Nem uma crise financeira global nem uma pandemia foram suficientes para impedir o promotor imobiliário Armando Martins de construir um museu (e hotel) para a arte que colecionou durante meio século.
- Retrato é uma rubrica do ECO na qual, durante o mês de agosto, é publicado diariamente o perfil de uma personalidade que se distinguiu no último ano, em Portugal
“Para mim, está aqui Lisboa toda”, exclama o colecionador sobre a sua obra favorita. Numa visita comentada à Galeria 1 do museu de arte contemporânea que carrega o seu nome para dar a sigla MACAM, Armando Martins explica ao ECO a escolha de ‘A Mulher da Laranja’, de Eduardo Viana, como a preferida da sua coleção de 600 peças, das quais cerca de um terço estão no espaço que abriu as portas em março. “As peças do Eduardo Viana são muito fortes, mas a que eu mais gosto é esta”, diz, sorrindo e apontando para o quadro que data de cerca de 1913.
“Quando vim para Lisboa, fui viver para a Ajuda e quando ia para o Liceu Dom João de Castro passava no Largo da Paz e na Boa Hora, onde havia sempre vendedeiras de manhã e de vez em quando parava para ouvir a discussão entre elas, com palavrões e tudo”, conta, com risos. “Há esta vendedeira, que é muito bonita, que está a vender laranjas, depois tem as vendedeiras ali mais humildes em frente, depois está ali um rufia por trás, a fumar e depois o skyline de Lisboa, portanto Lisboa toda”.
À medida que mostra e comenta obras de Amadeo de Souza-Cardoso, Almada Negreiros e outros artistas portugueses — ou fala sobre os impressionantes candeeiros que iluminam o hotel de 64 quartos e 5 estrelas que acompanha o museu — tornam-se visíveis a satisfação e o orgulho na calma e gentil expressão do colecionador (e engenheiro, mas já lá vamos). Questionado sobre o que sentiu quando abriu o MACAM a 22 de março deste ano, data do seu 76º aniversário, responde citando uma ex-líder alemã. “Tivemos aqui a chanceler Angela Merkel há umas três semanas e também usou as mesmas palavras – emoção ao ver as obras e agradecimento por estarem expostas neste espaço. Sinto o mesmo“.
A minha área é a promoção imobiliária e é por aí que eu tenho que ganhar a vida. Mas isto é uma realização muito pessoal, uma vez que ao longo de 50 e tal anos, estamos a constituir uma coleção e era um crime ter a coleção guardada em armazéns
“A minha área é a promoção imobiliária e é por aí que eu tenho que ganhar a vida. Mas isto é uma realização muito pessoal, uma vez que ao longo de 50 e tal anos, estamos a constituir uma coleção e era um crime ter a coleção guardada em armazéns“, sublinha. A história do imobiliário e da arte na vida de Armando Martins recorda a pergunta sobre o ovo e a galinha e qual veio primeiro.
Atrium Saldanha, a obra premiada
Nascido em 1949, no concelho de Penamacor, passou a infância longe dos circuitos das artes, segundo o curto retrato partilhado pelo MACAM. Aos 14 anos vem estudar para Lisboa e na adolescência realiza a sua primeira visita a um museu de arte, o Museu de Arte Antiga, experiência que não o seduz, pois seria a arte contemporânea o seu caminho e paixão. A sensibilidade e o interesse pelo mundo da arte só começam mais tarde, de forma crescente e em paralelo com o caminho que vem a traçar a nível profissional. Licencia-se em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico, em 1973, ano em que inicia a atividade profissional, mas no final da década de 70 parte para o Brasil, regressando a Lisboa em meados dos anos 80. Começa aí um percurso de sucesso na promoção imobiliária, com a criação de várias empresas, com destaque para o Grupo Fibeira com atividades na promoção imobiliária, hotelaria e serviços, do qual é hoje o presidente honorário. A grande obra é o edifício Atrium Saldanha em Lisboa galardoado, entre outras distinções, com o Prémio Valmor de Arquitetura em 2001.
Ao ECO, sublinha que “ainda estava a estudar, ainda estava no Técnico” quando começou a colecionar arte. Mas como é que veio essa sensibilidade? “Nunca consigo bem explicar como é que isto aconteceu, como é que apareceu, comecei a comprar com dois amigos, serigrafia, essencialmente do Manuel Cargaleiro“, adianta. “Comecei a apreciar e em 1988 fizemos uma exposição do Cargaleiro em Penamacor, numa estalagem que eu tinha aberto lá, e foi um sucesso. Apareceram umas 470 pessoas à hora da abertura da exposição num sábado, foi uma confusão, e uma vez que a estalagem estava numa estrada nacional, portanto tivemos que chamar a GNR para tomar conta do trânsito”, recorda, explicando que foi nesse momento que terá começado a pensar que seria interessante ter um sítio permanente para exibir a crescente coleção.
