A China entra no Ano do Coelho a corrigir alguns passos que deu no Ano no Tigre. O foco está na recuperação da economia, mesmo que para isso seja necessário melhorar as relações com o Ocidente.
Inicia este domingo o Novo Ano Lunar na China. O Tigre vai dar o lugar ao Coelho, o quarto animal no Zodíaco chinês e símbolo de longevidade, positividade, cautela, sabedoria, prosperidade, paz, esperança, calma e sorte.
Características que Xi Jinping vai certamente necessitar para contrariar os desenvolvimentos sobretudo negativos no ano que chegou agora ao fim. O Ano do Tigre fica marcado pelo controlo apertado da pandemia, que gerou protestos inéditos por parte da população e um fraco crescimento da economia.
Pequim também apertou o controlo sobre o setor empresarial, visando as grandes empresas e infligindo perdas acentuadas nos mais ricos do país. E afastou-se do Ocidente ao reforçar laços com Putin depois da Rússia ter invadido a Ucrânia.
Ainda antes do início do Novo Ano Lunar, as autoridades chinesas já deram vários passos atrás nesta estratégia que marcou o último ano. A alteração mais significativa aconteceu no controlo da pandemia, com Pequim a acabar de forma súbita e célere com a política de covid-zero. O aperto regulatório às empresas aliviou e foram dados passos de aproximação aos Estados Unidos e Europa.
Ficará o Ano do Coelho marcado por um salto atrás na estratégia de Pequim, ou apenas um ajustamento no caminho em busca do objetivo de “prosperidade comum” que foi delineado em 2021?
Certo é que Xi Jinping enfrenta relevantes desafios pela frente, na frente social (pandemia), económica (crescimento muito longe da meta e crise no imobiliário) e diplomática (relações mais frias com o Ocidente). Com os poderes reforçados (e os opositores afastados) após o importante Congresso do Partido Comunista Chinês de 2022, Xi certamente não vai pestanejar se tiver de recuar para garantir as metas de longo prazo.
A política económica está a mudar na China, para dar prioridade ao crescimento e à recuperação da procura. A forte procura das famílias por serviços e a recuperação do mercado imobiliário deverão ser os fatores que provavelmente mais vão impulsionar o crescimento. O que não representa um afastamento do objetivo mais amplo de “prosperidade comum”.
Foco na recuperação da economia
Num discurso efetuado no final de 2021, para destacar as conquistas alcançadas pela China, Xi Jinping não dedicou uma linha ao desenvolvimento da economia. O ano tinha sido marcado por uma rigorosa política de controlo da pandemia, que afastou o país das ondas de covid visíveis no resto do mundo, um forte aperto regulatório sobre as tecnológicas e o corte de financiamento às empresas de imobiliário.
No primeiro discurso de 2023, o primeiro minuto foi dedicado às medidas adotadas por Pequim para impulsionar o crescimento económico, com corte de impostos e outras ações favoráveis ao setor empresarial. A discrepância, assinalada neste artigo do New York Times, evidencia como Xi Jinping está a mudar de estratégia na frente económica, regressando a uma abordagem pró-empresas que marcou os anos de forte crescimento da segunda maior economia do mundo.
Esta marcha-atrás tem uma justificação óbvia. A economia chinesa cresceu “apenas” 3% em 2022, o segundo pior resultado em 40 anos, menos de metade da taxa de crescimento alcançada no ano anterior (8,1%) e bem distante da meta oficial de Pequim (5,5%).
Numa reunião recente para definir os objetivos políticos para 2023, as autoridades chinesas não esconderam que o foco estará nas medidas para impulsionar o crescimento económico, contando para isso com o apoio do setor privado. “A economia chinesa goza de forte resiliência, enorme potencial e grande vitalidade. Os fundamentos que sustentam o seu crescimento de longo prazo permaneceram fortes”, disse Xi, instando o povo chinês a “permanecer confiante”.
O fim da política de covid-zero, com a reabertura total das fronteiras após três anos de isolamento, deve ser vista à luz deste desígnio, mesmo que à custa de um forte aumento no número de infeções e mortes.
“No curto prazo, a China tem no controlo da pandemia o grande desafio, não só pelo elevado número de vítimas mortais que continua a provocar e que supera exponencialmente os dados oficiais, como pelo impacto negativo que está a ter nos serviços de saúde e na atividade económica”, refere ao ECO José Filipe Pinto, professor especialista em Relações Internacionais da Universidade Lusófona.
Não será difícil a China atingir um crescimento económico menos anémico, sendo que o impulso mais imediato virá precisamente do aumento do consumo das famílias, agora livres dos confinamentos e das viagens. “A economia chinesa deve apresentar uma trajetória mais suave este ano depois da turbulência em 2022. O desmantelamento das restrições da covid-19 deve gerar uma recuperação nos gastos dos consumidores, incluindo nas viagens e lazer”, assinala Frederic Neumann, economista-chefe do HSBC para o mercado asiático.
