Visto como o segundo maior investimento estrangeiro em Portugal desde a Autoeuropa, o projeto Sines 4.0 é elemento central da investigação que fez cair o Governo. Nesta fase inicial é só um "piloto".
A Start Campus, “detida” pelos fundos Davidson Kempner, dos EUA, e Pioneer Point Partners, do Reino Unido, ambiciona instalar em Sines um enorme campus para centros de dados, a norte da antiga central termoelétrica da EDP, que, durante anos, aqueceu as águas da praia de São Torpes. Com a primeira fase do projeto quase concluída, mas acumulando três anos de atraso face ao calendário original, o futuro deste empreendimento está agora ensombrado pelas suspeitas da Operação Influencer, a mesma que acabou por derrubar o Governo e arruinar a reputação da empresa.
A iniciativa chama-se Sines 4.0 e foi anunciada em abril de 2021, um mês depois de ter sido considerada pelo Governo um projeto de Potencial Interesse Nacional (PIN). O Ministério Público (MP) suspeita agora que a Start Campus contratou o advogado Diogo Lacerda Machado por este ser amigo do primeiro-ministro, pagando-lhe 6.533,32 euros líquidos por mês para que influenciasse o Governo e entidades públicas a tomarem decisões que lhe eram favoráveis. Foi-lhe ainda dada uma opção para ficar com 0,5% do capital.
Até recentemente, a Start Campus era liderada por Afonso Salema, que foi constituído arguido e que decidiu renunciar ao cargo de CEO. Rui Oliveira Neves, outro dos arguidos, desempenhava o cargo de administrador, mas também era sócio da sociedade de advogados Morais Leitão, posição que viu ser suspensa. A Start Campus foi igualmente constituída arguida no âmbito da Operação Influencer e obrigada a pagar uma caução de 600 mil euros como medida de coação. O MP recorreu das medidas de coação.
Nos termos em que foi anunciado há mais de dois anos e meio, o Sines 4.0 seria composto por um conjunto de cinco edifícios de grande dimensão para alojar servidores, em conjunto com um edifício inicial de menor dimensão, a que a empresa chamou de NEST. A escolha da localização prendia-se com o acesso a fontes de energia renováveis, mas também com a proximidade à costa e a um importante ponto de amarração de cabos submarinos. Esses cabos são infraestruturas críticas que atravessam oceanos e pelos quais circula o grosso das comunicações intercontinentais. Sem eles, não existiria a internet como a conhecemos hoje.
Nessa altura, membros do Governo compararam a dimensão do projeto com a da fábrica automóvel da Volkswagen em Palmela: “É, sem dúvida, o maior investimento estrangeiro que o país captou desde a Autoeuropa”, afirmou em abril de 2021 o então secretário de Estado da Internacionalização, Eurico Brilhante Dias, que atualmente lidera a bancada parlamentar do Partido Socialista. Em causa, um investimento de 3,5 mil milhões de euros que, de acordo com o plano original, prometia criar até 1.200 empregos diretos “altamente qualificados” e 8.000 empregos indiretos até 2025.
“O Sines 4.0 vai ser um dos maiores projetos de campus de centros de dados na Europa e vai dar resposta à explosão de procura por parte de empresas tecnológicas internacionais que fornecem serviços como streaming, redes sociais, comércio eletrónico, gaming, educação online, videoconferências, computação na cloud e outras aplicações de processamento de dados“, explicava um comunicado da empresa. O facto de se situar perto da antiga central elétrica a carvão permitiria ainda à Start Campus aproveitar infraestruturas existentes — por exemplo, recorrer a água do mar para arrefecer os servidores.
É, sem dúvida, o maior investimento estrangeiro que o país captou desde a Autoeuropa.
