais muito simplificados. Mas atolados também em burocracia e em atos absolutamente inúteis ou ineficientes. E depois estão perdidos no tempo. Na sua essência, a nossa realidade judiciária pouco mudou em décadas. Dou-lhe um exemplo: não há muito tempo informei um cliente norte-americano que num dado processo-crime tinha mudado o procurador titular do inquérito e o cliente perguntou-me: e o staff do procurador mudou ou é o mesmo? O cliente não queria acreditar quando lhe expliquei que o senhor procurador não tinha um staff. E é isto. Continuamos a criticar e à espera de grandes resultados, mas sem evoluir e sem meios. Às vezes fico incrédulo com as críticas que se fazem à demora de certos processos. É preciso não ter noção da complexidade, da burocracia e da falta de meios. E quando falo em falta de meios não falo apenas em dinheiro, mas em organização, recursos humanos, instrumentos, ferramentas e cultura. Exigimos tudo à justiça e aos tribunais, mas não cuidamos muito deles, o tempo passa e as coisas ficam mais ou menos na mesma. Há quem goste assim: tudo na mesma.
Exigimos tudo à justiça e aos tribunais, mas não cuidamos muito deles, o tempo passa e as coisas ficam mais ou menos na mesma. Há quem goste assim: tudo na mesma.
Pensando na “santíssima trindade” de tribunais: Ministério Público, advogados e magistrados judiciais. Que críticas faz a estas três classes?
Temo sempre as generalizações. Mas se se pode apontar alguma coisa assim genericamente, então dirijo as mesmas críticas às três classes: conformismo, conformismo com a “justiça” que temos e falta de capacidade de diálogo. Mesmo fora dos espartilhos institucionais há poucos fora onde estas classes profissionais possam conversar, debater e refletir conjuntamente. Não imagina o quanto gostava de poder dialogar com juízes, procuradores, com instrutores de processos contraordenacionais, órgãos de polícia criminal e funcionários judiciais.
Accountability. Onde é que isso está na magistratura? Para a magistratura?
Essa é uma questão muito interessante e complexa, com várias dimensões e que exige uma análise aprofundada e sistémica, pois a noção de responsabilização, de prestação de contas das magistraturas não pode fazer perigar outros valores como a independência e a liberdade para investigar, julgar e decidir com base na lei e na consciência. É um equilíbrio difícil, mas esses valores também não podem significar a ausência total de accountability, como refere. É mais uma área em que é preciso mudar e evoluir sem ceder às pressões expectáveis para nada mudar ou para mudar tudo.
Regressou já aos tribunais no pós-confinamento. Sente-se seguro?
Regressei finalmente e sinto-me tão seguro quanto se pode estar. Não tenho sentido problema nenhum, além dos incómodos relacionados com as máscaras e viseiras. O problema maior é o tempo que vamos precisar para recuperar um atraso de meses.
As medidas de higiene sanitária estão a ser respeitadas?
Do que tenho presenciado, com zelo e com muita razoabilidade.
E o facto de termos começado a trabalhar à distância, usando mais os meios tecnológicos, acha que poderá ajudar os tribunais e magistrados a darem, finalmente, o passo para a modernização?
É impossível que as tecnologias não estejam mais presentes nos tribunais e na justiça em geral, mas as causas para esse atraso são múltiplas e a maior parte não podem ser atribuídas aos magistrados e funcionários. Os processos ainda não estão totalmente digitalizados e a tramitar integralmente no citius ou em plataformas idênticas, os tribunais continuam a não estar equipados com meios tecnológicos modernos e ainda há alguma resistência por parte de alguns magistrados. Há anos que levo projetores, telas e quadros portáteis para o tribunal, para exibir documentos do processo – sempre achei caricata e pouco eficiente a forma como se exibem documentos em papel numa audiência – ou para exibir apresentações de suporte às alegações, porque esses meios escasseiam nos tribunais, as próprias salas de audiência não foram pensadas para essa utilização, mas não há muito tempo recusaram-me a utilização de um projetor durante umas alegações, já que, alegadamente, isso punha em causa a igualdade de armas com o Ministério Público e não tinha “previsão legal”… Não sei se a pandemia será o gatilho para inovação e para utilização das tecnologias, mas ela não pode deixar de acontecer de forma transversal no sistema de justiça.
A Justiça poderá lucrar com isto?
Com a tecnologia, pode seguramente. Com a pandemia não vejo como. Aqueles meses de paragem quase total terão um custo. Infelizmente tendemos a pensar a justiça só através dos casos mediatizados, mas a justiça é um bem fundamental na nossa vida, no dia-a-dia da comunidade e de muitos cidadãos. Desde o arguido que espera conhecer o destino da sua liberdade, aos pais que esperam pela definição das responsabilidades parentais relativas aos seus filhos, passando pelo investidor ou pela empresa que pretende reverter o indeferimento de uma licença administrativa essencial para que possa começar a operar, a Justiça toca em todos os aspetos da vida. Meses de paragem num sistema já em perda terão um custo elevado, que é preciso ter em conta e que é preciso tratar em tempo.
O aumento de litígios no pós-covid será uma realidade. Os tribunais estão preparados para isso?