Em declarações ao ECO, Neumann destaca que “a política económica está a mudar na China, para dar prioridade ao crescimento e à recuperação da procura. A forte procura das famílias por serviços e a recuperação do mercado imobiliário deverão ser os fatores que provavelmente mais vão impulsionar o crescimento”.
O investimento no setor imobiliário na China recuou 10% em 2022, a queda mais acentuada desde que os registos começaram a ser recolhidos em 1999. Com os preços e as vendas a recuarem, o valor das casas vendidas no ano passado afundou 28,3%. Para aliviar a crise, que atingiu o pico com o default da gigante Evergrande em 2021, Pequim já deu instruções aos bancos comerciais para abrirem a torneira do crédito às construtoras e empresas do setor imobiliário.
O economista-chefe do HSBC assinala que também existem constrangimentos a uma retoma da economia chinesa, nomeadamente a “desaceleração da procura noutras regiões do mundo”, que vão penalizar as exportações. E a nível interno, “os gastos orçamentais dos governos locais, sobrecarregados por gastos elevados nos últimos dois anos devido aos controlos da covid-19”.
Apesar da margem mais limitada, Pequim deve avançar com estímulos orçamentais e monetários para impulsionar a economia. O PIB “deverá crescer 5% este ano, muito mais rápido do que em 2022, mas ainda abaixo da tendência pré-pandemia”, salienta Frederic Neumann.
O abrandamento da economia mundial terá reflexos negativos no crescimento económico da China e isso acarretará pesadas consequências sociais, pois a anunciada ambição de prosperidade ficará altamente comprometida.
“Prosperidade comum” como objetivo final
“O abrandamento da economia mundial terá reflexos negativos no crescimento económico da China e isso acarretará pesadas consequências sociais”, perspetiva José Filipe Pinto.
O professor da Universidade Lusófona assinala que, com o enfraquecimento da economia chinesa, “a anunciada ambição de prosperidade ficará altamente comprometida”. O alegado objetivo de anexar Taiwan ainda agrava este problema, pois além da questão diplomática, obriga a um “reforço do orçamento militar” que “exigirá uma afetação das verbas necessárias para a melhoria das condições de vida de uma parte considerável da população, situação que conduzirá ao aumento do descontentamento social”.
Algo que não deverá travar Xi Jinping, para quem o “fornecimento de meios de subsistência ao povo é mais importante do que os direitos de expressão política e de manifestação”, explica José Filipe Pinto, ressalvando que se tal for “colocado em causa de forma drástica, a culpa não irá morrer solteira, tanto a nível interno, com o consequente afastamento de altos quadros do PCC, acusados de corrupção e má gestão da res publica, como a nível internacional, com a consequente responsabilização da hegemonia norte-americana”.
Quando, em agosto de 2021, definiu a “prosperidade comum” como o desígnio principal da estratégia da China para os próximos anos, Xi Jinping estava ciente que a receita que levou ao “milagre económico” das últimas duas décadas estava esgotada, por assentar no boom do setor da construção e consumo desenfreado de matérias-primas (muitas delas poluentes).
O crescimento acentuado da economia chinesa – mais de 10% ao ano na primeira década do século e acima de 7% na última década – parece agora um objetivo longínquo.
Xi Jinping implementou reformas para transformar a China numa nação “totalmente desenvolvida, rica e poderosa” até 2049, focando a estratégia no controlo das empresas privadas mais poderosas do país, com medidas regulatórias que visam acabar com monopólios, travar o recurso ao crédito e endividamento geral da economia e reduzir o consumo de combustíveis fósseis.
O caminho está agora a ser corrigido, com políticas amigáveis para as empresas e o regresso dos estímulos a setores mais fragilizados, mas tal “não representa um afastamento do objetivo mais amplo de ‘prosperidade comum’”, refere Frederic Neumann, explicando que “esta política visa melhorar as perspetivas de rendimento entre as partes da população que não beneficiaram tanto do forte crescimento chinês na última década”.
O economista exemplifica que “a criação de empregos este ano estará entre as prioridades, dado o elevado desemprego no ano passado, especialmente entre os jovens à procura de emprego”. E a “recuperação no mercado imobiliário também é consistente com a ‘prosperidade comum’, desde que o aumento dos preços dos apartamentos não comprometa excessivamente a acessibilidade da habitação para a população em geral”.
Em suma, “a ‘prosperidade comum’ é uma diretriz política de longo prazo e, como tal, compatível com a prioridade de curto prazo de recuperação da procura interna”, diz o economista-chefe para o mercado asiático do HSBC.
A economia chinesa deve apresentar uma trajetória mais suave este ano depois da turbulência em 2022. O desmantelamento das restrições da covid-19 deve gerar uma recuperação nos gastos dos consumidores, incluindo nas viagens e lazer. A recuperação do mercado imobiliário também deve impulsionar o crescimento, ao dar um impulso significativo ao setor da construção.