Está previsto que o Sines 4.0 seja lançado em seis fases, correspondendo a primeira ao edifício de menor dimensão (o NEST), com uma “capacidade útil de produção” — isto é, a capacidade energética consumida pelos servidores — de 15 MW, seguindo-se, faseadamente, os cinco restantes edifícios, com 90 MW cada. Desde o primeiro momento, a Start Campus chamou ao Sines 4.0 de “mega data center“, a designação atribuída pelo Data Centre Institute aos centros de dados com capacidade para albergar mais de 9.000 bastidores com servidores, segundo um comunicado.
Cerca de um ano depois da apresentação ao público, a Start Campus deu conta do início da construção do NEST, com um investimento inicial estimado de 130 milhões de euros. Esse novo comunicado incluía algumas alterações ao projeto, pois referia 2027 como ano da conclusão da construção (ao invés de 2025) e mencionava que o Sines 4.0 seria composto por oito edifícios de 60 MW além do NEST (ao invés dos cinco edifícios com 90 MW). A empresa esperava concluir a construção do NEST no primeiro trimestre de 2023.
Fase já construída é apenas “projeto-piloto”
Numa “memória descritiva” do Sines 4.0, disponível no site da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), a Start Campus sublinha que o NEST “constitui o projeto-piloto” do empreendimento. “O projeto NEST desenvolvido pela Start Campus inclui a conceção, construção e colocação em funcionamento de um edifício de processamento de dados para hyperscalers e respetivas infraestruturas, que, depois de construídos, formarão a universalidade que será cedida a hyperscalers, para estes ali desenvolverem a atividade de processamento de dados propriamente dita”, lê-se no documento.
“O NEST poderá ser utilizado por um ou mais hyperscalers, simultaneamente ou não, com o objetivo de funcionar como plataforma de teste de equipamentos e de conhecimento e familiarização com a localização e suas infraestruturas. “Hyperscaler é o termo usado comummente para empresas tecnológicas cujos modelos de negócio estão dependentes da gestão de enormes quantidades de dados”, segundo a própria Start Campus.
Em março de 2023, o ECO falou com Afonso Salema sobre o progresso do projeto e noticiou que o NEST iria ficar operacional “no final de setembro”, depois de um “ligeiro atraso”. Na breve entrevista, o agora arguido da Operação Influencer explicava que “o projeto está a correr bastante bem” e que a empresa tinha antecipado a compra de “grande parte do equipamento” para escapar aos constrangimentos das cadeias de abastecimento que se verificaram ao longo de 2022.
Nessa conversa, Salema não referiu as dificuldades que foram enfrentadas pela Start Campus quanto ao facto de grande parte do projeto estar, alegadamente, inserido numa Zona Especial de Conservação (ZEC), o que exigiria uma Avaliação de Impacte Ambiental (AIA) por parte da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), como está descrito na indiciação do MP, com base em escutas telefónicas aos envolvidos. Nuno Lacasta, presidente da APA, que também é arguido no processo, concedeu isenção de AIA à primeira fase do Sines 4.0, o que permitiu o arranque da construção do NEST.
O projeto SIN 01 ou NEST constitui o projeto-piloto do Projeto Sines 4.0 para desenvolvimento de um campus para centros de processamento de dados.
No início de outubro passado, já com um atraso face ao previsto, a empresa promotora anunciou estar a começar a acolher os “primeiros clientes hyperscalers” no NEST para a “fase de configuração inicial do edifício NEST”. “Antecipando o lançamento operacional do centro de dados da Start Campus, está em curso o processo de onboarding [acolhimento] dos novos hyperscalers, incluindo o acesso a soluções de conectividade de rede únicas e diversificadas”, anunciou a empresa. O calendário foi dilatado novamente, com a Start Campus a prever que o NEST estará “totalmente operacional até março de 2024” e que o Sines 4.0 será finalizado em 2028, três anos depois da estimativa inicial.
