A entrada das consultoras no mercado da advocacia em Portugal está a transformar o setor. A Deloitte Legal, a EY Law e a PwC Legal apostaram num modelo multidisciplinar.
O mercado de advocacia nacional está a mudar. Com mudanças na lei, novos players têm surgido e “mudado as regras do jogo”. É o caso de algumas das maiores consultoras do país, como a EY, Deloitte e PwC, que decidiram expandir a sua atividade e entrar no mercado de advocacia.
A alteração da lei das Associações Públicas Profissionais facilitou a entrada das consultoras no setor, prometendo redesenhar o mercado e trazendo novas abordagens e modelos de negócio que misturam consultoria estratégica com serviços jurídicos.
No caso da PwC Legal a aposta no mercado foi “estrategicamente definida” de forma a prestarem serviços legais “acoplados” às restantes ofertas tradicionais. “Assim, foi lançado um movimento internacional de robustecimento da oferta de serviços legais sob o chapéu PwC”, refere a legal lead partner Cristina Cabral Ribeiro. Este movimento conta já com uma rede com mais de 4.000 advogados.
Outro dos novos players é a Deloitte Legal, que em termos globais nasceu há mais de 15 anos mas só recentemente em Portugal através da integração da Ctsu. Apercebendo-se de que seriam uma mais-valia para os clientes, decidiram juntar os serviços jurídicos ao leque dos que já eram oferecidos, proporcionando assim uma lógica de “one stop shop”. “Esta é uma lógica que faz todo o sentido no mundo empresarial atual, globalizado, com desafios multifacetados, que exigem a colaboração de diferentes especialistas, com claros benefícios para os clientes”, sublinha a managing partner Mónica Moreira.
Para completar a tríade está ainda a EY Law, que já se encontra presente em mais de 90 jurisdições, com uma equipa de mais de 3.400 advogados. “A criação da EY Law em Portugal foi uma decisão estratégica inserida numa visão global de expansão dos serviços da EY e é fruto de um processo de amadurecimento, espoletado por vários circunstancialismos e assente na determinação de criar uma estratégia para o universo jurídico da EY em Portugal”, explica o managing partner João Ricardo Nóbrega.
Apesar de todo o burburinho aquando da entrada das consultoras no mercado de advocacia, os três escritórios consideram que as firmas “tradicionais”, apesar do ceticismo inicial, os receberam bem.
“O mercado jurídico em Portugal tem uma forte tradição, e é natural que qualquer novo player gere alguma curiosidade e até algum “ceticismo” inicial. Acresce que, a novidade do novo quadro regulatório que veio instituir a multidisciplinaridade e o facto de se começar a assistir no mercado interno ao surgimento de sociedades de advogados detidas por grandes consultoras multinacionais constitui um novo paradigma na advocacia portuguesa e julgo que o mercado ainda está na fase de “diagnóstico” e expectativa quanto ao impacto deste fenómeno”, refere João Ricardo Nóbrega, que acredita que a presença da firma “não é uma ameaça”, mas antes uma “oportunidade de diversificação” e de “colaboração”.
Segundo o managing partner da EY Law, a concorrência sempre existirá, “mas a verdade é que o mercado da advocacia tem espaço para diferentes modelos de negócio”. “As necessidades dos clientes estão a mudar e as sociedades de advogados que souberem adaptar-se a esta nova realidade terão uma vantagem competitiva clara”, acrescenta.
Uma coisa é certa, Mónica Moreira defende que os desafios dos clientes exigem novas competências e novas abordagens. “Hoje, no mundo empresarial, não é possível separar a componente legal ou jurídica da componente do negócio do cliente. O advogado não pode limitar-se a “resolver” a questão jurídica, tem de ter a capacidade de a integrar na lógica do negócio e na lógica empresarial, para que esta potencie a atividade do cliente. Para isto, a proximidade e o conhecimento do negócio, por um lado, e a capacidade de apresentar uma abordagem integrada, por outro lado, são fundamentais”, nota.
Os três players assumem que o feedback que têm recebido tem sido muito positivo e para alguns até superou a expectativa. “O feedback recebido tem reforçado a nossa convicção de que há espaço para um modelo como o da EY Law. Os clientes valorizam a nossa capacidade de oferecer um serviço jurídico altamente especializado e, ao mesmo tempo, beneficiar de insights estratégicos que vão além do estritamente jurídico. O facto de termos a oportunidade de trabalhar, em muitos projetos, com equipas multidisciplinares e de termos um acesso privilegiado a tendências e inovação jurídica faz toda a diferença”, considera João Ricardo Nóbrega.
Da visão de negócio a uma abordagem integrada, várias são assim as vantagens que este tipo de firmas pode oferecer face aos restantes escritórios do mercado. “Os advogados de um escritório tradicional não conseguem trabalhar na solução que vá além da resolução do mero tema jurídico. Assim, para nós a estratégia passa por uma data de outros vetores onde a parte legal poderá ser essencial – e muitas vezes é – ou não”, aponta Cristina Cabral Ribeiro.
