Há muito malparado na banca. Mas o setor está a desfazer-se destes ativos problemáticos aos poucos. Até porque “não há mega remédio que resolve tudo”, dizem Pedro Cassiano Santos e Paula Gomes Freire.
Apesar de Portugal ter um mercado de reduzida dimensão, tem tudo. Tem estrutura, tem legislação, mas principalmente tem muitos ativos para vender. Nomeadamente malparado. E há muitos investidores atraídos por estes ativos, dizem Pedro Cassiano Santos e Paula Gomes Freire, advogados especialistas em mercado de capitais da Vieira de Almeida — distinguidos nos Euronext Lisbon Awards 2017 pelo sétimo ano consecutivo. E com a subida dos preços das casas, é mais fácil colocar estes créditos em incumprimentos, mas não vale tudo. Quem compra, também sabe distinguir o trigo do joio.
Mais do que capital, há muita dívida. Têm tido muito trabalho com essas operações?
Pedro Cassiano Santos (PCS): Portugal nunca foi, nem será, um grande mercado. Terá sempre uma dimensão diminuta, exígua. Ainda assim, os segmentos de dívida que temos trabalhado, apesar de todas as crises, têm sido resilientes. Têm passado pelas suas vicissitudes, mas têm sobrevivido. E têm continuado a trazer operações novas. Temos muitos conceitos que até são mais avançados do que outros mercados. Está à frente em termos técnicos, em termos tecnológicos, até do que o mercado espanhol, que é maior…
Estamos a falar de que tipo de operações?
PCS: Estamos a falar de structured finance. Estamos a falar de securitização, de derivados e também de obrigações hipotecárias…
A maior parte dessas operações são feitas por empresas não financeiras. E os bancos? Estão a saber utilizar todas as ferramentas disponíveis?
Paula Gomes Freire (PGF): Percebo que possa haver essa perceção… Mas há muitas operações que não estão no radar do público em geral. São coisas mais fechadas. Por exemplo, fizemos no final do ano passado uma operação de titularização em que há uma venda grande uma carteira de non performing loans (NPL, ou malparado), concretamente do Montepio. É uma venda de uma carteira de NPL, não numa base bilateral. Ou seja, não é o Montepio que vende a um determinado investidor. É ao contrário. O Montepio pega nessa carteira, cede-a a uma sociedade titularização de créditos que emite as obrigações.
Mas isso não é muito comum?
PGF: No campo dos NPL, é a primeira em Portugal que tem uma emissão desta natureza, no sentido de ser colocada no mercado com rating. Mas é uma estrutura notável porque, ao contrário do que acontece em toda a Europa do Sul, não houve ainda nenhuma possibilidade de fazer uma operação desta natureza sem uma forma qualquer de auxílio do Estado, ou de garantia do Estado. E a estrutura que temos em Portugal, pela sua configuração jurídica e contratual, permite atingir um resultado em que é possível pegar numa carteira de NPL e colocá-la no mercado sem que haja garantias do Estado.
Os NPL são as maçãs podres do mercado. Ou, pelo menos, as “bichadas”. Estamos sempre a falar de um produto que não é recomendável como destino de investimento de investidores não qualificados.
Mas isso é uma solução? Os outros bancos estão a olhar para isto?
PGF: Eu acho que sim. Faz sentido os outros bancos olharem para isso. Neste tema dos NPL, neste tipo de operações, há sempre opiniões muito diferentes que têm a ver com as características próprias de cada carteira, com as circunstâncias específicas de cada banco e, portanto, não acho que haja uma solução tipo e um remédio igual, único. Vamos continuar a ver vendas de carteiras bilaterais. Continua a haver uma ideia de que pode haver uma solução mais global e sistémica para o problema…
PCS: Já é mais ou menos consensual que não vai haver uma única solução que resolva este problema. Este problema vai ser resolvido – se for sendo resolvido – como o resultado da soma de um conjunto de soluções. E todas essas soluções têm mérito porque contribuem para a solução do problema. A verdade é que houve muitos ativos de crédito que perderam valor e houve, obviamente, muito crédito que não deveria ter sido dado e que dá origem a este tema. E também houve fenómenos de excesso de concessão de crédito a certos setores e, obviamente, o tema do excesso de exposição ao setor imobiliário. Temos é que encontrar pequenos remédios, pequenas soluções. Não vai haver um mega remédio que resolve isto tudo.
Há prazos definidos pelo BCE para reduzir o malparado na banca. Isso é importante?