É natural que em épocas de crise aumentem certos tipos de litigância e é normal que um acontecimento tão disruptivo como esta pandemia coloque problemas difíceis também no domínio do direito. Os tribunais terão de estar preparados, mas os tribunais, o sistema de justiça em geral precisa de apoio, de reflexão, de mudança. Já precisava antes, mas vai precisar mais ainda. Se por um lado sou muito crítico com a nossa justiça, sou muito solidário com juízes, procuradores, opc’s e funcionários judiciais. São necessárias muitas mais condições para que possam trabalhar e para que possam realmente fazer justiça.
Nos últimos anos tem ajudado diversas empresas a implementarem programas de proteção de dados. Quais são as principais medidas implementadas pelo tecido empresarial português?
Tenho alguma dificuldade em falar do tecido empresarial português, pois é um universo complexo e heterogéneo, mas diria que se o Regulamento Geral de Proteção de Dados teve um mérito foi o de colocar os temas da proteção de dados e da privacidade nas nossas vidas e na realidade das empresas. Do que tenho acompanhado tem-se assistido a uma profunda mudança e investimento nesta área, bem como na da proteção da informação em geral. O nível de investimento e de preparação varia evidentemente consoante a dimensão e a natureza do negócio, mas tem-se assistido a um esforço significativo de adaptação a este novo quadro legal.
Como é que um advogado de barra passa para a área de dados pessoais?
Foi uma questão de sorte e oportunidade. Sorte porque tive o privilégio de patrocinar com outros colegas, aliás brilhantes, o primeiro grande processo em matéria de proteção de dados em Portugal. Tive de estudar muito e de aprender sobre proteção de dados para poder cumprir o meu papel de advogado de contencioso e defender o nosso cliente. Oportunidade porque a dado ponto percebi que esta seria uma área de futuro e acreditei que a experiência de contencioso poderia ser uma mais-valia nesta área. Aliás, a experiência de contencioso parece-me essencial em várias áreas de prática jurídica que se relacionam com compliance, na medida em que o contacto com a realidade dos processos sancionatórios a jusante permite avaliar com outra profundidade os riscos que uma organização enfrenta a montante.
Por outro lado, acredito que nas sociedades de advogados com uma certa dimensão os advogados mais velhos, e em particular os sócios, têm a especial responsabilidade de desenvolver novos conhecimentos e novas áreas de prática, adequando a oferta de serviços ao mercado e abrindo caminho aos advogados mais novos.
O que mudou no mundo com o RGPD?
Os princípios essenciais da proteção de dados pessoais consagrados no RGPD são, com uma ou outra exceção, os mesmos que já constavam da anterior Diretiva de 1995 e da demais legislação, mas o que realmente mudou com o RGPD foi a perceção da importância da informação pessoal. A perceção de que cada pessoa tem um conjunto de direitos significativos relativamente à informação que lhe diga respeito e a perceção de que quem pretende tratar dados pessoais, empresas e outro tipo de organizações, tem de o fazer com respeito por um conjunto vasto e complexo de regras. A proteção de dados está na ordem do dia e veio para ficar, sendo curioso como a União Europeia liderou neste domínio, tornando o RGPD um padrão de referência a nível mundial.
Ferramentas como a StayAway e a CovisApp estão a ser desenvolvidas. Que questões legais podem ser levantadas a nível de violação de dados pessoais?
Em abstrato, levantam-se muitas questões sobre a privacidade dos seus utilizadores e sobre a segurança de informação muito sensível designadamente por respeitar à saúde das pessoas, mas levantam-se também questões de potencial discriminação e estigmatização. Por exemplo, mesmo que este tipo de aplicações seja de utilização voluntária será que quem escolher não as utilizar vai ser impedido de entrar em certos locais ou de usufruir de certos serviços? As questões que se suscitam vão para lá das concretas especificidades das aplicações e podem ser um teste à nossa cultura e ao nosso modo de estar.
Da informação que é pública, um pouco por toda a Europa verifica-se que estas aplicações estão a ser desenhadas tendo em conta princípios de proteção de dados pessoais, nomeadamente, pela opção da tecnologia bluetooth por oposição às tecnologias de geolocalização, que permitiriam rastrear os movimentos de cada um dos seus utilizadores. O que se perderá em eficiência ganhar-se-á em respeito pela privacidade. Isto é a essência do nosso dia-a-dia a trabalhar em proteção de dados pessoais: encontrar os melhores compromissos e equilíbrios entre os objetivos subjacentes aos tratamentos de dados pessoais e a sua proteção.
Em contexto de compliance, as empresas têm de estar muito mais atentas do que o que estavam?
Sem dúvida. Desde um âmbito mais geral, dos programas de compliance em matéria de prevenção e combate à corrupção e ao branqueamento de capitais/financiamento do terrorismo ou em matéria de proteção de dados pessoais, por exemplo, até ao âmbito setorial específico em que a empresa desenvolve a sua atividade é preciso uma atenção permanente à legislação aplicável e ao modo de a cumprir. A prevenção do ilícito e a adoção das melhores práticas em matéria de compliance devem constituir um pilar da gestão moderna e devem ser tratadas de forma integrada e coerente não só porque previnem a ocorrência de ilícitos no seio das organizações, como permitem mitigar significativamente os efeitos da sua ocorrência. Quanto maior e mais complexa a organização mais difícil se torna prevenir a ocorrência de comportamentos ilícitos, mas quando os riscos se concretizam faz toda a diferença poder demonstrar, nomeadamente em tribunal, uma preocupação constante e um investimento relevante em matéria de compliance.
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Tiago Félix da Costa: “A justiça vive numa clivagem simplista entre bem e mal”
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