Da corrupção às greves, passando pela morosidade e a situação no Ministério Público, não faltam temas na Justiça para animar o debate no Parlamento.
- O ECO vai publicar diariamente uma série de seis artigos sobre o estado da nação, até ao debate de quarta-feira no Parlamento, com uma análise aos desafios na Saúde, Educação, Habitação, Economia, Justiça e Finanças Públicas.
O primeiro debate do estado da nação protagonizado por Luís Montenegro está agendado para esta quarta-feira, às 9h00, e a justiça é um dos setores que vai marcar a sessão. Do combate à corrupção às greves na justiça, são vários os temas “quentes” que marcam o estado da Justiça em Portugal.
Em pouco mais de 100 dias de governação, o Governo apresentou uma Agenda Anticorrupção. As 32 medidas foram dadas as conhecer no dia 20 de junho, com destaque para a regulamentação do lóbi, as autarquias e a sua relação com empresas locais, voltar a pôr na agenda a delação premiada, a criação de uma “lista negra” de fornecedores do Estado e recorrer mais vezes aos advogados do Estado e menos a sociedades.
Uma primeira reforma que para Alexandra Mota Gomes, sócia da Antas da Cunha Ecija, promete “abalar” o setor da Justiça e que merece destaque no debate do Estado da Nação.
Sobre a medida concreta da criação de um novo paradigma de Perda Alargada de Bens a favor do Estado, a advogada considera que a ministra da Justiça promete “robustecer um regime, já em si, bastante controverso”, por impor um ónus de prova ao arguido, que se vê forçado a demonstrar a origem lícita do seu património, e beneficiar o Ministério Público (MP) com uma presunção legal.
“Se o objetivo desta medida passa por evitar a dissipação dos bens e demonstrar que o crime não compensa, também é evidente que coloca em causa princípios e direitos constitucionais, tais como a presunção da inocência, o direito de propriedade privada e a proibição da autoincriminação“, acrescenta.
É fundamental que o Ministério Público disponha dos recursos e autonomia necessários, mas, também, que desenvolva a sua atividade no quadro da respetiva cadeia hierárquica, conciliando, em cada momento, a eficácia da investigação com os direitos fundamentais dos cidadãos.
Ainda assim, considera que apesar da maioria das propostas serem, na sua generalidade, “positivas” no combate aos fenómenos corruptivos, “certo é que são também bastante ambiciosas, não se alcançando de que forma é que algumas das medidas serão efetivamente concretizadas”.
Também o sócio da VFA, Paulo Valério, considera que através do combate a corrupção, que está tantas vezes na agenda mediática, defende-se uma sociedade “mais justa”, uma “melhor alocação de recursos públicos” e “pugna-se pela dignificação do exercício de funções públicas, essencial à democracia”.
“É fundamental que o MP disponha dos recursos e autonomia necessários, mas, também, que desenvolva a sua atividade no quadro da respetiva cadeia hierárquica, conciliando, em cada momento, a eficácia da investigação com os direitos fundamentais dos cidadãos”, salienta o advogado.
Já a bastonária da Ordem dos Advogados, Fernanda de Almeida Pinheiro, aponta que é necessário debater a criação de um “programa educacional nas escolas sobre prevenção da corrupção”.
Menos juízes, maior morosidade
Um relatório anual do Conselho Superior da Magistratura revelou que no final de 2023 havia 1.917 juízes, dos quais 1.777 em efetividade de funções, menos 13 do que no final de 2022. Os dados apontam ainda que existem 135 magistrados em comissões de serviço e 52 aposentações.
Dos 1.917 juízes, 1.325 estavam em regime efetivo nos tribunais de primeira instância (38 dos quais em regime de estágio), 394 desembargadores nos tribunais da Relação e 58 juízes conselheiros no Supremo Tribunal de Justiça.
Já no que concerne aos processos pendentes, em 2023, os tribunais portugueses tinham mais de 581 mil processos pendentes, um ligeiro aumento (0,3%) face a 2022, segundo dados da Direção-Geral da Política de Justiça. Este valor representa cerca de mais 1.759 processos pendentes do quem em 2022.
“O tempo médio de resolução dos processos na jurisdição administrativa e fiscal é incompatível com uma tutela jurisdicional efetiva dos cidadãos e das empresas. É preciso que o Estado atue de boa-fé neste domínio, não só através de um reforço de recursos nos tribunais, mas também, a montante, na própria atividade administrativa, por exemplo, corrigindo situações em que a litigância resulte de conduta manifestamente ilegal do Estado e melhorando a qualificação da administração pública”, explica Paulo Valério.
As alterações legislativas, por mais bem-intencionadas que sejam, não resolvem a carência sistemática que se observa tanto no MP, como nos tribunais. É necessário existir uma transformação no atual funcionamento da Justiça no nosso país, que só será possível com um investimento forte do Estado na Justiça
Uma das medidas propostas para “travar” a morosidade processual é impor uma redução da amplitude da fase de instrução através da diminuição de expedientes dilatórios. Mas Alexandra Mota Gomes não acredita ser a solução.
“Não parece, todavia, que a alteração estrutural do modelo do processo penal em vigor seja uma solução viável. Afinal, já existem hoje, especialmente na fase de instrução, vários mecanismos legais que permitem ao Tribunal evitar, ou pelo menos diluir, quaisquer expedientes dilatórios. Assim, dever-se-ia, ao invés, corrigir certos comportamentos e vícios, nomeadamente o cumprimento dos prazos processuais legalmente previstos”, disse.
