Nos últimos três meses, milhões de pessoas saíram às ruas. Os protestos tornaram-se violentos e a China colocou o Exército à porta de Hong Kong. Alguém tem que ceder. Mas quem irá fazê-lo?
Ao fim de três meses de protestos, Hong Kong continua em estado de sítio e a aproximar-se cada vez mais do abismo. Os manifestantes não desmobilizam, os protestos pacíficos tornaram-se num confronto permanente e violento com as autoridades e a polícia já disparou tiros de aviso. A China mobilizou o Exército para a cidade fronteiriça de Shenzen e endureceu o discurso. A situação está cada vez mais tensa e pode colocar em causa o estatuto do território, o papel da China na ordem mundial e enviar ondas de choque para a economia global.
A guerra comercial com os Estados Unidos — que a cada semana tem um novo volte face — tem sido uma das maiores dores de cabeça de Xi Jinping, com a produção industrial a baixar na China e nos Estados Unidos, as exportações a diminuírem, isto tudo num contexto de abrandamento da economia mundial, com grandes economias como a Alemanha e o Reino Unido em contração. Mas esta pode já não ser a maior dor de cabeça do líder chinês.
Nos últimos três meses, os cidadãos da região económica especial de Hong Kong saíram às ruas para protestar contra o Executivo de Hong Kong e, cada vez de forma mais direta, contra a influência chinesa sobre os destinos da região semi-autónoma. Desta vez, o rastilho foi uma lei que permite a extradição de suspeitos de crimes para outros países, colocada à discussão na Assembleia Legislativa depois de um jovem natural de Hong Kong ter assassinado a sua namorada grávida em Taiwan, e fugido de seguida para a Hong Kong, que nem pode julgá-lo nem extraditá-lo, porque não existe um acordo para o efeito com Taiwan.
Mas a proposta de lei não permitia apenas a extradição para Taiwan. Também permitia a extradição de pessoas para o continente chinês, onde os tribunais são controlados pelo regime e as liberdades e garantias estão muito aquém do praticado em Hong Kong e noutros países democráticos. Os cidadãos de Hong Kong saíram à rua para protestar contra o que viram como mais uma forma do regime chinês aumentar o controlo sobre a região.
Mesmo depois de a chefe do Executivo de Hong Kong, Carrie Lam, ter anunciado que a discussão da proposta tinha sido suspensa, os protestos continuaram. Primeiro a exigir que a proposta fosse retirada em definitivo, depois contra a própria líder do Executivo, e daí evoluíram para uma reivindicação de longa data dos cidadãos de Hong Kong: mais democracia.
Uma China aparte
Quando o Reino Unido entregou formalmente a soberania sobre Hong Kong à China, há 22 anos, o acordo celebrado previa que Hong Kong fosse uma região com uma constituição própria e que os seus cidadãos pudessem escolher os seus próprios representantes e líderes dentro do regime ‘Um país, Dois sistemas’.
No entanto, isto nunca aconteceria. Apesar de os partidos pró-democracia terem mais votos em todas as eleições realizadas, estão sempre em minoria na Assembleia Legislativa – onde se aprovam as leis – uma vez que apenas 35 dos seus 70 membros são eleitos em resultado direto do voto. Os outros 35 são nomeados por setores da economia ou personalidades que, com interesse em ter boas relações com Pequim, nomeiam deputados pró-China e evitam que o campo dos partidos pró-democracia tenham maioria.
Por isso mesmo, esta não é a primeira vez em que há protestos de grande envergadura no território, que apenas passou para as mãos da China em 1997. Em 2003, meio milhão de pessoas saíram às ruas para protestar contra uma lei que punia quem se manifestasse publicamente contra o regime chinês.
Em 2014, no maior protesto até à data, os cidadãos de Hong Kong saíram às ruas contra legislação proposta para alterar a forma como seriam escolhidos os candidatos às eleições da Assembleia Legislativa de Hong Kong. A nova legislação permitia ao Partido Comunista Chinês pré-selecionar e vetar candidatos de todos os partidos.
Há três meses, os protestos liderados por estudantes ocuparam as zonas centrais da ilha de Hong Kong, como Causeway Bay, Mong Kok, Tsim Sha Tsui e Admiralty, onde está o centro financeiro da ilha. Outra questão muito contestada, especialmente pelas gerações mais novas, é a escolha da líder do Executivo, nesta altura Carrie Lam. A escolha é feita por um comité reduzido de personalidades, e tem de ser aprovada previamente pela China.