Não é assim tão diferente [entre construir e colecionar]. Quando construímos um edifício, temos que pôr a nossa alma também lá dentro para obter um bom resultado. Este edifício foi reabilitado por nós, por uma pequena empresa que eu tenho, de construção, e portanto acho que também aqui está um pouco da nossa sensibilidade
Aos 25 anos já começara a comprar originais, fez um interregno durante a estadia no Brasil, mas no regresso acelerou as aquisições e em meados dos anos 90 deixou de comprar somente obras portuguesas. “Senti que tinha de abrir o mercado a artistas internacionais, comprar também peças com dimensões maiores e entrei na fotografia e no vídeo”, sempre no caminho de juntar tudo no mesmo espaço de exposição. Esse caminho acabou, no entanto, por ser longo, com alguns percalços a atrasarem os objetivos. Em 2001 Martins concorreu a um espaço no Cais do Sodré, no lugar onde está agora o Relógio da Hora Legal, venceu o concurso da Administração do Porto de Lisboa com “um projeto muito bonito do arquiteto catalão Ricardo Bofill”, mas depois, por razões que nunca percebeu, perdeu o espaço. “Foi uma história muito complicada, estivemos em tribunais arbitrários, fiquei muito aborrecido na altura”.
Mas o desaire até teve o seu lado positivo e hoje Armando Martins agradece o resultado, pois o contrato era de concessão, longa, mas tinha um limite. O colecionador não desistiu, esteve sempre à procura e em 2006 comprou o espaço historicamente conhecido como Palácio dos Condes de Vila Franca — mais tarde Condes da Ribeira Grande – que remonta ao início do século XVIII, situado na Rua da Junqueira, numa zona de casas nobres que corre paralela ao rio Tejo. Próximo impedimento: crise do subprime que estalou em 2008 e que provocou uma recessão a nível global, com consequências particularmente pesadas para o setor do imobiliário, precisamente o campo de ação da Fibeira.
As obras para transformar o espaço de 13 mil metros quadrados — dos quais dois mil metros de espaço expositivo — começaram em 2018, com as demolições de um prédio que estava na parte traseira da propriedade e onde está hoje um edifício novo que aloja duas galerias para exposições temporárias e que começou a ser construído em 2019. “Depois entrou o Covid em 2020 e tivemos aqui dois anos a meio gás“, lamenta o engenheiro e colecionador. Com muitos operários infetados e demoras nas entregas de materiais, “foram anos muitos difíceis”, mas Martins salienta que a obra nunca parou e ficou concluída em março deste ano, com um investimento total de cerca de 55 milhões de euros entre compra do espaço, obras e decoração. “Mas isto nunca está concluído, há sempre coisinhas para fazer”, acrescenta, num esclarecimento que revela as décadas dedicadas à engenharia e à promoção imobiliária.
Museu + Hotel, “caso único”
Como é que as capacidades que acumulou nessa carreira influenciarem o percurso na arte? “Não é assim tão diferente. Quando nós construímos um edifício, temos que pôr a nossa alma também lá dentro para obter um bom resultado. Este edifício foi reabilitado por nós, por uma pequena empresa que eu tenho, de construção, e portanto acho que também aqui está um pouco da nossa sensibilidade”. Armando Martins recorda que a sua escolha de Bofill para desenhar o Atrium Saldanha “foi uma pedra no charco” e que o resultado é um edifício que marcou Lisboa. “Portanto creio que não há assim uma grande diferença entre a sensibilidade para construir, para promover e a constituição de uma coleção”.
Em mais uma demonstração do brio pelo detalhe, Martins aponta para o edifício novo e os azulejos tridimensionais encomendados à vidreira Mariana Vasco Costa. “No ano passado ganhámos um prémio em Londres como sendo a melhor fachada de um edifício público”, conta, referindo-se aos Surface Design Awards. Motivo de orgulho é também a opção de incluir um hotel no projeto: “não conheço nenhum outro caso na Europa, mas enfim, isso vale o que vale”. A ideia é muito simples, diz. “A exploração de um museu, infelizmente, não é positiva, é deficitária portanto tivemos que ter a ideia de criar algo que fosse o sustento da operação total”, revela.
Tenho 76 anos, mas ainda estou em condições de trabalhar e quero continuar a trabalhar, por mim, se puder trabalhar até o último dia…
O MACAM já se tornou na principal ‘casa de trabalho’ do colecionador. “Os meus escritórios centrais são no Atrium Saldanha, mas praticamente já não vou lá, portanto é por aqui que vou ficar”, refere, antes de salientar, sem solicitação, que não considera estar no final da vida profissional. “Tenho 76 anos, mas ainda estou em condições de trabalhar e quero continuar a trabalhar, por mim, se puder trabalhar até o último dia…”
A conversa segue naturalmente para a questão do legado que quer deixar. Armando Martins diz que acredita que os filhos — Sofia (que há dois anos preside à Fibeira) e Duarte — vão dar continuidade ao processo, mas o olhar do colecionador já está até mais para a frente. “E como já tenho dois netos, já estou a tentar, falando com a neta mais velha, que tem 11 anos, que se vá preparando e ela também gosta disto”.
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O engenheiro que juntou o talento para construir e colecionar num museu com nome próprio
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