PGF: É muito importante. E há guidelines que estão para sair sobre a necessidade imperiosa que os bancos na Europa têm de resolver este problema, porque pesa no balanço dos bancos e é muito difícil os bancos estarem disponíveis para fazer aquilo que verdadeiramente têm fazer que é conceder crédito à economia. Há uma grande pressão, mas não sei se todos os outros bancos vão seguir esta via. O Montepio explicou porque é que para eles isto fez todo o sentido… A base de investidores que está disponível para investir é muito mais alargada, ou seja, em vez de ter apenas uma contraparte com a qual vou negociar o preço, diversifica o risco com uma emissão de obrigações. Há uma tranche sénior reservada para o Montepio, mas que poderá ser colocada em mercado, até porque tem rating de investment grade e está disponível para investidores normais de mercado de capitais que investem em investment grade. E há tranches mais juniores, onde está verdadeiramente o risco, que estão disponíveis para os investidores de NPL, mas que têm que entrar numa base completamente concorrencial e a discutir o preço entre si. Isto tem impacto positivo no preço.
É mais rentável fazer uma operação como a do Montepio ou, por exemplo, uma operação tradicional como fez a Caixa, que vendeu uma carteira à Bain?
PGF: Isso depende muito da avaliação da carteira, do risco, das condições dos bancos, da tipologia dos ativos. Esta foi uma operação específica para o Montepio. Apesar de ser mais complexa, demorar tempo a montar, ser cara porque muitos custos envolvidos desde arranging do JPMorgan, aos advogados que é preciso pagar, às várias contrapartes que estão envolvidas, até o próprio rating… Há um conjunto de custos que são pesados, mas para o Montepio houve uma clara vantagem em avançar com esta operação.
Porquê o Montepio ser o primeiro a fazer uma operação deste género? É que é um banco que tem estado envolto em algumas polémicas.
PCS: Não me parece haver ligação entre as duas coisas até porque o Montepio será também o banco há mais tempo tem estado a fazer este independent servicing.
PGF: E o Montepio tem muitas operações de venda de carteiras.
Quer dizer que o Montepio vai continuar a fazer estas vendas?
PCS: Enquanto houver pipeline.
Há muito produto para vender?
PGF: Portugal tem uma dimensão francamente pequena. São vários milhares de milhões… mas se compararmos com Itália e Espanha é uma dimensão incomparável.
PCS: Esse é um tema para nós. É difícil captar a atenção dos grandes investidores neste segmento porque não há massa crítica. Não há volume e não há sinergias.
Mas há apetite?
PGF: A atenção sobre Portugal é muito significativa neste momento. Há um grande interesse.
Isso é bom ou mau?
PGF: O problema está cá há muito tempo. Tem vindo a ser resolvido devagar, devagarinho, com umas soluções do tipo “para debaixo do tapete”. Acho que a circunstância de a CGD estar devidamente recapitalizada e do Novo Banco estar vendido, ainda que num processo em que há muita coisa que tem que acontecer, em que tem o acionista que vai querer resolver o problema… de repente, há dois grandes bancos que estão disponíveis para deixar sair alguns destes NPL porque o problema dos NPL tem a ver essencialmente com o nível de provisionamento. O NPL está no balanço e como o provisionamento é inferior ao valor nominal e ao de mercado, uma venda a mercado tem um impacto no capital, porque é uma perda que é preciso encaixar e, portanto, isto só é possível fazer com determinadas condições que estão reunidas neste momento. O próprio BCP tem estado um bocadinho mais pró-ativo a gerir o seu problema. Isso cria aqui uma certa profundidade de mercado. Há mais oferta. O investidor percebe que isto está a mexer. Não penso que o problema se tenha agravado. Pelo contrário, está no caminho de ser resolvido. Há coisas a acontecer.
PCS: Estas soluções de que estamos a falar são sempre complementares à solução-mãe que é a da cobrança judicial. E, provavelmente, antes da cobrança judicial é a cobrança sem ser judicial. Há aí um percurso que tem sido feito e que está a ser feito e que é visível através dos prazos das execuções judiciais e que, obviamente, é o caminho número um. É o caminho clássico e é o caminho que tem de ser.
Quando é que o malparado vai deixar de ser um tema?
PCS: É uma pergunta para a bola de cristal.