Perspetivas favoráveis para as ações chinesas
O cerco de Pequim às grandes empresas gerou uma elevada destruição de riqueza, sobretudo nos investidores e empresários locais. As cotadas chinesas desapareceram dos rankings das maiores cotadas do mundo e a lista das pessoas mais ricas do mundo deixou de ter chineses.
O declínio da gigante de comércio eletrónico Alibaba, bem como do seu fundador Jack Ma, foi a face mais visível desta política, também muito evidente no desempenho das ações chinesas em geral. O índice MSCI China (medido em dólares) afundou 21,7% em 2021 (ano de fortes ganhos nas ações mundiais) e quebrou mais 21,9% no ano passado.
Muitos bancos de investimento recomendaram que os clientes ficassem afastados dos ativos chineses. O JPMorgan chegou mesmo a classificar a China como um país “não investível”, o que gerou grande polémica no país.
O cenário é agora bem distinto. Com a reabertura do país após o fim das restrições e a expectativa de uma série de medidas para impulsionar a economia, os analistas estão a apontar o mercado chinês como uma das apostas para 2023, tendo em conta o nível atrativo a que estão as ações e os receios de recessão no resto do mundo.
A Allianz Global Investors dá cinco motivos para o otimismo com as ações chinesas: 1) O alívio das restrições da covid pode libertar três anos de procura reprimida dos consumidores 2) As políticas para aliviar as pressões de financiamento no setor imobiliário devem suportar o crescimento económico 3) As tensões com os Estados Unidos parecem estar a aliviar 4) O caminho da China para ser um país autossuficiente pode beneficiar empresas de software, cuidados de saúde, semicondutores e veículos elétricos 5) As avaliações das ações chinesas estão em níveis razoáveis e estão reunidas as condições para uma recuperação dos lucros.
A curto prazo, a China continuará a manter contactos, sobretudo de índole comercial, tanto com a Europa como com a Rússia porque isso serve os seus interesses. Tudo em nome do pragmatismo chinês.
Reforçar laços com o Ocidente
Se a marcha-atrás na economia parece evidente, a diplomacia é o outro tabuleiro onde a China está já a corrigir o curso dos tempos mais recentes. O reforço dos laços bilaterais com a Rússia não gerou os dividendos pretendidos e o afastamento do Ocidente está a contribuir para a debilidade da economia.
Diplomatas chineses citados pelo Financial Times apelidam Vladimir Putin de “maluco” e reconhecem que o líder russo vai falhar na guerra com a Ucrânia, com o país a sair do conflito como uma “potência menor”.
Pequim pretende posicionar-se como um “agente da paz”, disponível para a reconstrução da Ucrânia e melhorar as relações com o Ocidente, sobretudo a Europa, que é o maior parceiro comercial da China e onde estão as empresas que mais investem no país.
Depois do encontro entre Joe Biden e Xi Jinping ter desanuviado as relações entre as duas maiores potências económicas do mundo, o chanceler alemão visitou Pequim em novembro, acompanhado de uma forte delegação empresarial. Charles Michel, presidente do Conselho Europeu, também já foi à capital chinesa. Emmanuel Macron reiterou esta semana que pretende fazer o mesmo em breve e a primeira-ministra de Itália, Giorgia Meloni, também prepara uma viagem à China.
Depois do encontro em Zurique com a secretária do Tesouro Janet Yellen, o vice primeiro-ministro chinês, Liu He, esteve em Davos a apelar ao investimento estrangeiro na China, exemplificando como o país está aberto a todos os meios para atingir o objetivo de recuperar a sua economia.
“A China, mais do que apontar num mundo pós-hegemónico, está a construir as bases para uma nova ordem liderada por Pequim. Dito de uma forma mais clara: a China está a tentar moldar o século XXI como os Estados Unidos fizeram relativamente ao século XX”, comenta José Filipe Pinto.
“A China pretende combater a hegemonia da ordem liberal ocidental cuja liderança pertence aos Estados Unidos e da qual a União Europeia faz parte” e é “nesse âmbito que se insere a parceria celebrada com a Rússia de Putin e a consequente não condenação da invasão russa da Ucrânia”.
Se “Putin está apostado em afastar a Rússia do Ocidente, uma vez que o seu sonho passa por liderar a ordem eurasiática”, já “Pequim segue o adágio que lembra que ‘o inimigo do meu inimigo, meu amigo é‘. Uma estratégia datada temporalmente porque, a médio prazo, a China e a Rússia acabarão por entrar em rota de colisão devido ao interesse comum na Ásia Central”, refere o professor.
Neste âmbito, “a curto prazo, a China continuará a manter contactos, sobretudo de índole comercial, tanto com a Europa como com a Rússia porque isso serve os seus interesses. Tudo em nome do pragmatismo chinês”, acrescenta José Filipe Pinto.
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