Além disso, constatou o ECO, a configuração voltou a ser de cinco edifícios além do NEST, num total de seis edifícios para albergar servidores, como avançado em 2021, e não oito edifícios de menor dimensão, como referido pela Start Campus aquando do início dos trabalhos de construção. Aliás, os materiais submetidos à APA mostram cinco edifícios junto a um edifício menor, apesar de uma imagem promocional mostrar oito edifícios lado a lado, mais o NEST, como é possível verificar na fotogaleria mais acima.
O NEST é, por isso, a única parte da construção do Sines 4.0 que já começou a ver a luz do dia, e não está sequer finalizado. Trata-se de um edifício com 5.000 metros quadrados, instalado num lote com nove hectares, dos mais de 60 hectares previstos para o campus, correspondendo a “um módulo para colocação de servidores, um módulo para os sistemas de distribuição elétricos (incluindo baterias) e um módulo para os sistemas mecânicos (sistemas de arrefecimento e climatização). Segundo o despacho de indiciação do MP, corresponderá a apenas cerca de 3% do total do projeto.
Planta do NEST, a primeira fase do data center, referido nas escutas a Nuno Lacasta como “o triângulo”:
Não se sabe quantos clientes já terá a Start Campus — um comunicado divulgado em setembro cita “acordos de confidencialidade” que impedem a empresa de “divulgar a identidade de todos os primeiros clientes”. Mas a empresa tem destacado os acordos estabelecidos com parceiros de conectividade, de que são exemplo o cabo submarino EllaLink, a EXA Infrastructure, a DE-CIX e a Colt.
Pouco claro é também o impacto que a investigação criminal pode ter nos planos da Start Campus, tendo em conta que perdeu, subitamente, dois dos seus principais administradores (em substituição de Afonso Salema, Robert Dunn foi designado CEO interino a 15 de novembro, “com efeito imediato”). Fonte próxima da Start Campus reconheceu ao ECO o dano reputacional que a Operação Influencer teve no projeto, tendo até em linha de conta que a empresa dizia seguir os mais altos critérios ambientais, sociais e de governance. Entretanto, em agosto deste ano, a Start Campus recebeu autorização condicionada da APA para avançar com as restantes fases do projeto.
Os fundos que comandam a empresa — a Davidson Kempner enquanto parceiro financeiro e a Pioneer Point Partners como parceiro operacional — também ainda não se pronunciaram publicamente sobre o futuro do Sines 4.0, nem sobre se mantêm a intenção de investir 3,5 mil milhões de euros em Portugal. Mas fonte próxima relatou ao ECO que a investigação provocou um “grande incómodo” no início, por não se saber exatamente o que poderia estar em causa. Essa tensão aliviou-se depois de tomarem conhecimento do conteúdo da indiciação.
Ao todo, a empresa já garantiu 183 milhões de euros, de acordo com os atos societários disponíveis publicamente no portal do Ministério da Justiça, e ainda no final do mês passado, uma semana antes das buscas das autoridades, financiou-se através de oferta particular de obrigações em 32 milhões de euros, naquela que foi a 14.ª emissão nos últimos dois anos.
A mesma fonte explicou que o financiamento do projeto tem sido realizado, até agora, por fundos próprios, e que os bancos nacionais nunca mostraram abertura para o financiar, por se tratar de um conceito novo que ainda precisa de ser testado. Contactadas, a Davidson Kempner e a Pioneer Point Partners não responderam.
Para já, no rescaldo do processo, o Governo ainda em funções tem tentado tranquilizar os investidores estrangeiros já presentes ou interessados em investir no país, com o primeiro-ministro, inclusivamente, a ter falado ao país num sábado à noite para, entre outras coisas, dizer que é dever dos governos a “atração de investimento estrangeiro”: “A qualquer Governo compete assegurar que o resultado final é a melhor satisfação do interesse público no seu conjunto”, frisou António Costa.
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Com três anos de atraso, “mega data center” da Start Campus ainda não passou de “projeto-piloto”
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