Carrie Lam, um dos nomes mais polémicos nesta disputa, já tinha sido alvo de contestação quando acatou as ordens do governo central chinês para não dar posse a dois deputados eleitos nas últimas eleições por serem pela independência de Hong Kong da China e de o terem manifestado durante a tomada de posse. Quatro deputados foram afastados da Assembleia Legislativa.
Mas o conflito não é apenas especifico das propostas que vão surgindo. Numa região habituada a viver de forma diferente das restantes no Continente chinês, as novas gerações não se reveem no sistema autocrático chinês e a ansiedade vai crescendo à medida que se vai aproximando o fim dos 50 anos estabelecido para a transição de Hong Kong para o regime chinês.
O regime chinês também não tem esperado e, a 30 anos de Hong Kong passar completamente para as mãos da China, tem vindo a tentar apertar o cerco nos destinos da região, banindo críticos, levando-os para o continente à revelia da lei para serem julgados, impedindo políticos de tomar posse quando estes se revelam contra o regime. Mas sempre que dá um passo nesta direção depara-se com uma resistência cada vez maior da população de Hong Kong.
Do porto mais importante a centro financeiro mundial
Longe vão os tempos em que Hong Kong contribuía diretamente com uma parcela substancial para o PIB chinês. Quando passou para as mãos da China, Hong Kong valia sensivelmente um quarto do PIB chinês. Mas o ritmo elevado de desenvolvimento da economia chinesa, a construção de portos noutras cidades costeiras e o desenvolvimento de outras zonas económicas, como Shangai e Shenzen, fizeram com que as condições inigualáveis do histórico porto de Hong Kong deixassem de ter a mesma importância como porta de entrada e saída dos produtos chineses para o mundo, passando a ser responsável por sensivelmente 3% do PIB chinês.
Mas estas mudanças não fizeram de Hong Kong uma zona menos importante. Ao abrigo do regime ‘Um país, Dois sistemas’, Hong Kong beneficia de várias benesses que a economia chinesa não tem no resto do mundo. É considerada uma economia aberta pelos Estados Unido e muitas congéneres europeias, tem esse estatuto na Organização Mundial do Comércio, o que lhe dá benefícios significativos nas trocas comerciais com os restantes países membros, e tem ainda um sistema fiscal mais favorável, que atrai muitas multinacionais que querem estabelecer-se no continente asiático.
Estas vantagens permitiram a Hong Kong transformar-se na porta de entrada para muito do investimento direto estrangeiro oriundo do Ocidente em direção à China. As mais importantes empresas chinesas estão listadas na bolsa de Hong Kong, e não em Pequim, por exemplo. Cerca de 70% do investimento conseguido na ilha é para empresas chinesas, e não apenas empresas estatais que não conseguem financiar-se noutros mercados. Cada vez mais, as gigantes tecnológicas chinesas estão a usar Hong Kong como base, como é o caso da Tencent ou da Xiaomi.
Além disso, mais de metade do investimento direto estrangeiro na China é captado via Hong Kong. Também o número de empresas multinacionais no território cresceu substancialmente nos últimos 20 anos, tal como o valor da bolsa, que é atualmente a quarta maior do mundo.
Confrontos já pesam na economia
Numa altura em que a China se vê envolvida numa disputa comercial tensa com os Estados Unidos, os protestos em Hong Kong não poderiam ser pior notícia. A reação da China tem sido de contenção, mas sempre com ameaças crescentes.
A China decidiu colocar o Exército em Shenzen, na fronteira com Hong Kong, num aviso claro aos manifestantes, e seguiu uma cartilha muito habitual: avisos de uma intervenção mais musculada; dizendo que os protestos não eram ideia dos cidadãos de Hong Kong, mas sim de uma mão invisível liderada por regimes estrangeiros (como os Estados Unidos); censurou as referências aos protestos no continente chinês; pediu os nomes dos manifestantes e exigiu a sua demissão (e em alguns casos a prisão); e vários grupos associados às tríades chinesas agrediram de forma violenta grupos de manifestantes pró-democracia, algo que já tinha acontecido em 2014.
O fantasma do massacre de Tianamen em 1989, em que a mesma narrativa foi criada e cujas referências ainda hoje são censuradas no continente chinês, fez levantar medos de uma operação musculada. Mas uma operação do Exército poderia colocar a China numa posição muito mais delicada do que aquilo que aconteceu há trinta anos.