Greves “atrasam” justiça
As consecutivas greves dos Oficiais de Justiça e Funcionários Judiciais, que reivindicam melhores condições laborais e salariais, também têm “atrasado” a justiça levando ao adiamento de dezenas de julgamentos e até à libertação de presos que aguardavam o primeiro interrogatório.
A 5 de junho, o Governo chegou a um acordo com o Sindicato dos Funcionários Judiciais (SFJ), prevendo a subida do suplemento de recuperação processual de 10% do salário pago em 11 meses para 13,5% do salário pago em 12 meses, com efeito a 1 de junho.
No entanto, o acordo não foi subscrito pelo Sindicato dos Oficiais de Justiça, que já avançou com uma greve por tempo indeterminado e propôs ao Ministério da Justiça a subida de 13,5% para 15% do valor do suplemento de recuperação processual, exigindo ainda a integração deste valor no vencimento dos funcionários judiciais.
Consciente de que a falta de recursos humanos é um “problema crónico” e “urgente” no sistema judicial português, Alexandra Mota Gomes aguarda ansiosamente como a ministra da Justiça, Rita Alarcão Júdice, irá enfrentar as consecutivas greves dos oficiais de justiça.
“O pagamento de um suplemento, tal como fez relativamente aos guardas prisionais, não deixaria de ser uma solução a curto prazo. A meu ver, a solução, a médio prazo, terá de passar pela elaboração de medidas estruturais, que aumentem a atratividade das carreiras profissionais na Justiça, há muito em crise”, nota a advogada.
O futuro de Lucília Gago
Um “famoso” parágrafo do comunicado no âmbito da Operação Influencer colocou todas as atenções na procuradora-geral da República, Lucília Gago, e levou-a a quebrar um silêncio de seis anos depois de ter iniciado o mandato.
Em entrevista à RTP, Lucília Gago assumiu que autorizou o comunicado e que ela própria escreveu o “famoso” parágrafo que levou António Costa apresentar a demissão, revelou que o inquérito ao ex-primeiro-ministro ainda decorre, garantiu que Marcelo Rebelo de Sousa não acrescentou “nem uma vírgula” e ainda reagiu às críticas da ministra da Justiça.
No final de junho, a ministra da Justiça defendeu que quer que o próximo procurador-geral da República tenha um perfil de liderança e comunicativo, “ponha ordem na casa” e ajude a pôr fim a uma “certa descredibilização” do Ministério Público. A titular da pasta da Justiça admitiu ainda que o Governo quer iniciar “uma nova era”. A procuradora confessou ter ficado “incrédula” e “perplexa” e classificou as declarações como “indecifráveis” e “graves”.
Apesar de todos os pedidos de demissão, Lucília Gago garantiu que nunca ponderou demitir-se e que está consciente da “campanha orquestrada” para esse efeito. Para a advogada Alexandra Mota Gomes este é um “tema quente”: a nomeação do novo procurador-geral da República.
“No entanto, o que aqui importa, será garantir que o próximo PGR prossiga uma política objetiva, vinculada ao princípio da legalidade, transparente e de promoção da credibilidade e autonomia do MP, instituição bastante fragilizada nos últimos tempos, como demonstra a falta de candidatos ao Centro de Estudos Judiciários para prosseguirem carreira nas magistraturas”, referiu a advogada.
Da justiça económica aos direitos dos advogados
Outro dos temas quentes apontados pelo advogado Paulo Valério prende-se com a justiça económica. Para o sócio da VFA, o impacto do sistema de justiça vai para além da sua dimensão de tutela dos direitos dos cidadãos e das empresas.
“É central na promoção e fixação de investimento, no fomento do empreendedorismo, na própria estabilidade do sistema financeiro, isto é, a justiça – na sua dimensão económica – está fortemente implicada naquilo a que hoje chamamos ambiente de negócios”, revela.
Para o advogado, a modernização e transição digital na justiça são fundamentais para reduzir ineficiências no sistema e criar margem para a redução das custas processuais, cujo valor médio afasta os cidadãos dos tribunais. “Porém, o foco de atuação não deve cingir-se ao interface dos cidadãos com o sistema, por exemplo através de portais ou aplicações, sendo essencial um esforço de modernização e digitalização na própria atividade dos serviços”, acrescenta.
Entre os pontos fulcrais que devem ser debatidos pelo Governo apontados pela bastonária da Ordem dos Advogados estão ainda os relacionados com a previdência dos advogados – proteção da parentalidade e da doença, a queda abrupta de rendimentos, o cálculo das contribuições, a dupla tributação e a isenção no início de carreira -, bem com a legislação das associações profissionais e atos próprios.
Fernanda de Almeida Pinheiro defende a exclusividade dos atos próprios da advocacia para garantir direitos e segurança jurídica, que deve haver uma revisão da ingerência do Estado nos órgãos disciplinares — de forma a garantir que são integrados por profissionais com conhecimento prático –, e sobre os estágios pugna pelo financiamento público dos estágios e a sua extensão da duração para 18 meses.
A bastonária apela à necessidade de certas alterações legislativas, como a legislação sobre a negociação penal de forma a defender as garantias processuais dos arguidos, o estabelecimento de um Código de Conduta de combate ao lóbi, a Lei do Nojo, entre outras.
Sobre alterações legislativas, Alexandra Mota Gomes assume que “não resolvem as carências”. “As alterações legislativas, por mais bem-intencionadas que sejam, não resolvem a carência sistemática que se observa tanto no MP, como nos tribunais. É necessário existir uma transformação no atual funcionamento da Justiça no nosso país, que só será possível com um investimento forte do Estado na Justiça”, refere.
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Estado da Nação. Da corrupção à procuradora-geral, não faltam temas “quentes” na Justiça
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