Um novo modelo de negócio
Foi a Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro, que veio pôr fim à tradicional proibição das sociedades multidisciplinares com o regime jurídico das associações públicas profissionais através do artigo n.º 27. Esta norma, que foi transposta do artigo 25º da Diretiva 2006/123 do Parlamento Europeu, ditou que podem ser constituídas sociedades de profissionais que tenham por objeto principal o exercício de profissões organizadas numa única associação pública profissional, em conjunto ou separado com exercício de outras profissões ou atividades, desde que seja respeitado o regime de incompatibilidades.
No fundo, as sociedades multidisciplinares são uma associação de várias profissões na mesma empresa/estrutura societária. Em termos práticos, e no caso concreto da advocacia, permite que advogados e, por exemplo, consultores, auditores ou até notários e solicitadores coexistam na mesma firma.
No caso dos advogados, pelo novo regime das associações públicas profissionais e pela nova redação do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA), em vigor desde abril de 2024, já podem também constituir-se através deste modelo.
Uma das dúvidas que pairava no ar era como é que as firmas iriam articular os seus serviços com os das consultoras. Mas o resultado tem sido simples e tudo depende do cliente: se quer adjudicar apenas serviços jurídicos ou também outros da consultora. “Articulação total e integração plena. Desde o primeiro dia que esta equipa integrou a PwC com o espírito de sermos mais um”, assume Cristina Cabral Ribeiro, que desvenda que os serviços são integrados em pacotes multidisciplinares.
Também na Deloitte Legal existe a cultura de colaboração com as diferentes áreas da consultora, “cada vez mais alargada” e que se “fortalece” com a experiência e a participação em projetos conjuntos e em ofertas multidisciplinares.
“Os projetos nascem muitas vezes dos pedidos dos próprios clientes, que envolvem necessariamente diferentes competências e que levam assim à articulação de diversas áreas, em função do projeto concreto. O importante é saber identificar a necessidade do cliente, perceber os diferentes ângulos e envolver os profissionais adequados numa resposta que é, de facto, diferente”, assume Mónica Moreira.
À Advocatus, a managing partner da Deloitte Legal garante que o facto de se apresentarem ao mercado em associação com a Deloitte Portugal não coloca em causa a sua independência e o respeito pelos deveres deontológicos enquanto advogados. “Nesse sentido, os nossos serviços são sempre independentes. Mas podemos apresentar propostas e participar em projetos em conjunto com a Deloitte Portugal e também em ofertas multidisciplinares, o que depende do tipo de assessoria e do interesse do cliente”, assegura.
Segredo profissional e conflito de interesses estão salvaguardados
Tanto o segredo profissional como a gestão de conflito de interesses estão salvaguardados nas firmas, independentemente do modelo multidisciplinar. “Os nossos clientes podem confiar que a sua informação e dados sensíveis estão absolutamente segregados, a todos os níveis, incluindo em temas de sistemas informáticos. A PwC contava já com outras valências na área de M&A e Mercado de Capitais, por exemplo, em que a exigência de sigilo já era mandatória, pelo que o acolhimento da prática legal não implicou qualquer mudança cultural na firma”, assegura a legal lead partner.
Segundo Cristina Cabral Ribeiro, no que diz respeito aos conflitos de interesse, a PwC possui um sistema de verificação mundial, o qual é um dos “pilares” da relação de confiança que têm com os clientes.
Também na Deloitte Legal a associação à consultora não coloca em causa a sua “independência” e o “respeito” pelos deveres deontológicos. “Somos rigorosos e intransigentes em matéria de segredo profissional, que é naturalmente uma pedra angular da nossa atividade. Por outro lado, dispomos de ferramentas internas sofisticadas de verificação rigorosa de conflitos de interesses. O facto de prestarmos serviços em associação com a Deloitte não enfraquece o cumprimento dos deveres mencionados, mas antes o torna mais exigente”, acrescenta Mónica Moreira.
Questionados se o modelo da sociedade multidisciplinar poderá tornar-se dominante no mercado jurídico português, a resposta não é consensual.
Se para Cristina Cabral Ribeiro não há dúvidas que as multidisciplinares chegarão a médio prazo ao topo dos escritórios de advogados em termos de dimensão, relevância e faturação, para Mónica Moreira o futuro é outro.
“Não me parece que se torne dominante, pelo menos não é essa a experiência em termos de direito comparado e nos países onde o modelo existe há mais tempo, mas acho que existe muito espaço para o desenvolvimento do mesmo”, sublinha a managing partner da Deloitte.
Já João Ricardo Nóbrega acredita que o futuro da advocacia em Portugal será moldado pelas necessidades dos clientes e pela “evolução natural” do setor. “Naturalmente que o modelo tradicional, fortemente enraizado, continuará a ter um papel relevante, mas a procura por soluções mais integradas e eficientes poderá impulsionar o crescimento de sociedades multidisciplinares que combinem independência jurídica com acesso a uma plataforma de conhecimento e especialização de outros setores”, assume.
O líder da EY Law considera ainda que é “difícil” e “prematuro” afirmar se a multidisciplinaridade se tornará dominante, mas, independentemente da trajetória que o mercado seguir, o mais importante é garantir que qualquer evolução “preserve a independência da advocacia, o segredo profissional e a confiança dos clientes”. “A flexibilidade e a capacidade de adaptação serão essenciais para o sucesso no setor jurídico do futuro”, acrescenta.
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Consultoras entram no mercado de advocacia. Que impacto terá a tríade?
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