Tendo em conta os remédios que estão em cima da mesa, o esforço que os bancos estão a fazer neste sentido…
PCS: Temos também o esforço que tem sido feito pela máquina da implementação da justiça. Também aqui há um tema: demora-se muito tempo a cobrar. Apesar de tudo, Portugal tem feito alguma evolução, seja em termos de insolvências e da duração dos processos de insolvência, seja em termos dos agentes de execução e do reforço das medidas de execução, o que tem permitido que haja um encurtamento dos prazos. Percebe-se que, seja nas insolvências, seja nas execuções, que a morosidade da justiça tão típica e tão falada tem-se reduzido, nomeadamente depois da introdução da figura do solicitador de execução que privatizou uma pequena parte da justiça.
Quando se está a vender estas carteiras, o desconto é sempre um fator complicado para os bancos. É hoje mais fácil para os bancos portugueses aceitarem preços mais baixos?
PGF: Este movimento que estamos a assistir tem tido um efeito positivo no preço. Há uma disponibilidade para vender porque também há uma procura acrescida.
Mas estes ativos valorizaram?
PGF: Não sei responder a isso. Há dados do Banco Central Europeu, por exemplo, que colocam o preço na casa dos 25% do valor nominal dos créditos. É um valor a que se chega somando o custo de recuperação com o retorno que os investidores pretendem ter. Há números para todos os países. O português é na casa dos 25%.
PCS: Não podemos esquecer que o risco do país também entra nesta discussão. E o risco de Portugal é maior do que o de Espanha ou de Itália. Nós comparamos mal com os nossos colegas de carteira. Comparamos bem com a Grécia, mas é um esforço todos os dias. Essa corrida entre Portugal e Grécia não é uma corrida que esteja ganha. Eles já ganharam um campeonato da Europa de futebol cá e nós todos nos lembramos disso. Há muitas variáveis. A primeira, obviamente, é o risco país mas há, adicionalmente, a tipologia dos ativos, o valor das garantias, o valor dos imóveis que estão por detrás desses créditos…
O problema está cá há muito tempo. Tem vindo a ser resolvido devagar, devagarinho, com umas soluções do tipo “para debaixo do tapete”. A circunstância de a CGD estar devidamente recapitalizada e do Novo Banco estar vendido… de repente, há dois grandes bancos que estão disponíveis para deixar sair alguns destes NPL.
A valorização do mercado imobiliário ajuda a vender o malparado?
PCS: Claro. Mas o imobiliário não é uniforme. É díspar geograficamente. Não é a mesma coisa Lisboa ou o Barreiro, Porto ou Vila Nova de Gaia… Também não é a mesma coisa em função das tipologias dos ativos… Os ativos de habitação têm sobressaído. Habituámo-nos, durante duas décadas, que todos os portugueses compravam casa. O que não é mau, porque obviamente porque o ativo mais importante é a casa. Podemos agora criticar que houve excesso de crédito de endividamento das famílias. Mas é melhor endividar-se para comprar uma casa do que para um carro ou para fazer uma viagem.
E há investidores portugueses para este malparado?
PCS: Há.
E o mercado português está funcionar para estes NPL?
PCS: O mercado português mais óbvio está nos servicers, ou seja, está na estrutura de serviço ou de cobrança dessas dívidas. Aí existem uns quantos players. Além disso, também existem os fundos de capitalização, de private equity, que também têm uma palavra a dizer nesta matéria. E existe a Plataforma de Gestão de Créditos Bancários, criada pela CGD, BCP e Novo Banco, que também é uma outra iniciativa, mas isso tudo faz parte daquela espécie de “salada de frutas” que vai contribuir para esta solução.
Há uma alteração no tipo de investidor destes ativos?
PGF: Sim. Nos anos pós-crise, tínhamos investidores mais agressivos, que investem mesmo na baixa do mercado e depois conseguem realizar mais valor. E há um mercado mais secundário, algum mercado já de revenda para os investidores mais conservadores, com uma rentabilidade um pouco mais reduzida.
O mercado de NPL está a transformar-se num mercado para investidores conservadores?
PCS: Os NPL são as maçãs podres do mercado. Ou, pelo menos, as “bichadas”. Estamos sempre a falar de um produto que não é recomendável como destino de investimento de investidores não qualificados. Isto é um big boys game. É para quem sabe medir e avaliar e faz uma due diligence às carteiras…
PGF: A não ser que se coloque uma carteira através de uma operação de titularização em que se consegue reservar uma tranche sénior, que tem um rating investment grade, que pode estar disponível para este tipo de investidores completamente conservadores. E assim alarga-se a base de investidores.
Isso entra no mercado de capitais português?
PGF: Pode entrar. Se o Montepio quiser, pode admitir estas obrigações à negociação.