Para começar, a economia de Hong Kong já está a contrair, tendo obrigado o Executivo a apresentar um programa de estímulos. A Bolsa de Hong Kong perdeu mais de 600 mil milhões desde que os protestos começaram. As principais empresas chinesas têm sido muito castigadas em bolsa e começam a sê-lo também pelos consumidores, especialmente nos casos (como o da companhia aérea Cathay) em que colaboraram com o regime chinês na identificação de trabalhadores que participaram nas manifestações.
Muitos cidadãos estão a pedir dupla nacionalidade para poderem abandonar o território. Os negócios de entrada em bolsa previstos para este ano foram suspensos, os clientes privados estão a transferir o seu dinheiro para outros territórios, como Singapura. A região, um centro de turismo para os amantes da gastronomia e das compras em lojas de luxo, já tem hotéis a suspender contratos de trabalho devido à falta de procura.
Mas essencialmente, a repressão chinesa num território aberto para o mundo, com cidadãos muito mais orientados para as mais recentes inovações tecnológicas e em que uma parte importante da população é estrangeira, exporia a agressividade do regime chinês ao mundo de uma forma que a China não teria capacidade de controlar.
Entre a espada e a parede
Para já, ninguém recua. Nem os manifestantes, nem as autoridades chinesas. No passado fim de semana, as manifestações voltaram a ter episódios de violência, com a polícia a disparar o primeiro tiro para o ar depois de ter sido alvo de uma carga dos manifestantes. Milhares de pessoas nas ruas, lojas de comerciantes pró-China vandalizadas e mais um rasto de destruição e um aumento da tensão entre as partes.
Do lado chinês, um aviso mais direto. Com o Exército à porta da cidade, o regime publicou um artigo de opinião através da agência de notícias chinesa Xinhua em que lembra as palavras de Deng Xiaoping em 1984, que dizia que o regime devia intervir militarmente na região se houvesse necessidade.
As atividades violentas que estão acontecer em Hong Kong estão a prejudicar os interesses fundamentais de Hong Kong e do nosso país, e já decorrem há um longo período de tempo. Se permitirmos que elas se alastrem e desenvolvam, Hong Kong arrisca-se a cair num abismo.
Os manifestantes têm cinco reivindicações das quais não abdicam: a morte da proposta de lei da extradição; uma investigação independente da conduta da polícia; a libertação dos manifestantes que se encontram detidos e a retirada de todas as acusações; a demissão da chefe do Executivo, Carrie Lam; e a reforma do sistema eleitoral para finalmente caminharem para o sufrágio universal de todos os 70 deputados.
Mas para a China o problema não é apenas Hong Kong. Qualquer cedência pode ser vista como um sinal de fragilidade para outras regiões chinesas, como as províncias do sudeste e, mais importante, por Taiwan. Por outro lado, uma intervenção musculada em Hong Kong seria sempre diferente da que aconteceu em Tianamen, já que o fluxo de informação não é controlado da mesma forma que no continente chinês e o mundo tem os olhos postos em Hong Kong.
Além disso, os Estados Unidos já ameaçaram revogar o acordo único que existe com Hong Kong e que lhe permite as facilidades económicas de uma economia aberta, algo que seria muito prejudicial para o próprio continente chinês.
A solução até pode passar por um meio-termo. Mas se as primeiras três ou quatro exigências dos manifestantes até podem ser comportáveis para o regime chinês, a reforma do sistema eleitoral nem tanto. Não apenas pela questão de Taiwan, mas também porque há muito que o regime chinês tem vindo a apertar o cerco a Hong Kong, sequestrando dissidentes (como no caso dos seis livreiros que desapareceram e apareceram meses depois no continente chinês para enfrentar a justiça) e críticos do regime, que incluem empresários de renome que são acusados de corrupção quando se demonstram contra o regime. A lista é longa.
Mas mais importante neste lote, está a crença das gerações mais novas de que Hong Kong deveria ser independente da China. E com um sistema eleitoral baseado no sufrágio universal, os partidos pró-independência teriam finalmente a maioria necessária para convocar um referendo, abrir uma ferida ainda maior na região e colocar o Partido Comunista Chinês numa posição ainda mais complicada: reagir de forma musculada e ver a sua reputação manchada no mundo, para além de perder Hong Kong como centro financeiro da região; ou ceder e abrir a porta a que mais regiões questionem um regime cada vez mais autoritário.
Com cada vez mais pessoas nas ruas, os confrontos têm-se intensificado e tornado mais violentos. Os manifestantes não cedem nas suas exigências e a China não está disposta a abrir mão do seu poder no território. Alguém terá que ceder, mas enquanto não o fazem, dão mais passos em direção ao abismo.
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O que se passa em Hong Kong? Confrontos já pesam na economia
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