O mercado nacional está preparado para isso?
PCS: Sim. A estrutura do mercado de capitais português, a estrutura jurídica, a estrutura dos operadores, seja a Euronext, os diversos agentes pagadores, a regulação e supervisão, a estrutura está cá toda. E é perfeitamente apta. Nunca deixámos de fazer nenhuma operação no mercado de capitais em Portugal. Nunca deixamos um projeto porque não conseguimos porque o sistema português não dá. Ser pequenino não é necessariamente mau porque também significa que porque somos pequeninos temos de ser ágeis, estar disponíveis para encontrar soluções que sejam seguras, que vão buscar um rating melhor do que na base de partida…
Tudo farei para trazer para o mercado de capitais português outros soberanos que possam vir também a consumir das nossas estruturas, da nossa máquina de funcionamento do mercado. E há outros soberanos que também podem vir a fazer isso. Alguns que falam português, outros nem isso.
Há produto, a máquina está montada e está a trabalhar. Faltam operações. Espera que este seja um ano bom para estas operações?
PCS: Temos a expectativa de que este ano seja bom.
Há operações em pipeline?
PCS: Há. Do lado da dívida, trouxemos um grande emitente para o mercado de capitais que é a República portuguesa, com as Obrigações do Tesouro de Rendimento Variável, que tem o seu “q” de inovador. É importante para o mercado de capitais português que o próprio soberano seja um consumidor do mercado. É um sinal muito importante e é um sinal que é lido pelas agências de rating, que é lido pelos outros investidores, que é lido pelo mercado. E tudo farei para trazer para o mercado de capitais português outros soberanos que possam vir também a consumir das nossas estruturas, da nossa máquina de funcionamento do mercado. E há outros soberanos que podem vir a fazer isso. Alguns que falam português, outros nem isso. Estamos a falar de dívida de dívida soberana. Estamos a falar de PALOP, mas não só. Também podem ser países do continente americano. Podem até ser emitentes brasileiros. Existem outros soberanos europeus, americanos e até supranacionais que podem vir a utilizar o mercado português e acho que esse é um grande objetivo e um desejo. Estamos a trabalhar para isso.
Voltando à banca e à necessidade de obterem mais capital. Os bancos portugueses estariam menos pressionados se tivéssemos uma política mais ativa?
PCS: Não sei se essa essa pressão, esse castigo, se aplica de igual maneira aos bancos italianos, aos bancos espanhóis por um lado, e aos bancos holandeses e alemães e suecos por outro. Já não falando dos ingleses que fazem a sua própria gestão nessa matéria.
Mas precisam de capital…
PCS: Se é preciso de mais capital, como é que os bancos portugueses podem fazê-lo? A resposta imediata é: instrumentos híbridos. São híbridos porque, normalmente, não têm poder de voto, logo não têm poder político e não têm essa interferência.
Os CoCos que o Estado teve, e com os quais ajudou os bancos, também não tinham. Só tinham direito de voto em certas circunstâncias, coisa que no caso do BPI e no caso do BCP isso nunca aconteceu.
Mas esses CoCos tinham um custo contra o qual os bancos se insurgiam…
PCS: Se vivo num mercado em que tenho exiguidade do capital e não quero alienar o controlo político das minhas instituições, os híbridos são uma solução óbvia. Custa dinheiro, é verdade. O caso da CGD tem de ser avaliado de uma forma global, em que também foi conseguida uma recapitalização pública qualificada como não sendo uma ajuda de Estado e era necessário haver “uma muleta privada” para dar um benchmark à capitalização pública. Podemos dizer que o custo é caríssimo para a CGD? Provavelmente até é. Mas havia muito risco no momento em que essa operação foi concretizada. Entretanto, a economia portuguesa e a própria condição da CGD melhorou.
Os próximos bancos que forem ao mercado vão pagar menos…
PCS: Têm um caminho mais facilitado. Nós, advogados, sabemos muito bem que isso facilita muito o trabalho. Sabemos da importância de poder apontar e corrigir aquilo que não correu tão bem e avançar nem que seja um milímetro em termos de inovação para ajudar a ir ao encontro daquilo que é a expectativa dos investidores ou dos colocadores, ou dos dealers e intermediários financeiros. Portanto, obviamente que um precedente ajuda, mas também ajuda evidentemente porque dá um benchmark em termos de mercado.
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“Valorização do imobiliário ajuda a vender malparado. Mas Lisboa não é o Barreiro, nem o Porto é Gaia”
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